Reduflação, ‘explosão’ de similares e mercado dos ossos: o que mudou no consumo das famílias?

Fenômenos resultam de uma combinação entre custo de vida elevado e perda de renda da população

Escrito por Ingrid Coelho ,
venda de ossos e carcaças
Legenda: Venda de ossos, carcaças e miúdos também se destacou nos últimos meses diante da alta do preço da carne
Foto: Kid Junior

Ossos e carcaças antes descartados agora sendo vendidos em frigoríficos, embalagens com conteúdo menor, porém mantendo - ou elevando - o preço e uma verdadeira invasão de produtos similares às prateleiras de supermercados compõem um cenário fruto de um elevado custo de vida e perda de renda das famílias brasileiras.

Mas esses fenômenos vieram para ficar ou em breve se tornarão apenas uma lembrança nos livros e no imaginário da população?

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Para o economista Alex Araújo, estimar um prazo de validade para a reduflação, explosão de similares e venda de ossos ou peles e nervos no lugar da carne não é tão fácil. Isso porque o futuro é um tanto incerto em meio a eleições polarizadas e uma guerra internacional que afeta commodities que pressionam os preços dos alimentos localmente.

“Teremos este ano eleições bastante polarizadas, além de haver uma ameaça de recessão no exterior. Ainda não se sabe como isso tudo vai afetar a economia do nosso País, então a cena para o próximo ano ainda é muito incerta”, pontua Araújo.

Ele lembra que a guerra após a invasão à Ucrânia - que já se arrasta a quase cinco meses -, tem impactos relevantes sobre o preço de alguns alimentos no Brasil.

“Nos últimos dias foi possível observar a questão do leite. Além de estarmos na entressafra, a guerra na Ucrânia provocou o aumento de insumos, desde ração dos bovinos até o combustível”.

Nas últimas semanas, a disparada do preço do leite ficou entre os assuntos mais comentados nas redes sociais e ganhou as manchetes de sites de notícias. Em Fortaleza, o produto era vendido próximo de R$ 7. A expressiva elevação ocorre enquanto produtos similares ao leite, como o composto lácteo, ganham espaço nas prateleiras e também sobem de preço.

Legenda: Na última semana o leite era vendido próximo de R$ 7 em Fortaleza
Foto: Fabiane de Paula

Assim, esses produtos similares aparecem como uma alternativa para o consumidor que perdeu a capacidade de consumir os “originais”. “Essa mudança no perfil de consumo decorre da combinação entre inflação elevada e queda na renda das famílias. Isso aconteceu por uma série de fatores que temos visto desde o início da pandemia”, explica Alex Araújo.

“Renda familiar baixa e inflação elevada obriga as pessoas a adotar um novo comportamento de consumo para ajustar o orçamento”, reforça o economista.

Entenda

Reduflação:

Quando em vez de subir o preço do produto as empresas reduzem a embalagem (por exemplo: um sabão de 1kg passa a ter 800g). Isso dá ao consumidor a falsa impressão de que não houve aumento de preço.

Similares:

Produtos como o leite, leite em pó e leite condensado ganharam alguns “gêmeos”.

Esses "gêmeos" possuem rótulo parecido, mas composição diferente. No caso do “leite condensado similar”, por exemplo, se trata de uma mistura de leite ou soro e amido, entre outros itens.

Isso torna o produto um pouco mais barato, mas nem sempre fica claro que se trata de um similar.

Ossos no lugar da carne:

Com o avanço da pobreza no País, se tornou cada vez mais comum a comercialização de ossos para sopa ou de pedaços como nervos e pele. Essa venda se direciona à população que não tem como consumir carne por conta da elevação de preços.

Auxílios

Apesar das considerações que mostram um futuro incerto quando se trata da economia e consequentemente do consumo dos brasileiros, Alex Araújo lembra que a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) conhecida como PEC dos Auxílios ou PEC "Kamikaze", traz um certo alívio quando se trata de um olhar a curto prazo.

“A Câmara dos Deputados aprovou a PEC que amplia auxílios, atendendo as famílias mais pobres, onde esses fenômenos têm sido mais observados. Então é possível que isso gere um impacto positivo”, pondera Alex Araújo.

Uma mudança estrutural dessa situação, porém, só deve ocorrer com uma inflação mais controlada.

“Uma parcela significativa da renda das famílias vem do trabalho, porque elas não têm patrimônio e a rede de assistência ainda é baixa. Há uma série de fatores que dificultam um cenário mais claro”, diz o economista.

O professor de Economia Aplicada da Universidade Federal do Ceará (UFC), Almir Bittencourt, também visualiza que a ampliação de benefícios sociais deve proporcionar um alívio a curto prazo. Ele relaciona as expectativas positivas com a previsão de 2% para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2022.

Choque de oferta

Porém ele corrobora que o contexto internacional gera incerteza para a economia brasileira em médio e longo prazos. "Houve uma retração na oferta global. Empresas fecharam as portas, levando ao desemprego. A produção mundial reduziu e houve o que chamamos de choque de oferta", explica Bittencourt.

"Agora, temos uma retomada da demanda que foi reprimida durante a pandemia. Quando isso ocorre, a tendência é de elevação de preços. Isso está ocorrendo no mundo inteiro. Temos os EUA com a inflação mais elevada em 40 anos, Alemanha com a maior inflação em 25 anos, Itália, França em situação parecida", detalha o professor.

Bittencourt pontua que a guerra na Ucrânia agrava ainda mais esse quadro de instabilidade na economia mundial.

"A convergência de todos esses fatores produz um problema mundial e o Brasil não está fora disso", diz. "Uma certa retomada do emprego (no Brasil) produz uma expectativa de melhora a curto prazo, mas em médio e longo prazos não é possível afirmar nada. Esperamos que se resolva essa questão da Rússia e da Ucrânia", arremata.

Varejo e a indústria

Para o mentor, consultor, professor e coordenador da Fundação Getulio Vargas (FGV), Fernando Marchesini, uma vez que a indústria aplica a reduflação, é difícil recuar.

“O que eu vejo é que a concorrência está aberta e é o que vemos em relação aos similares. Aqueles que oferecem alguma vantagem para o consumidor se transformam em produtos de preferência. Antes, o consumidor olhava para a marca. Hoje, ele olha o preço”, acredita Marchesini.

Ele lembra a recente redução do ICMS para alguns produtos e pontua que “se a política de redução de impostos continuar, a reduflação tende a diminuir”.

“Os experimentos que as empresas fazem têm idas e voltas. Se esse experimento trouxe algum benefício em termos de preço para o consumidor, ele tende a permanecer por mais tempo. Quando ele é apresentado e o consumidor tem uma percepção negativa, ele tende a sair do mercado rapidamente”.

Ele arremata que a permanência ou não de similares no mercado vai depender das vantagens que isso trouxer para o bolso.

“Se o consumidor sabe que é um similar, mas consome porque no bolso isso vai trazer os benefícios, ele não percebe isso como um marketing negativo”, explica o professor da FGV.

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