Interesse por games vira profissão e sustento para jovens no Ceará; salários chegam a R$ 18 mil
Mercado cearense, berço do desenvolvimento de jogos no Brasil, supera R$ 8 milhões

Em 2017, quando a cearense Rayanne Reveg decidiu deixar a formação em direito para investir no desenvolvimento de jogos digitais, dando asas a um sonho de infância, o ramo parecia uma aposta arriscada. Hoje, a indústria cearense de games pleno crescimento, avaliada em mais de R$ 8 milhões.
Desde criança, entusiasta de jogos analógicos e digitais, influenciada pela avó, Rayanne enfrentou o receio de transformar um hobby em sua carreira aos 18 anos.
“Minha avó tinha uma locadora, então muito dessa minha essência vem dessa herança familiar. Iniciei no direito, mas percebi que aquela área não me permitia desenvolver criativamente. Precisei conversar com minha família e pude ingressar no curso de jogos digitais da Estácio”, relata a jovem.
Com o desenvolvimento de seu portfólio, Rayanne integrou uma equipe da faculdade e participou do Game Jam Plus, considerado a 'copa do mundo' do desenvolvimento de jogos online, e chegou à final da competição.
Foi ali que nasceu o Studio 85, um dos mais proeminentes do Ceará. “Foi um ambiente que permitiu que a gente pudesse se desenvolver como profissionais, ao ponto que em 2022 participamos do Global Top Round Conference, em que pude representar estúdio como o único projeto no top 10 da América Latina”, conta.
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Quando o hobby se transformou em fonte de renda
Em 2024, a desenvolvedora também foi a representante das Américas no Pitch Competition Games da Ásia, em Singapura. Com o sucesso da trajetória além do esperado, a jovem eliminou o seu maior receio: não alcançar estabilidade econômica.
“Eu tive muito receio desde o período do direito, que é uma faculdade mais tradicional, por acreditar que a área de jogos é muito recente no Brasil. É recente até mesmo para quem já é de dentro da área”, lembra.
O Studio 85 começou a operação a partir de um acordo com uma empresa de telecomunicações que disponibiliza games aos usuários por meio do serviço de telefonia contratado.
Além disso, o estúdio apostou na criação de jogos para computadores e videogames. Nesse caso, se desenvolvem propriedades intelectuais que podem ser vendidas a empresas de jogos digitais.
Rayanne ressalta que o objetivo sempre foi produzir jogos que tragam um impacto aos usuários, além do entretenimento. “A gente tem o costume de desenvolver avaliando o mercado, visualizar as tendências, avaliando riscos, rentabilidade e estabilidade dos produtos”, explica.
Atualmente, a desenvolvedora atua também como produtora cultural. “Eu creio que estou muito mais realizada na área financeira do que se eu me tornasse uma advogada, juíza. Acredito que os games podem prover conforto financeiro, mas também a realização”.
Qual é o salário de quem trabalha com jogos no Ceará
O Ceará foi um dos berços do desenvolvimento de jogos do Brasil, a partir da fundação da Geração Nordeste de Software (GENES), em 1990, destaca Andréia Formico, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Informática Aplicada (PPGIA) e coordenadora do Laboratório de Games, Interação e Realidade Virtual da Universidade de Fortaleza (Unifor).
“O estúdio foi responsável pelo lançamento do jogo 'Taça Mágica', um dos primeiros jogos autorais do país. A presença do Ceará em eventos de relevância internacional demonstra a articulação do ecossistema para a prospecção de negócio”, aponta.
A especialista afirma que o mercado de trabalho cearense é altamente qualificado, com forte capacidade criativa e técnica. Os desenvolvedores atuam em todo o ciclo de desenvolvimento dos jogos, como game design, programação, animação e sonoplastia.
“Nota-se um amplo interesse na criação de jogos que explorem a cultura local e a história do estado, bem como jogos aplicados aos domínios da saúde e da educação. Além disso, observa-se uma diversidade nas plataformas de desenvolvimento, com estúdios criando jogos para dispositivos móveis, PCs e Web”, afirma.
A pesquisadora analisa que a remuneração dos desenvolvedores cearenses acompanha as médias nacionais, variando de R$ 4 a R$ 18 mil. A Pesquisa Salarial de Programadores Brasileiros 2024, realizada pela Código Fonte, aponta a faixa salarial por nível de carreira:
- Júnior: R$ 4.079,01
- Pleno: R$ 7.850,47
- Sênior: R$ 15.050,46
- Outro (especialista, tech lead): R$ 18.202,92
Panorama da indústria de games no Ceará
Um dos marcos na indústria de jogos do Ceará apontado por Andréia Formico é a criação do Plano Setorial da Indústria de Jogos do Ceará, desenvolvido pelo Sebrae com parceria da Associação Cearense de Desenvolvedores de Jogos.
O plano busca nortear políticas públicas e ações para o fortalecimento do segmento. Segundo o relatório, a indústria de jogos no Ceará superou R$ 8 milhões em faturamento em 2022.
O Estado tem cerca de 20 estúdios de desenvolvimento formalizados. Além de Fortaleza, o Sertão Central se destaca com o polo da Universidade Federal do Ceará em Quixadá.
Entre os desafios identificados, está a ausência de canais de viabilização financeira para os projetos. O plano ressalta que, embora o estado possua cursos de alta qualidade, a maioria dos profissionais não enxerga o setor como opção profissional.
“Um outro desafio, nascido da expansão das ações ocorrida nos últimos anos, é a descentralização das iniciativas de jogos para centros além da região metropolitana e a formação de coletivos organizados regionais que possam atuar diretamente no fomento aos seus respectivos ambientes”, aponta.
Izequiel Norões, presidente da União Cearense de Gamers e professor de Ciências da Computação na Unifor, chama atenção para o fenômeno de fuga de talentos: programadores cearenses de êxito passam a trabalhar para empresas internacionais.
“É fundamental criar condições para que esses talentos permaneçam produzindo no Ceará. Isso inclui fomentar estúdios locais com acesso a crédito e editais robustos, apoiar a criação de startups de jogos e promover a integração entre academia e mercado”, aponta.
Izequiel destaca a necessidade de fomentar estúdios locais com acesso a crédito e editais públicos robustos. “Políticas públicas que incentivem a produção de jogos e exportação de produtos podem transformar o estado em referência nacional”, afirma.
O plano setorial aponta ações necessárias para solidificar a imagem do Ceará como polo de desenvolvimento de jogos, como o estabelecimento de parcerias público privadas e inserção em ações de tecnologia e economia criativa.
A longo prazo, deve ser estabelecido um arranjo produto local de jogos do Ceará e linhas de fomento para iniciativas de pesquisa que contemplem a indústria de jogos.
Como é a capacitação para essas novas profissões no Ceará
O mapeamento do setor registra o surgimento de talentos no desenvolvimento de jogos em cursos de áreas transversais, como computação, artes visuais e design.
O primeiro curso focado na criação de games no Ceará foi inaugurado em 2008, oferecido pela Faculdade Integrada do Ceará (FIC), que posteriormente foi adquirida pela Estácio.
Atualmente, despontam mais formações especializadas na área, inclusive iniciativas públicas. O Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) oferece cursos de programação focada em jogos digitais, inclusive com turmas só para mulheres.
O start para viver dos jogos
Foi em uma turma feminina do CCBJ que a jovem Alexandra Silva da Cruz, de 21 anos, iniciou sua trajetória no desenvolvimento de jogos.
Ela participou da formação em 2023 e, depois, ingressou em um curso técnico de programação de games, com aprofundamento no conteúdo. A jovem pretende seguir integralmente na área, conciliando com o desenvolvimento front-end.
“Me sinto bastante segura de que quero seguir nesse ramo. Estágio em um estúdio de Fortaleza, uma oportunidade enorme e inesperada, já que ainda estou no início da jornada, o que me fez criar esperança”, afirma.
Entre os jogos já elaborados pela jovem, está Dragon Of Sea, cujo objetivo é eliminar a poluição dos mares. A aplicação foi campeã da categoria jogo iniciante do Game Jam. Atualmente, Alexandra desenvolve um jogo que tem como personagem principal um gato de rua, com o objetivo de conscientizar sobre o abandono de animais.
O jovem Miguel Angelo, de 21 anos, também descobriu que sua paixão de infância poderia se materializar em uma profissão a partir de cursos no CCBJ. Ele se especializa na arte visual dos jogos digitais.
Angelo destaca que os jogos não estão mais restritos ao âmbito do entretenimento e se encaixam também na área educacional. “É uma área que te dá total liberdade de explorar, imaginar, produzir, de você falar sobre determinado assunto. Qualquer pessoa pode criar o seu jogo”, comenta.
A realização profissional de cada vez mais desenvolvedores cearenses depende de mais incentivos, aponta o jovem.
“Para uma pessoa negra da periferia estar fazendo jogos de autoria própria é uma coisa impagável. É uma área considerada por pessoas que têm recursos, então, quando abrem editais para pessoas da periferia, isso ganha outro peso”, observa.