Por que lei que proíbe fogos de artifício barulhentos não é cumprida em Fortaleza?
Fiscalização esbarra na necessidade de flagrante.
Embora exista uma lei que proíbe a utilização de fogos de artifício barulhentos em Fortaleza, ainda é comum escutar rojões e bombas em comemorações de jogos de futebol, festas e diversas celebrações pela cidade. O que pode ser sinônimo de diversão e descontração para uns, representa agonia e tensão para outros.
É o caso da dona de casa Sandy Lena, 44, mãe de Raul Vitor, uma criança autista de 11 anos e sensível a ruídos altos. Quando é exposto a sons fortes como o dos artefatos, o garoto entra em crises. “Ele chora, se desorganiza, fica elétrico dentro de casa”, explica Sandy.
A solução da família é encontrar alternativas para ajudar a criança. “Aqui em casa, a gente enrola ele no lençol, usa o abafador e abraça até ele se acalmar”, conta.
Com a aproximação das festas de fim de ano, a dona de casa revela estar apreensiva e preocupada, uma vez que neste período o uso dos artefatos é mais intensificado na Sapiranga, bairro onde moram. “Estamos pensando em fazer um quarto antirruído para o Raul Vitor porque o barulho é muito forte. Aqui não são só os fogos, são aquelas bombas rasga lata”, conclui.
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Seis multas em quatro anos
Desde que a norma proibitiva entrou em vigor, em 2021, 682 denúncias foram realizadas nos canais de denúncia da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis). No entanto, somente seis multas foram aplicadas na cidade — e todas para pessoas jurídicas.
A lei proibitiva veda o uso de morteiros, bombas, fogos de artifício com estouro ou estampidos, foguetes com flecha de apito ou qualquer artefato desse tipo que cause barulho em Fortaleza. Ela se aplica a eventos privados em residências, hotéis, clubes ou outros.
O não cumprimento da legislação acarreta multa de R$ 229,12 para pessoas físicas e R$ 1.145,64 para pessoas jurídicas. Para denunciar, pode-se usar os seguintes canais:
- Aplicativo Fiscalize Fortaleza (disponível para Android e iOS);
- Telefone 156;
- Site Denúncia Agefis.
Uma das razões que explica a baixa conversão de denúncias em multas é a necessidade de flagrante da ação. Quando as queixas relacionadas aos estampidos são realizadas, elas acabam entrando no sistema da agência para serem analisadas.
Nesse ínterim, o evento e os fogos já cessaram. É o que detalha a gerente de normatização e padronização da Agefis, Regiane Paiva, em entrevista ao Diário do Nordeste.
“A legislação traz que, para poder aplicar o auto de infração, tem que ocorrer o flagrante pelo fiscal. Então, nós não podemos autuar baseado em vídeos, a fiscalização tem que estar no local para constatar a infração e realizar a lavratura do documento”, afirma.
Somente a denúncia e o envio de imagens não é suficiente, segundo Paiva, porque não possibilita comprovar a autoria e a realização do crime. “Nós temos que identificar realmente quem é que está provocando a queima dos fogos naquele espaço”, afirma.
Acessibilidade, mas sem efetivação
Para o advogado e presidente da Comissão de Direito Municipal da OAB-CE, Junior Bonfim, a lei representa um avanço civilizatório em Fortaleza, tornando a cidade mais inclusiva e empática. No entanto, fatores culturais e econômicos ainda são impedimentos para um cumprimento efetivo da norma.
Por exemplo, os valores dos fogos ruidosos são menores que os morteiros e bombas, levando as pessoas a preferirem os mais barulhentos. Também segundo Bonfim, o barulho e som alto estão costumeiramente ligados a celebrações festivas, sugerindo a ideia de que isso representa uma manifestação de alegria e euforia.
“Quando estamos em uma festa de aniversário, gritamos, cantamos e batemos palma em comemoração […] No Nordeste, em época de São João, fomos criados soltando bombinhas. Então, naturalmente as pessoas nunca conceberam isso como algo prejudicial”, diz.
Dessa forma, o advogado reforça a necessidade de educar os fortalezenses acerca da legislação. “A lei precisa estar assimilada e impregnada no coração das pessoas, tem que entender que aquilo é obrigatório”, explica.
O primeiro passo é exatamente sensibilizar as pessoas. Não é só o Poder Público chegar para punir, mas também educar. É possível, por exemplo, criar um programa de comércio consciente para os comerciantes serem orientados e recebam uma certificação, uma compensação por aquele bom trabalho.
Conforme a Agefis, a atuação mais importante do órgão é voltada para a parte educativa da população, diante da complexidade do flagrante. Por isso, as ações buscam conscientização sobre o transtorno e o risco à segurança que a queima de fogos barulhentos representa.
Segundo Regiane Paiva, gerente da agência fiscalizadora, como os fogos de artifícios barulhentos também configuram perturbação ao sossego público — uma contravenção penal que prevê pena de prisão simples ou multa — a maioria da população acaba recorrendo à Polícia, devido a sua maior abrangência em todo o município de Fortaleza.
“A depender do contexto, a atuação da Polícia pode ser mais efetiva. Se uma pessoa quer denunciar o que está acontecendo naquele momento, ela liga para a polícia. Mas se for uma coisa recorrente, de repente num clube onde toda festa que faz lança fogos, pode haver uma programação para tentar realizar o flagrante”, diz.
Uso proibido, venda liberada
Outro ponto é a questão da venda desses tipos de fogos barulhentos. No âmbito da legislação, a proibição se dá apenas em relação ao uso dos fogos e não ao comércio.
No caso, a fiscalização da Agefis sobre os pontos de comercialização se restringe à verificação do alvará de funcionamento e da vistoria do Corpo de Bombeiros, como explica a gerente do órgão.
Para Bonfim, é preciso contemplar essa questão para que se fortaleça o cumprimento da lei, além de esforços intersetoriais como a junção da Guarda Municipal de Fortaleza, Secretaria do Meio Ambiente e outros.
“Um tema dessa natureza não pode ser uma tarefa só de um órgão específico, que é a Agefis. Acredito ser preciso unir forças em uma ação interinstitucional”, explica.
A última atualização do assunto aconteceu em fevereiro, quando a Câmara Municipal de Fortaleza fez a apreciação de um novo projeto de lei n.º 18 de 2025 que prevê o aumento do valor das multas para quem utilizar fogos de artifício barulhentos, sem tratar da venda ou comercialização. A autoria é do vereador Erich Douglas (PSD).
Conforme a proposta, a penalidade para pessoa física subiria para R$ 300 e R$ 1.500 para pessoas jurídicas. Até o momento, o projeto está em tramitação na Casa Legislativa.
Estresse a grupos vulneráveis
No projeto que originou a lei de 2021, de autoria da deputada Larissa Gaspar (PT), os fogos barulhentos são descritos como causadores de estresse a animais, recém-nascidos, idosos, autistas e pessoas com sensibilidade auditiva.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, a veterinária comportamental Virna Lívia explica que os animais domésticos e silvestres possuem uma audição mais sensível que os seres humanos. Por exemplo, cachorros escutam até cinco vezes mais que o ouvido humano, logo “sons muito altos podem deixá-los atordoados e com medo”.
Além disso, o estresse causado pelos fogos pode desencadear em problemas de saúde mais graves, como infartos e convulsões, fora o risco de fugas e atropelamentos devido ao pânico sofrido.
“Alguns animais podem ter dificuldade de se alimentar, beber água e dormir bem após sofrerem um pico alto de estresse. Eles podem também apresentar agressividade devido ao medo, ficar acuados, escondidos e demorar de 48 a 72 horas para voltarem ao seu estado normal”, explica Virna.