‘Todo jovem tem vulnerabilidades, mas quem morre é o negro’, diz gestor do Ministério da Igualdade Racial

Em visita a Fortaleza, o diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo do Ministério da Igualdade Racial, Yuri Silva, falou ao Diário do Nordeste

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com,br
yuri silva
Legenda: Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo do Ministério da Igualdade Racial, Yuri Silva.

O Ceará foi o estado escolhido pelo Governo Federal para dar início, nesta semana, à elaboração do Plano Juventude Negra Viva, uma iniciativa do Ministério da Igualdade Racial. Com isso, tanto a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, como o diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, Yuri Silva, estiveram em Fortaleza, em contato direto com os jovens negros cearenses

Na ação, a ideia do Governo Federal é garantir espaços formais de escuta de jovens negros em todos os estados para que sejam produzidos diagnósticos locais sobre as principais demandas e problemas enfrentados por essa população. O procedimento resultará na produção de um relatório que dará origem ao plano de enfrentamento às vulnerabilidades detectadas

No Governo Dilma, uma ideia de formulação semelhante, chamada à época de “Plano Juventude Viva”, chegou a ser desenvolvida, mas não prosperou. Sob nova roupagem, o Governo Federal aposta no Plano Juventude Negra Viva, no qual a questão racial é central.  

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Em Fortaleza, o diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, Yuri Silva, conversou com o Diário do Nordeste e destacou, dentre outros aspectos: as ações prioritárias nos quase 5 meses de Governo; a percepção sobre os dilemas da juventude negra em distintos territórios do país; e como a prioridade à questão racial é encarada dentro da própria gestão federal. 

1. Quando a Anielle Franco assumiu o Ministério, o que vocês vislumbraram como ação prioritária  na promoção da igualdade racial?

Bom, a ministra tem vocalizado a prioridade da gestão dela por algumas pautas. É a pauta  da educação, do enfrentamento à violência contra a juventude negra, a pauta das mulheres negras, também dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana. 

Nesse sentido, quando a ministra me convidou para assumir esse posto de diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, umas das primeiras coisas que ela falou é que nessa pasta vai estar também a pauta das políticas para juventude negra. Porque é uma prioridade do Governo Lula três (referência ao terceiro mandato de Lula na presidência) e especialmente dela, enquanto ministra, mas também como cria da Maré (um conjunto de comunidades localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro), ativista. 

A ideia é engendrar por dentro da institucionalidade políticas que resultassem na redução desse terror que as famílias negras vivem hoje é que é o extermínio da juventude negra nas periferias. 

É a juventude negra que está aí nesse meio de conflito. Entre os grupos civis armados, o tráfico e as polícias militares. E a que morre vítima dessa guerra que é uma suposta guerra às drogas, mas que, na verdade, só atinge um povo, que é o povo negro. 

Essa juventude quando morre, morre civil e morre também nas corporações policiais militares, porque os policiais militares do Brasil são os que mais morrem e são majoritariamente negros em boa parte do país. . 

Então, essa guerra é uma guerra que não interessa ao nosso povo e ela só pode ser enfrentada por meio de políticas complexas como um problema complexo. É articulando de forma multissetorial ações no âmbito da educação, na saúde, da assistência social, da garantia de acesso à cultura, ao esporte e ao lazer. 

É muito importante a estruturação de mecanismos de acolhimento de denúncias de racismo, mas principalmente de encaminhamento dessas denúncias. 

2. Em conexão com a pergunta anterior, temos uma realidade em que no Ceará, por exemplo, a juventude, sobretudo, a negra fica no cruzamento: violência, facções, territórios sem oportunidades e carência de emprego e renda. Como é que isso chega para vocês? Qual a percepção da gestão sobre a dimensão desse problema?

Primeiro, o Estado brasileiro tem que admitir sua falha. Ele não oferece direitos para essa juventude e abre o flanco para esses grupos civis armados, para que essas facções possam cooptar esse jovem. 

É uma falha no Estado brasileiro e o governo Lula três tem sido um governo de reconstrução, de repactuar políticas que foram destruídas nos últimos 6 anos, mas também de admitir falhas e políticas implementadas nos governos anteriores. 

É admitir que o Estado falhou nessa tarefa de proteger nossos jovens é o primeiro passo. Depois é conhecer. 

O Plano Juventude Viva, a partir de 2012 e 2013, no governo Dilma, foi uma tentativa muito bem intencionada de tentar resolver essa questão, mas enfrentou dificuldades diversas do ponto de vista do orçamento, das ‘pautas bomba’ que o governo Dilma foi alvo naquele momento e, portanto, não conseguiu ser efetivado. Então, a retomada do Plano Juventude Negra Viva está conectado com essas coisas. 

Admitir que o estado falhou e precisamos dar uma resposta e admitir que as soluções que o estado tentou articular, por diversos fatores, não deram certo. 

Temos bebido da fonte do antigo Juventude Viva, de quem ajudou a construir aquele plano para construir um plano agora. Óbvio que todo jovem tem vulnerabilidades, mas quem morre é o negro e, por isso, o nome é Juventude Negra Viva. 

E segundo admitir que esse jovem ele é arregimentado pelo tráfico, pelas facções, por um outro motivo, além da negação dos direitos e da vulnerabilidade provocada por essa negação de direitos, mas porque ele encontra na facção um arranjo emancipador para sua vida. 

Plano Juventude Negra Viva
Legenda: Mobilização da juventude negra em Fortaleza no encontro com a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco
Foto: Fabiane de Paula

Se ele não encontra um arranjo emancipador com a oportunidade de trabalho, com a educação, para que ele seja um sujeito de direito, com o tráfico, nem que seja pela força da coação, com a arma, ele é respeitado. 

Então, nós temos que construir possibilidades de emancipação para esses jovens para que eles se sintam sujeitos de direitos e não precisem adentrar no tráfico. 

Outra questão é a violência policial que não é generalizada na corporação policial militar, que é uma corporação séria e comprometida, mas que infelizmente, o desvio de conduta de alguns agentes, provocado pelo racismo estrutural, vai também tirar a vida desses jovens. 

3. Você é baiano e sabe que a Bahia, em certo grau, compartilha problemas semelhantes aos do Ceará, como a perda de vidas de jovens negros e a conexão disso com organizações criminosas. Como o plano vai ajudar a alterar essa realidade?

Nosso desafio é enfrentar esse estado de coisas tão complexas e apresentar soluções. Não existe possibilidade de achar soluções para um problema tão complexo sem entender as especificidades dos territórios. 

O Ceará sofre com altos índices de violência, tem um governo comprometido com a redução dessas violências, um governo parceiro do Governo Federal. A Bahia sofre com o mesmo tipo de violência e também tem um governo comprometido agora com essa pauta. Mas alguma coisa está errada porque não estamos conseguindo achar soluções. 

Ouvir as pessoas e, sobretudo, a juventude no território, é para que a gente consiga achar essa solução, que não é simples, não é de curto prazo, mas se a gente articular um pacote com muito compromisso político para executá-lo, tem saída. 

4. O plano está sendo estruturado por estados. Para quem quer entender o que é esse processo e como ele será feito, como funciona na prática?

A gente tem mobilizado jovens e os movimentos sociais, os movimentos de juventude e cultura, os movimentos organizados das periferias para participarem em cada estado. 

O primeiro dia é o dia em que o Governo Federal apresenta o que já tá pensando de política para essa juventude e os governos do estado e da capital também apresentam o que está sendo elaborado ou executado para essa juventude. 

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No segundo turno do primeiro dia é o momento em que a gente faz uma árvore de problemas junto com a juventude. Então, a partir da escuta a gente vai montando um painel de quais são os problemas mais citados por aquela audiência, que é audiência de juventude, sobretudo, juventude negra.  A gente prioriza dentro dessa árvore de problema quais são os problemas mais emergenciais e os não tão emergenciais e aí no segundo dia a gente se dedica a uma tarefa que os próprios jovens proporem soluções para esses problemas. 

Claro que depois isso passa por um filtro de especialista de políticas públicas, isso gera um grande relatório para compor esse plano. É um relatório bruto que nos orienta sobre a elaboração de ações que vão ser lançadas pelo governo até novembro. 

Então a ideia é lançar em agosto na Semana de Juventude o primeiro extrato dessas propostas colhidas no território e lançar em novembro o plano completo já com as ações previstas pelo governo, com as previsões orçamentárias dessas ações. 

Nós temos lutado para que o Juventude Negra Viva, além de um plano emergencial, ele seja um programa orçamentário no Plano Plurianual do Governo Federal, no sentido de garantir orçamento. Não adianta a gente ter um plano e não ter recurso para executar. 

5. O Ministério tem questões muito transversais. Praticamente, todas as ações se conectam e dependem de iniciativas de outras pastas do Governo. Nesse tempo da nova gestão, onde vocês têm articulado mais? Quem vocês mais têm procurado?

Bom, a gente tem dialogado com o Camilo (Santana), educação, com a ministra Nísia (Trindade), da saúde, porque a saúde é muito importante, inclusive para gente atualizar os dados de violência letal contra a juventude negra, porque a gente estruturar essa estatística pela entrada.é muito mais próximo da realidade, ponto de vista estatístico. 

Temos dialogado com a Secretaria Geral da Presidência porque é lá que fica a Secretaria Nacional de Juventude, mas também como Ministério dos Esportes fortemente com o Ministério da Cultura. Também o Ministério da Assistência e Desenvolvimento Social, Combate à Fome, o Ministério do Meio Ambiente. 

A gente entende que esporte, lazer e cultura são saídas emancipadoras para essa juventude por meio dessas políticas setoriais, desses temas, acessar uma série de direitos. A nossa própria ministra, que é uma cria da Maré, pôde estudar por 12 anos nos Estados Unidos por conta de um projeto realizado na comunidade ligado ao esporte, quando ela era jogadora de vôlei e foi morar fora.  

O que quero dizer é que a pauta da juventude ela tá capilarizada em várias outras pautas.  Essa juventude é afetada pela falta de acesso à saúde, quando o seu território está conflagrado e a unidade de saúde não pode abrir. Ela é afetada pela educação com a negação do direito à educação. 

Ela é afetada pelo racismo ambiental quando a sua moradia desaba ou é vítima de deslizamento de terra porque não foi investido em infraestrutura da sua comunidade. 

Essa juventude é vítima quando ela não tem acesso a comida na mesa e a assistência social e por isso ela procura outros arranjos emancipadores, muitas vezes, no crime. 

Essa juventude ela está aí espalhada, capilarizada em várias políticas, e por isso a gente sempre reafirma que o nosso plano, a política que vai ser instituída por esse plano, é uma política multisetorial. 

6. Quando o atual Governo fez o movimento de ter um Ministério da Igualdade Racial sinalizou política e institucionalmente que o racismo é um problema grave a ser enfrentado. No campo institucional interno da gestão, há resistência ao enfrentamento do racismo como pauta prioritária?

Disputas sempre existem, na institucionalidade e na política, mas a pauta racial hoje é uma pauta central no governo Lula três, talvez pela força da nossa ministra, a presença de espírito, um carisma, representatividade política enorme, mas principalmente pela luta história dos movimentos negros. 

O decreto do presidente Lula, do dia 21 de março que institui 30% de reserva de vagas nos cargos comissionados para pessoas negras é uma demonstração inconteste da prioridade que essa pauta tem hoje no Governo Federal. 

Um dos motivos que eu traço na minha pesquisa para a ausência de orçamento e institucionalização das políticas de igualdade racial ao longo de 20 anos é a burocracia. Não havia naquela altura histórica uma burocracia negra para segurar aquelas pautas internamente. 

Hoje isso é completamente diferente. Nós temos uma burocracia, no bom sentido, do conceito de burocracia, comprometida com essa pauta. Uma burocracia negra, de mulheres, de pessoas LGBTs e portanto isso permite que a pauta avance e também tenhamos pessoas brancas alinhadas e aliadas a essas questões para fortalecer o avanço das pautas de igualdade racial e combate ao racismo. 

 

 

 

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