Por que plantas de hidrogênio verde e data centers devem competir por energia elétrica no Ceará?
Conexão dos projetos à rede depende de autorização do ONS
A limitação da infraestrutura de energia elétrica no Ceará — e no Brasil — deve fazer com que projetos considerados fundamentais para o futuro do setor, como plantas de hidrogênio verde (H₂V), data centers e usinas eólicas e solares, concorram entre si para serem ligados no Sistema Interligado Nacional (SIN).
A análise de especialistas e de membros do setor é de que os projetos, no cenário atual de infraestrutura e com avanços considerados insuficientes, dificilmente poderão ser conectados da mesma forma à rede, atrasando o cronograma planejado das conexões.
Vigora desde o segundo semestre de 2023 um corte de geração (curtailment) que impede que usinas eólicas e solares gerem energia acima do permitido pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Isso limita a operação dessas plantas.
A promessa de novas linhas de transmissão, construção de subestações e o armazenamento de energia por baterias eram soluções consideradas prioritárias para destravar esses investimentos, que estão em risco, segundo players do setor energético. Essa perspectiva, contudo, não contemplava diretamente uma possível competição entre os segmentos.
Veja também
"Todos vão concorrer com o hidrogênio verde"
Em entrevista ao Diário do Nordeste, a CEO da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV), Fernanda Delgado, confirma que o hidrogênio verde deve enfrentar competições de outros empreendimentos para se ligar ao SIN.
Essa disputa acontece não só com os data centers, mas com qualquer empreendimento que vá pedir acesso à rede hoje no Ceará ou em qualquer outro lugar. Não é específico concorrer pelo acesso à energia para a indústria do H₂V com a indústria de data center e qualquer outra. A forma de fazer negócios é diferente.
"Temos a eletrificação da frota, as indústrias cada vez se eletrificando mais para poder reduzir suas emissões, tem os próprios data centers. A forma de fazer negócios vai ser cada vez mais eletrointensiva, e esse é o caminho que a gente precisa olhar", completa.
A concorrência atual com os data centers é em virtude do anúncio recente de projetos de grande porte na região do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp), considerada o principal polo industrial mundial para a cadeia do H₂V, mas não está descartado que outras cadeias energéticas se desenvolvam e entrem na competição.
"Hoje a gente está falando de data centers, amanhã a gente pode colocar na mesa H₂V e mais um ou outro elemento industrial que também seja eletrointensivo e ainda não mapeamos", considera a CEO da ABIHV.
Escassez de oferta de infraestrutura pode levar à concorrência de projetos
Laiz Hérida, diretora de Meio Ambiente do Sindicato das Indústrias de Energia e de Serviços do Setor Elétrico do Estado do Ceará (Sindienergia-CE) e CEO da HL Soluções Ambientais, corrobora a opinião de Fernanda Delgado, e condiciona a concorrência entre projetos de usinas de energia e de hidrogênio verde à infraestrutura.
"Em cenários de escassez de oferta, pode haver concorrência tanto entre projetos de energia, solar e eólica, por exemplo, como também entre setores fundamentais para a eletrificação e consequente descarbonização da economia, como H₂V. Os projetos devem apresentar planos de negócio e de implantação para, na presença de limites de capacidade, permitir a organização do mercado e a definição de prioridades", expõe.
Ela, entretanto, argumenta que a revisão sobre o fim do curtailment no País devido ao excesso de geração de energias renováveis pode ser agilizado com o desenvolvimento das cadeias do hidrogênio verde e dos data centers, que consomem energia em altíssimas quantidades, o que também pode facilitar a melhoria da infraestrutura de transmissão e da conexão de energia dos projetos.
O H₂V e os data centers, mercados eletrointensivos, devidamente planejados, suprirão o consumo desta demanda em excesso. A tendência é que os centros migrem para regiões próximas aos polos de energia renovável, como o Nordeste, para reduzir perdas e aumentar a eficiência. Assim, as soluções técnicas e financeiras tendem a se viabilizar e acelerar a infraestrutura necessária.
Foco do H₂V é 'armazenamento energético', e deve ser priorizada
Nas intenções anunciadas por investidores para a produção de hidrogênio verde no Ceará, um dos principais produtos a serem gerados é a amônia verde (NH₃), que será exportada à Europa para, posteriormente, ser usada como fertilizantes e combustíveis, por exemplo.
Raphael Amaral, professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC), pondera que o "o correto seria uma infraestrutura suficiente para acomodar projetos tanto de data center quanto das plantas de H₂V".
"Penso que a intenção é de transformar esse hidrogênio em amônia para facilitar o armazenamento e o transporte até o local onde será efetivamente utilizado. Essas situações complicam a questão somente da alimentação da energia para a produção do hidrogênio. Mas existe o problema da fonte para alimentar a planta do hidrogênio verde", reforça.
Para ele, os entraves na infraestrutura de energia poderiam ser resolvidos a curto prazo com o armazenamento de energia por baterias, solução que poderia ser adotada enquanto o gargalo das linhas de transmissão para o escoamento da eletricidade gerada para acabar com o curtailment ainda é insuficiente.
Não tenho para onde encaminhar a energia gerada, que consiga armazenar principalmente pela forma de energia química. Resolvendo essas duas questões, o Ceará e o Brasil dão um salto de qualidade não só nacionalmente, mas no cenário internacional todo. Conseguiria trazer de volta os investimentos e se destacar no cenário da transição energética mundial".
Projetos 'certamente' devem coexistir, mas infraestrutura é desafio imponente
Fernanda Delgado afirma que a expansão da malha de linhas de transmissão deve impulsionar o desenvolvimento da cadeia de hidrogênio verde: "A gente teve respostas muito positivas de todas as instâncias governamentais", destaca.
"Como vai ser a atuação da ANP, a certificação, como vão ser os gasodutos que vão levar essa amônia que vamos levar no Pecém, a taxonomia, a distribuição dos recursos públicos, as ZPEs. Tudo isso precisa ser discutido do ponto de vista infralegal", enumera ela sobre as pendências na regulamentação.
Um dos desafios que envolvem a produção de hidrogênio verde em solo brasileiro é o que a CEO da ABIHV define como "ansiedade". Segundo ela, tanto os empresários quanto demais players do setor estão tentando acelerar processos para uma cadeia de energia, o que vai na contramão de experiências bem-sucedidas e essenciais atualmente, como o petróleo do pré-sal e o etanol.
"A gente precisa descarbonizar, e cada vez mais os efeitos da mudança do clima estão na nossa porta. Existe um tempo normal da maturação de projetos de H₂V, como aconteceu no óleo e gás, na energia solar, no etanol. É natural que tenha tempos e movimentos para ordenar essa indústria. Ainda existem questões a serem discutidas e sancionadas até 2026 para a tomada de decisão final de investimento, mas vamos chegar lá", aponta.
"O hidrogênio verde e todos os derivados fazem parte de um portfólio de soluções que a indústria brasileira vai usar para se descarbonizar. O hidrogênio verde não é uma bala de prata, não pode ser usado em qualquer processo produtivo ou para qualquer solução", observa Fernanda Delgado.