Ocupação de área privada: de quem é a responsabilidade e como deve ser a remoção de famílias

Ação no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, foi de encontro a procedimento que deve ser seguido, segundo especialistas

Escrito por
(Atualizado às 08:39, em 17 de Dezembro de 2024)
Ocupação
Legenda: Ocupação "Deus é amor", no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, após ação de desocupação pelos proprietários do terreno
Foto: Thiago Gadelha

Da falta de moradias aos desafios da gestão pública com a desigualdade social, é amplo o cenário que tem feito as ocupações de terrenos privados se multiplicarem na cidade. Era o caso da “Deus é amor”, no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, de onde a população foi removida em ação que resultou na morte da vendedora Mayane Reis, de 28 anos, na madrugada da última terça (10). 

O Diário do Nordeste ouviu especialistas sobre como deve ser o procedimento legal na desocupação e o quê deve ser seguido em casos similares ao da ocupação no bairro da capital cearense.

Veja também

A defensora pública Elizabeth Chagas, supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria Pública do Estado, destaca que a desocupação deve ocorrer sob o respaldo de uma ação judicial, o que não foi cumprido no caso recente ocorrido na capital.

“O proprietário tem que manejar uma ação judicial, explicar a situação e entrar com o pedido de reintegração de posse. O juiz vai ler o processo, analisar as provas e pode conceder uma liminar, inclusive determinando o uso de força policial”, detalha a defensora.

Nesse caso, um oficial de Justiça vai antes ao local. Depois, os responsáveis vão ao terreno, com o auxílio da força policial, e fazem a desocupação legal. Com certeza não é de madrugada e de forma violenta.
Elizabeth Chagas
Supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Estado

Segundo Elizabeth, não existe registro de processo judicial (tampouco liminar concedida) solicitando a reintegração de posse do terreno onde estava a ocupação “Deus é amor”. “Foi uma ação do proprietário, que usou dos meios que entendeu”, pondera a supervisora do Nuham.

O Diário do Nordeste acionou o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), na terça-feira (10), para saber se existe algum processo em curso acerca da ocupação do local.

Em nota enviada na tarde desta quinta-feira (12), o TJCE informou que "o referido caso não se encontra dentre as demandas pertencentes ao acervo da Comissão Regional de Soluções Fundiárias do TJCE, tampouco foi localizado processo judicial com os parâmetros disponibilizados". A referida Comissão, adiciona o órgão, "não foi instada a atuar na questão".

Proprietários podem ser processados

A advogada Rafaela Ferraro, especialista em Direito Imobiliário e mestranda em gestão de conflitos, reforça que qualquer despejo ou reintegração de posse é de responsabilidade do dono do terreno ou imóvel – mas, para ser legal, deve ser precedido por um processo na Justiça. No caso da ocupação Deus é Amor, cerca de 500 famílias montavam moradias no  terreno privado. 

“O processo deve seguir os princípios do contraditório e ampla defesa, assegurando que os ocupantes também tenham o direito de se manifestar judicialmente, expondo os motivos de seus atos, e eventuais direitos”, complementa a advogada.

Caso o proprietário opte pela “justiça com as próprias mãos”, como ilustra Rafaela, e “desocupe o terreno sem ordem judicial, utilizando força ou coação para retirar os ocupantes”, ele pode incidir em diversos crimes e ser penalizado.

Mulher com marcas causadas por estilhaços, ferida durante desocupação
Legenda: Mulher com marcas causadas por estilhaços, ferida durante desocupação
Foto: Thiago Gadelha

“Crimes como: o esbulho possessório (art. 1.210, §1º, do Código Civil), que impede que o proprietário use a força para retomar a posse por conta própria; e constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal), por forçar as pessoas a saírem sem o devido processo legal”, lista.

Além disso, a advogada alerta que o proprietário do terreno pode responder por “eventuais ameaças, ensejando inclusive indenização por danos morais e materiais, sendo possível que as vítimas da desocupação forçada processem o proprietário”. 

“Por fim, de acordo com nossa legislação pátria, toda e qualquer ação e até omissão, geram responsabilidades civis, e o proprietário pode responder judicialmente pelas consequências da remoção forçada”, completa Rafaela.

Direitos dos ocupantes

Homem diante de destroços da ocupação em Fortaleza
Legenda: Ação de desocupação do terreno em Fortaleza ocorreu na madrugada de terça-feira (10)
Foto: Thiago Gadelha

A defensora pública Elizabeth Chagas frisa que o principal direito violado nesse cenário é o direito à moradia digna, que é constitucional. “É dever do Município, que é responsável pelo aluguel social, e o Estado como um todo precisa ter esse cuidado.”

Já Rafaela Ferraro observa que o acompanhamento da ação de desocupação por autoridades de segurança e assistência social “é necessária especialmente se envolver ocupações de grandes áreas”.

“A Constituição Federal e as leis processuais garantem que, ao realizar a desocupação, especialmente em áreas habitadas, seja respeitada a dignidade das famílias e pessoas envolvidas, tendo a operação que ser feita de forma ordenada e com o mínimo de impacto social”, frisa a advogada.

“É comum que o Ministério Público e órgãos de assistência social sejam envolvidos para garantir que as famílias vulneráveis tenham o devido amparo.”

Rafaela declara ainda que, “quando uma desocupação deixa diversas famílias vulneráveis, o poder público deve agir para implantar meios de proteção”, como: 

  • Oferecimento de abrigos temporários ou alternativas de moradia; 
  • Prestação de assistência social e psicológica às famílias afetadas; 
  • Implantação de políticas de regularização fundiária ou realocação, dependendo da situação de vulnerabilidade das pessoas. 

Em entrevista ao Diário do Nordeste, a titular da Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (Sedih), Socorro França, destacou que a oferta de políticas em múltiplas áreas de atuação será necessária para assistir as famílias da ocupação “Deus é amor”.

“Estamos agindo pra fortalecer a comunidade, fazendo o levantamento socioeconômico das famílias, identificando as demandas sociais, psicológicas e jurídicas pra encaminhamento dessas pessoas pras diversas políticas que o Estado tem, na assistência social, saúde, previdência entre outros”, informa.

Já a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), da Prefeitura de Fortaleza, informou, em nota, que "as famílias afetadas pela desocupação receberão, de forma prioritária, atendimento socioassistencial na sede do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) Jacarecanga, equipamento que atende o território".

A nota trouxe ainda um balanço sobre ações já realizadas na área habitacional e acrescentou que "o Pirambu é uma das áreas prioritárias das ações de política habitacional de interesse social realizadas pela Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor)".

Na terça-feira, o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), se pronunciou nas redes sociais informando que a Polícia está investigando "o episódio de violência ocorrido durante uma desocupação em área privada" e que provocou a morte de uma mulher de 28 anos.

Ocupação x invasão

Diante da entrada de indivíduos ou famílias em terreno privado, surge a dúvida: "ocuparam" ou "invadiram"? Apesar de no senso comum os termos ocupação e invasão serem confundidos, eles se referem a situações diferentes, como explica Rafaela Ferraro:

  • Ocupação: juridicamente, é a tomada de posse de maneira mansa e pacífica, que pode ser imediata ou aos poucos, em terras públicas ou privadas, e é comumente relacionada a situações de necessidade, como a busca por moradia, melhores condições etc. Em alguns casos, a ocupação pode ser regulamentada por lei, como ocorre com o usucapião, onde a ocupação prolongada de uma área pode resultar na aquisição de sua posse legal, e consequentemente a propriedade originária;
  • Invasão: envolve algum tipo de "força", algo contra o natural. O uso de violência, coação ou clandestinidade para entrar e permanecer em uma propriedade alheia. A invasão é caracterizada por uma ação que viola os direitos do proprietário de forma ilegal e, muitas vezes, abrupta e brusca. Em ambos os casos, o ato é sem o consentimento do dono da propriedade, mas a diferença reside no método e na intenção.

Newsletter

Escolha suas newsletters favoritas e mantenha-se informado
Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados