A PEC da Privatização das Praias e o agravamento dos conflitos socioambientais

Da experiência com projetos de pesquisa, não temos dúvidas em concluir que a alteração da Constituição proposta não trará benefícios à sociedade

Legenda: Para as zonas de praia, o mais coerente é uma proposta do Executivo Federal de apoio estrutural aos municípios e aos estados para fortalecer seus instrumentos de planejamento e fiscalização, sem abdicar do protagonismo do zelo pelo patrimônio nacional
Foto: Fabiane de Paula

No Laboratório de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Ceará (UFC), estudamos a urbanização nas zonas de praia há mais de 20 anos. Durante esse período, dedicamo-nos a entender porque e como essa parcela do território é tão disputada por diferentes agentes sociais, sobremaneira para fins econômicos e/ou de sobrevivência. Ao longo dessa trajetória de pesquisa, especializamo-nos na avaliação dos empreendimentos turísticos e imobiliários e seus consequentes efeitos na planície litorânea, mais ainda, nas terras à beira-mar. Isso tudo, permite-nos entrar na discussão acerca da PEC 3/2022, a conhecida PEC da “Privatização das Praias”.

Os chamados “terrenos de marinha”, que não são da Marinha, mas sim da União (do Povo Brasileiro), têm na Secretaria do Patrimônio da União (SPU) uma instituição séria e com expertise para, em parceria com Estados e Municípios, guardar os interesses nacionais, ou seja, garantir a proteção e uso democrático das praias.

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Desde os anos 1990, iniciativas de cooperação entre União e municípios no processo de gestão e planejamento dos terrenos de marinha foram propostas, entre elas, podemos mencionar o Projeto Orla. Essa proposta é inclusive um bom indicador para refutar os argumentos dos defensores da PEC. Na sua essência, o Projeto tinha como objetivo repassar aos municípios costeiros a responsabilidade de planejamento e gestão dos seus respectivos trechos de praia. Fato é que a maioria dos municípios litorâneos não apresenta estruturas técnicas e de planejamento suficientes para, por conta própria, bem gerir seus espaços, necessitando das estruturas do Estado e da União.

De um lado, não percebemos nenhum ganho significativo às comunidades tradicionais ou às áreas de preservação situadas nesse território. Por outro lado, pelos vários conflitos hoje constatados nas publicações científicas e nas ações do Ministério Público, a tendência é que se incremente o número e a magnitude dos problemas socioambientais, sobremaneira, através de ações judiciais e do uso do poder econômico a reivindicar a instalação de empreendimentos privados nas áreas popularmente ocupadas.

Voltando ao caso dos usos turísticos da orla, inclusive muito incentivado pelas políticas públicas, são diversos os exemplos de conflitos socioambientais: fechamento e/ou dificuldade de acesso aos trechos da praia; construção em zonas ambientalmente frágeis; expulsão de comunidades tradicionais; disputas judiciais pela propriedade da terra e esgotamento de recursos naturais, como os recursos hídricos subterrâneos. Não verificamos no texto em discussão no Senado nenhuma medida que contribua para solucionar essas situações.

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Para as zonas de praia, o mais coerente é uma proposta do Executivo Federal de apoio estrutural aos municípios e aos estados para fortalecer seus instrumentos de planejamento e fiscalização, todavia, sem jamais abdicar do protagonismo do zelo pelo bem público e pelo patrimônio nacional.

Da experiência adquirida no desenvolvimento dos projetos de pesquisa, não temos dúvidas em concluir que a alteração da Constituição proposta não trará benefícios à sociedade. Contrariamente, tende a ampliar os conflitos e permitir uma enxurrada de apropriações inadequadas, privatizando trechos da praia, além de promover impasses socioambientais maiores dos que já registramos. Concluímos que a PEC 03/2020 é inoportuna e deveria ser arquivada.