O que pode ser feito para salvar a última chácara do período colonial em Fortaleza
O Diário do Nordeste ouviu arquitetos envolvidos em discussões sobre preservação do patrimônio e elenca possíveis soluções que podem ser adotadas no caso
O caso da Chácara Salubre, em Fortaleza, se tornou um grande impasse que, caso não seja resolvido de forma rápida, a última chácara do período colonial na cidade pode desaparecer. Localizada em uma área de 4.815 m², no bairro Padre Andrade, a casa de 1802 foi tombada provisoriamente em 2020. Mas, os proprietários ressaltam que não têm dinheiro para preservá-la. O caso ilustra as dificuldades reais na proteção do patrimônio. Então, quais as alternativas? O que a Prefeitura pode fazer? A iniciativa privada pode atuar na situação?
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O Diário do Nordeste ouviu arquitetos envolvidos em discussões sobre preservação do patrimônio e elenca algumas possíveis soluções que podem ser adotadas no caso. Na situação, é preciso equacionar a alegada condição da família proprietária com a garantia de proteção real ao imóvel.
No atual momento, ao menos, duas alternativas práticas podem receber atenção dos interessados. Nos dois casos, as medidas são precedidas do tombamento definitivo do imóvel. São elas:
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Aquisição da Chácara pelo poder público (seja a Prefeitura ou o Governo do Estado, por exemplo);
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Venda para a iniciativa privada, permitindo alguma construção dentro do lote, mas preservando a chácara.
Nessa discussão, o primeiro ponto é que o imóvel está tombado provisoriamente desde julho de 2020. E ainda que essa proteção não seja definitiva, no que diz respeito à garantia de preservação, a obrigação legal é manter preservado o que ainda resta da edificação.
A família proprietária argumenta que não tem como reformar a casa e tem informado à Prefeitura as avarias que o imóvel vem passando no decorrer desse tempo. Uma delas, o desabamento da área lateral em março deste ano. O imólve, inclusive, foi interditado pela Defesa Civil por risco de queda da estrutura.
Desapropriação pelo poder público
A aquisição por parte do poder público é um caminho, inclusive os proprietários mencionam essa possibilidade. Antes da descoberta do tombamento, a família iniciou uma negociação com uma construtora de venda da chácara por R$ 5 milhões. Mas, dizem não se recusar a negociar com a Prefeitura, caso a gestão decida desapropriar e o valor seja justo.
Em Fortaleza, um exemplo desse tipo de procedimento é o que o Governo do Estado anunciou via decreto em março de 2022, com a desapropriação do Edifício São Pedro, na Praia de Iracema, para dar lugar a um equipamento da cultura.
Na ação, o Governo declarou o imóvel - que já havia sido destombado pela Prefeitura - como de utilidade pública e pediu a desapropriação. Os gastos com o procedimento devem ser custeados pelo tesouro estadual.
Julia Jereissati, coordenadora do Grupo de Trabalho de Patrimônio do Instituto de Arquitetos do Brasil no Ceará (IAB-CE), opina que “pela situação em que a família se encontra, o mais prudente seria a própria prefeitura adquirir o bem e restaurar com um novo uso”. Ela acrescenta que, nesse caso, “é de extrema importância o respeito pelos limites visuais e até estratégicos para a história do bem”.
Um bem que carrega consigo para além da beleza arquitetônica precisa de cuidados e ter sua devida importância preservada para que se continue, como é o caso da Chácara Salubre, como um marco temporal do crescimento da cidade. A cidade e os governantes precisam olhar com respeito ao que já foi história um dia.
A especialista complementa ainda que “numa cidade em que a verticalização é uma crescente, manter uma ambiência é como um sinal de respeito para aquele bem já pretérito sobreviva no caos urbano atual”.
“Existem várias possibilidades de uso, inclusive que possa de alguma forma sustentar o bem economicamente, além de várias possibilidades de restauro. É preciso interesse e de profissionais qualificados para reedificá-la, afinal de contas, a Chácara tem em suas paredes e limites a história da formação do Estado do Ceará, além de ser o único exemplo ainda (quase) de pé de uma chácara colonial em Fortaleza”, avalia Julia.
Venda com manutenção da chácara
Outra possibilidade é a venda para a iniciativa privada, com permissão de alguma construção dentro do lote, mas preservando a chácara. Fortaleza, também tem um exemplo de preservação de chácara nesse sentido.
No bairro Montese, o parque residencial Chácara Paraíso, tem uma chácara preservada e prédios residenciais cercam a edificação que serve como salão de festa. Contudo, no caso de abertura a construção no terreno é preciso ponderar se há espaço suficiente de modo a preservar também a ambiência e a paisagem ao redor.
O arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal do Ceará (UFC), Romeu Duarte, destaca que a Chácara Salubre “encontra-se no olho do furacão”.
Sua preservação depende do aproveitamento da gleba por um projeto arquitetônico racional, de qualidade e ousado, destemido em relação às possibilidades que a realidade oferece. Não faz sentido exigir que todo bem imóvel, uma vez protegido, seja sempre adquirido pela esfera pública. O setor privado pode e deve dar o bom exemplo, aliás, há muito está devendo uma resposta qualificada ao desafio.
De acordo com ele, o grande desafio, nessa alternativa é garantir a ambiência natural e o cenário paisagístico imediatos da antiga residência e “reservar, segundo um adequado plano-mestre, as áreas objeto da intervenção pretendida pelo empreendedor privado, certamente de natureza residencial multifamiliar”.
Ele pondera que “se o projeto for o de um equipamento público, com menor aproveitamento do terreno, mesmo assim providências semelhantes teriam também que ser tomadas”. Mas, destaca, “nada que um bom e ajuizado projeto de arquitetura não resolva”.
Perguntado se faltam diálogos mais coordenados e sistemáticos entre poder público e iniciativa privada no sentido de alinhar e executar a preservação do patrimônio, o arquiteto destaca que “nunca presenciei uma reunião sequer entre o poder público e a iniciativa privada para tratar do assunto. A ação do primeiro ente se caracteriza sempre pela morosidade, quando não pela omissão, enquanto que a do segundo é a política da terra arrasada. Está mais do que na hora de iniciarmos uma discussão séria e produtiva sobre esse assunto”.
Romeu reforça que “a preexistência edificada de valor histórico-cultural não é intocável e, por outro lado, não deve ser destruída com o argumento de que atrapalha o progresso”.