O que pode ser feito para resolver o conflito territorial entre Ceará e Pernambuco?

A resolução do impasse territorial entre Salitre (CE) e Ipubi (PE) envolve, além das prefeituras, também os governos, pois trata dos limites municipais e das divisas

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
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Legenda: A Prefeitura de Salitre indica que vai judicializar o caso
Foto: Ismael Soares

O conflito territorial envolvendo Salitre, no Ceará, e Ipubi, em Pernambuco, no qual a cidade cearense perde área para o estado vizinho, perdura há anos, mas voltou a ganhar evidência com o Censo Demográfico 2022. O caso retratado pelo Diário do Nordeste, essa semana, tem uma comunidade rural, com cerca de 1.000 moradores no centro do impasse. Essa população se reconhece como salitrense, mas tem sido considerada pernambucana. Diante do caso, o que é possível, e o que tem sido feito para resolver a questão? 

Na tentativa de solucionar o conflito, as instituições do Ceará têm se mostrado mais ativas. O caso não chega a ser um litígio, mas a Prefeitura de Salitre, embora sem precisar prazo, disse ao Diário do Nordeste que pretende ingressar na Justiça para desfazer o impasse. 

O grau de dificuldades de resolução do caso é alto, pois não diz respeito somente aos limites entre os dois municípios, o que, em tese, tornaria mais fácil uma definição. O impasse vai além: afeta a divisa entre dois estados.

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Essa reportagem é a quarta de uma série especial que aborda o impasse territorial envolvendo Ceará e Pernambuco e como isso afeta a vida e a identidade dos moradores da área em questão; o funcionamento de equipamentos públicos nesse território e a utilização da área nos processos eleitorais. 

O Diário do Nordeste ouviu as prefeituras das duas cidades, os órgãos estaduais responsáveis pela definição da representação cartográfica dos limites municipais e o IBGE em busca de responder o que pode ser feito. 

Possível soluções para conflito Ceará e Pernambuco

De modo geral, as instituições apontaram os seguintes caminhos: 

  • Prefeitura de Salitre: Para a gestão municipal, o IBGE precisa rever a malha de divisas e seguir adotando as mesmas marcações utilizadas até 2010; 
  • IPECE: Conforme o Ipece, devido à falta de uma norma que defina a divisa estadual, a proposta é que que seja adotado o instrumento jurídico do “Uti possidetis” (princípio que considera que a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa) e assim as áreas historicamente administradas pelos dois estados permaneçam para ambos, sem trazer prejuízos à população;
  • Prefeitura de Ipubi: Segundo a gestão municipal, a decisão deve partir dos órgãos estaduais (Assembleias Legislativas e instituições estaduais responsáveis pela demarcação dos limites), de modo que se reúnam e entrem em acordo;
  • Condepe/Fidem: O órgão de Pernambuco avalia que esse pleito envolve os limites interestaduais, e os mesmos devem ser tratados na esfera federal, através do IBGE; 
  • IBGE: Para o IBGE, a decisão deve partir dos órgãos estaduais (Assembleias Legislativas e instituições estaduais responsáveis pela demarcação dos limites), de modo que se reúnam e entrem em um acordo. Leis com a revisão dos limites municipais devem ser sancionadas nos estados. Em seguida, uma lei com a atualização das divisas entre Ceará e Pernambuco deve ser aprovada na Câmara Federal. Somente depois desse trâmite, o IBGE atualiza as referências usadas, por exemplo, no Censo Demográfico.  

Pedidos pela via administrativa

Ao Diário do Nordeste, o secretário de Administração e Finanças de Salitre, Heliomar Henis, disse que, desde que o problema foi detectado, a gestão tem procurado o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Já conversamos com o presidente do IBGE em Fortaleza, temos uma parceria boa com a Assembleia Legislativa. Temos o IPECE que fez inclusive o estudo minucioso dessa situação em Salitre. Fizemos alguns pedidos administrativos para o IBGE e agora já estamos nos preparando para pedir judicialmente”, afirmou. 

Para a Prefeitura, diz o secretário, “não é um litígio. É uma questão que foi somente um erro do IBGE. O estado de Pernambuco não tem culpa nenhuma nisso. Eles nem têm interesse”. 

De acordo com ele, em conversa com municípios vizinhos foi detectado que os mesmos não “tinham conhecimento dessa situação e que, na verdade, não têm possibilidade de prestar o serviço assistencial dado devido à distância e por reconhecer que não é obrigação deles, por não se tratar de uma faixa territorial que esteja dentro da sua circunscrição”. 

O secretário admite que no Brasil muitos limites e divisas não foram traçados de forma clara em lei e,  no decorrer dos anos, os tratados que criaram as divisões foram sendo apropriados de modo informal por quem habita esses locais. Mas, destaca, a área em questão sempre pertenceu a Salitre, tanto é que: “nunca, em nenhum momento, seja na nessa gestão ou em outras, Salitre deixou de prestar assistência àquele povo”. 

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Legenda: A produção de mandioca é uma principais atividades econômicas do município de Salitre
Foto: Ismael Soares

A gestão municipal enfatiza que o estudo feito pelo IPECE, que já foi encaminhado ao IBGE, será usado também para instruir uma ação na Justiça. Questionado sobre as respostas dadas pelo IBGE à Prefeitura, o secretário disse que preferia não declarar nada nesse sentido. 

“O que a gente quer é simplesmente que seja considerado a divisa que historicamente sempre foi. Foi uma medição unilateral feita por parte do IBGE e, diga-se de passagem, o IBGE não é nosso inimigo, é um aliado que estamos lutando junto para corrigir. Não queremos um palmo de terra de outro estado, de outro município, Pernambuco sabe disso. O que nós queremos é que, de fato, seja reconhecido o limite de Salitre como toda vida foi”. 
Heliomar Henis
Secretário de Administração e Finanças de Salitre

Ao Diário do Nordeste a Prefeitura de Ipubi disse, por meio do secretário de Governo, José Silvino de Souza, que não compete “aos municípios decidirem através de um acordo ou consenso esta mudança de territórios entre os dois municípios”, pois, destacou ele, “se trata de uma mudança de território entre estados”, o que afetaria a divisa no mapa do Brasil. 

“A decisão deve partir dos órgãos estaduais. A sugestão é que Salitre entre em contato com o órgão responsável no estado do Ceará ou do próprio Pernambuco, que no caso o  Condepe/Fidem (Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco) e veja qual o meio possível para se resolver este impasse”. 
José Silvino de Souza
Secretário de Governo de Ipubi

IPECE produziu um estudo técnico

Sobre a situação, o IPECE, instituição responsável pela gestão e definição da representação cartográfica dos limites municipais cearenses, diz que, realizou um estudo técnico em parceria com o Comitê de Estudos de Limites e Divisas da Assembleia Legislativa e diagnosticou que esse limite de Salitre e outras cidades do Ceará foi ajustado cartograficamente pelo IBGE entre os anos de 2000 e 2007.  

mapa

A alteração, conforme o levantamento feito pelo IPECE e pela área técnica da Assembleia Legislativa, além de Salitre e Ipubi, afeta a demarcação de Salitre com Araripina (PE); do Araripe (CE) com Ipubi e Bodocó (PE). No total envolve uma área de 344 km².

No estudo feito pelo IPECE o órgão aponta que: 

  • O IBGE é uma instituição de excelência, possuindo expertise técnica em estudos territoriais e, nesse contexto, solicita-se a revisão da divisa entre Ceará e Pernambuco atualmente praticada pelo IBGE no trecho de Salitre e Araripe, já que a mudança feita entre 2000 e 2007 gerou perda de território para o estado do Ceará; 
  • Em 2015, houve a alteração da malha de divisas entre o Ceará e Piauí por parte do IBGE em um trecho entre Cocal e Granja, com a justificativa de “imprimir força normativa à realidade histórica, em homenagem ao princípio da segurança jurídica”, conforme parecer jurídico da Procuradoria Federal do IBGE. Entende-se que o mesmo critério pode ser adotado no caso entre Ceará e Pernambuco;
  • Devido à falta de legislação que defina a divisa estadual, o instrumento jurídico do “Uti possidetis” (que dirime litígios cíveis, que envolvem a posse de imóveis, ratificando a permanência legal dos direitos do atual proprietário) pode se tornar aplicável a divisa CE/PE, de modo que as áreas historicamente administradas pelos dois Estados permaneçam para ambos, sem trazer prejuízos à população.

A lei de 2019 alterou ou não o limite?

No Ceará, a Lei Estadual 16.821 de 2019 atualizou e estabeleceu os limites dos 184 municípios. Segundo o IBGE, essa norma é utilizada como referência pelo órgão. A mesma norma foi utilizada pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) Ceará para definir que duas escolas localizadas na área em questão não poderiam mais servir como locais de votação pois estariam fora do Ceará. 

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Questionado pelo Diário do Nordeste se há possibilidade de revisão dessa norma, tendo em vista o impasse em Salitre, o IPECE ressalta que: “a Lei 16.821 do ano de 2019, aprovada pela Assembleia Legislativa, tem abrangência legal somente quanto aos limites municipais cearenses. Em relação às divisas estaduais, essa atribuição cabe ao Governo Federal”.

A instituição pondera que está em curso o Projeto Atlas de Divisas Municipais Georreferenciadas do Ceará, referente a um acordo de cooperação técnica celebrado entre o IPECE, o IBGE e a Assembleia Legislativa, e nesse projeto, diz, “foram realizadas reuniões para resolver o impasse ocasionado com pelo ajuste cartográfico”. 


Como encaminhamento das reuniões, informa o IPECE, “ficou acordado que os municípios de Salitre e Araripe iriam solicitar administrativamente, via ofício, a revisão, por parte do IBGE, do ajuste cartográfico feito entre os anos de 2000 e 2007, de modo que o IBGE possa atualizar a divisa seguindo a situação administrativa histórica e, em seguida, essa divisa será adotada pelos órgãos estaduais”. 

“Resposta a recurso será a mesma”, diz IBGE

O superintendente do IBGE Ceará, Francisco Lopes, disse ao Diário do Nordeste que o órgão “trabalha com a sistemática que é utilizada em todo o Brasil”, na qual municípios definem a divisão própria (os distritos) e o IBGE “analisa a lei e verifica se ela está atendendo a todos os pré-requisito e implementa essas alterações de distritos”. Para os limites das cidades, há uma lei estadual.  

“Essa lei aprovada pela Assembleia Legislativa de cada estado, sancionada pelo governador e depois que ela é publicada, o IBGE recebe, faz o estudo e atualiza os seus mapas. No caso de limite interestadual essa lei é aprovada pela Câmara Federal e, depois disso, o IBGE examina a lei e faz a mudança nos mapas que forem necessários. Essa é a sistemática que é aprovada e utilizada pelo IBGE”. 
Francisco Lopes
Superintendente do IBGE Ceará

Lopes defende que qualquer discussão que houver em relação ao limite tem que incluir a Assembleia Legislativa, instituição que tem inclusive uma comissão própria para as questões de divisas e limites. 

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Foto: Ismael Soares

No caso de Salitre, o superintendente argumenta que “há necessidade de que a Assembleia do Ceará e a de Pernambuco, juntamente com os órgãos responsáveis pela divisão política dos estados, cheguem a um consenso". A partir daí, diz ele, uma proposta pode ser apresentada à Câmara Federal para votação. “Feito isso, o IBGE recebe e faz a alteração nos mapas”, completa. 

Segundo Lopes, nos últimos anos, sempre que divulgada a projeção da população, a Prefeitura de Salitre entra com recursos administrativos junto ao IBGE contestando os números. 

“Ele (prefeito) já apresentou esse recurso em 2021, 2022 e agora em 2023. O de 2023 a gente fez a instrução do processo, ele seguiu para o Rio de Janeiro e, brevemente, o prefeito vai receber a resposta. Provavelmente, vai ser uma resposta que nem as anteriores porque não houve qualquer mudança nessa ação, ou seja, os estados não sentaram, os órgãos estaduais não sentaram, então, não houve alteração que permita ao IBGE fazer as mudanças no mapa”. 
Francisco Lopes
Superintendente do IBGE Ceará

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