Fortaleza perdeu equivalente a 108 campos de futebol em área ambiental com mudanças no Plano Diretor

Leis complementares, propostas por prefeitos ou vereadores, aprovadas na Câmara Municipal alteraram o zoneamento da cidade, reduzindo espaços que precisam de preservação ou proteção

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: Na Macrozona de Proteção Ambiental definida em 2009, as Zonas de Recuperação Ambiental (ZRA) e Zonas de Interesse Ambiental (ZIA) foram as que sofreram maior número de alterações por leis complementares.
Foto: Nilton Alves

Em Fortaleza, o atual Plano Diretor, principal lei municipal que orienta como a cidade deve ser ocupada e crescer, vale desde 2009 e está sendo revisado. Um dos dilemas no cumprimento dessa norma é que, apesar do estabelecimento de proteção e preservação de áreas ambientais, devido às características delas, leis complementares aprovadas após 2009, têm alterado o zoneamento proposto no Plano e o efeito, em muitos casos, é o avanço de construções em espaços que deveriam ter mais restrições de ocupação. De 2009 até o momento, a Capital perdeu 108 hectares de terra, cerca de 108 campos de futebol, em área ambiental. 

A constatação dessa perda de áreas verdes foi registrada em um documento produzido pelo Consórcio Quanta-Gênesis, contratado pela Prefeitura de Fortaleza para atuar na revisão do Plano Diretor da cidade. A norma na capital cearense deveria ter sido atualizada em 2019, mas sofreu atrasos. O documento do Consórcio Quanta-Gênesis, intitulado "produto 2: Olhar para Fortaleza: análise crítica do plano diretor 2009", é público e está disponível na plataforma online do Plano Diretor

O documento registra as mudanças no zoneamento da cidade desde 2009 e aponta que o principal alvo da flexibilização são as áreas verdes. O cenário é fruto de alterações legislativas feitas no Plano Diretor no decorrer dos anos, em distintas gestões.

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Na prática, ou prefeitos ou vereadores propõem por meio de leis complementares que tramitam na Câmara Municipal a alteração do zoneamento ambiental previsto no Plano Diretor e, ao ser aprovada, a nova regra gera uma ocupação mais intensa do solo nos espaços que antes tinham mais restrições. 

Nessa dinâmica, áreas que estavam enquadradas na macrozona de Proteção Ambiental, por exemplo, com restrição de construções, passam a ser caracterizadas como pertencentes à outra macrozona, a de Ocupação Urbana, e com isso, a preservação é flexibilizada. 

Quais áreas ambientais foram reduzidas?

No atual momento, o Plano Diretor de Fortaleza passa por revisão e o documento produzido pelo Consórcio Quanta-Gênesis sobre a análise da situação do Plano Diretor em vigor, aponta que na redução de quase 109 hectares na Macrozona de Proteção Ambiental definida em 2009, as Zonas de Recuperação Ambiental (ZRA) e Zonas de Interesse Ambiental (ZIA) “foram as que sofreram maior número de alterações por leis complementares”.

Conforme o documento, a equação foi a seguinte: 

  • Zona de Preservação Ambiental (ZPA): houve expansão de 231 hectares;
  • Zona de Recuperação Ambiental (ZRA): houve redução de 241 hectares;
  • Zona de Interesse Ambiental (ZIA): houve redução de 98,5 hectares;

Nessa dinâmica, a Macrozona de Proteção Ambiental de Fortaleza (que une ZPA, ZRA e ZIA) perdeu 108,5 hectares. Na comparação dos mapas que constam no documento bairros como Messejana, Floresta, Parangaba, Sabiaguaba, Manoel Sátiro, Parque Presidente Vargas, Conjunto Palmeiras e São Gerardo são alguns dos afetados pelas mudanças no zoneamento. 

No documento consta que “é perceptível que a maior supressão ocorreu na Zona de Recuperação Ambiental que contém o Parque do Cocó, no bairro Edson Queiroz”. O documento diz ainda que “segundo a Prefeitura Municipal de Fortaleza, havia imprecisões na delimitação das zonas em 2009, que foram corrigidas”.

No que diz respeito à ampliação ocorrida na Zona de Preservação Ambiental, boa parte delas ocorreu no entorno da barragem do Rio Cocó, no Bairro Conjunto Palmeiras, e na Zona de Preservação Ambiental das Dunas da Praia do Futuro, diz o documento.  

Um exemplo recente desse movimento ocorreu no dia 16 de maio, quando vereadores aprovaram dois projetos de lei que alteram a classificação prevista no Plano Diretor de áreas de proteção ambiental às margens do Parque Rachel de Queiroz, nos bairros Presidente Kennedy e São Gerardo. As propostas são de autoria do ex-vereador Antônio Henrique (PDT) - subscrita pelo presidente da Câmara, Gardel Rolim (PDT) - e do vereador Adail Júnior (PDT). Elas aguardam agora a decisão do prefeito José Sarto (PDT) sobre validade ou veto. 

Como a cidade é dividida no Plano Diretor?

No Plano Diretor, de modo geral, a cidade é dividida em macrozonas, a partir de elementos como os sistemas ambientais, vegetação, mobilidade, características das áreas, infraestrutura e equipamentos públicos, dentre outros. 

No Plano Diretor de Fortaleza, o território da cidade tem duas macrozonas: 

  • Ocupação urbana e;
  • De proteção ambiental

Essa macrodivisão busca equilibrar a ocupação do solo urbano e a preservação do meio ambiente. Cada zona desta se subdivide em outras. 

No contexto de Fortaleza, as áreas de proteção ambiental são aquelas composta por ecossistemas de interesse ambiental e por áreas destinadas à proteção, preservação, recuperação ambiental e ao desenvolvimento de usos e atividades sustentáveis. 

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A arquiteta e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (LEHAB/UFC) e do Observatório das Metrópoles, Sara Rosa, explica que, na legislação, as questões relativas à proteção ambiental, as categorias “vão de uma preservação total, mais restritas, a outras, de proteção em que são permitidas algumas mudanças, mas sem descaracterizar demais a área”. 

Essa lógica é seguida no Plano Diretor de Fortaleza e as áreas ambientais têm uma certa gradação na permissão de uso e construção. 

As macrozona de proteção ambiental no atual Plano Diretor de Fortaleza se dividem em: 

  • Zona de Preservação Ambiental (ZPA) - áreas com restrições total de uso não sendo permitidas construções. Engloba a faixa de preservação permanente dos Recursos Hídricos; faixa de praia (incluindo praias como Barra do Ceará, Leste Oeste, Iracema, Meireles, do Futuro, Sabiaguaba, dentre outras) e o Parque Natural Municipal das Dunas de Sabiaguaba. Pressupõe  preservação permanente. 
  • Zona de Recuperação Ambiental (ZRA) - áreas parcialmente ocupadas e com atributos ambientais relevantes que foram degradados. Nela se pretende proteger a diversidade ecológica, disciplinar os processos de ocupação do solo, recuperar o ambiente natural degradado e assegurar a estabilidade do uso dos recursos naturais, buscando o equilíbrio socioambiental. Pressupõe proteção e permite construção com moderação
  • Zona de Interesse Ambiental (ZIA) - áreas originalmente impróprias à ocupação do ponto de vista ambiental, com incidência de atributos ambientais significativos nas quais a ocupação ocorreu de forma ambientalmente inadequada (inclui as dunas do Cocó; dunas da Praia do Futuro e as da Sabiaguaba). O uso nesse caso deve ser sustentável. Pressupõe proteção e permite construção com moderação

O que pode reduzir a flexibilização?

O arquiteto e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Design da Universidade Federal do Ceará (UFC), Stelme Girão de Souza, que é membro do Quintau Coletivo, organização que realiza assessoria técnica popular, e tem acompanhado a formulação do novo Plano Diretor, reforça que é de extrema importância a implementação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano na Capital. 

Isso porque o Conselho previsto no Plano Diretor de 2009, mas que não saiu do papel, pode representar uma maior participação da sociedade civil em decisões que afetam o planejamento urbano da cidade. O Conselho deveria ter sido regulamentado ainda em 2009, em até 6 meses após a aprovação da Lei em fevereiro daquele ano, mas após mais de 10 anos, nenhuma gestão (Luizianne Lins, Roberto Cláudio e Sarto Nogueira) o regulamentou.

Foto: Nilton Alves

Outra medida, explica ele, que é última revisão do produto de propostas do Plano Diretor disponível há uma proposta de “uma Plataforma Digital de Monitoramento (PDM), que funcionaria para um efetivo e transparente sistema de monitoramento do Plano, onde será futuramente desenvolvido um portal de avaliação a partir de indicadores e metas de desempenho”, afirma. Mas, Stelme pondera que

“A efetividade de qualquer uma dessas propostas não é garantida sem que haja vontade política das organizações da municipalidade para com o dever de garantir a efetividade das propostas descritas no plano, sobretudo no que diz respeito à preservação das áreas ambientais da cidade. Fortaleza, mesmo sendo uma das capitais brasileiras que mais perdeu áreas verdes nos últimos cinco anos, ainda não possui uma política ambiental rígida capaz de garantir o arrefecimento desse processo”. 
Stelme Girão de Souza
Arquiteto e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC

Ele também reforça essa movimentação paralela de aprovação de leis na Câmara flexibilizando o zoneamento do Plano Diretor “revela o desrespeito ao processo participativo que tem sido conduzido em paralelo com baixíssima participação dos representantes da Câmara que irão futuramente votar o novo plano”. 

A arquiteta e pesquisadora do LEHAB/UFC e do Observatório das Metrópoles, Sara Rosa, destaca que Fortaleza “já começou a perder essas áreas (de proteção) no próprio processo de formulação do Plano Diretor em 2009”, quando, explica ela, a proposta que virou lei  “deixou de incorporar áreas que deviam ser de preservação permanente, especialmente, nas dunas com vegetação, como no Cocó e na Praia do Futuro, e teve flexibilização dos parâmetros permitindo construir mais”. 

Foto: Nilton Alves

Depois que a lei foi aprovada, reitera, Fortaleza foi vivenciando “várias outras alterações tanto suprimindo áreas como com mudanças de parâmetros”. Essas mudanças, avalia, “ são contraditórias, pois o Plano Diretor precisa ser participativo e acaba sendo alterado, via novas regras propostas por vereadores e prefeitos, sem o debate coletivo”. 

O que diz a Prefeitura sobre as mudanças?

Questionada sobre esse movimento de flexibilização do Plano Diretor no decorrer dos anos, a Prefeitura respondeu que a norma ao estabelecer o zoneamento ambiental leva em conta as áreas de importância ambiental, como as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e as Unidades de Conservação.

Mas, diz a gestão, “independentemente de serem indicadas ou não no zoneamento ambiental, essas áreas já detém regime jurídico de proteção ambiental decorrente do Código Florestal e da Lei Federal 9.985/2000”. 

A Prefeitura aponta que o zoneamento ambiental proposto não exclui a proteção ambiental das áreas indicadas decorrentes de outras normas, tais como Código Florestal e a lei federal mencionada, mas sim complementa o que está definido nas demais legislações. Logo, “para a legislação ambiental, a proteção mais restritiva prevalece sobre as demais proteções”.

A gestão diz ainda que, tendo em vista essas premissas, “a Câmara Municipal de Fortaleza, imbuída de suas atribuições pertinentes, terá um conjunto de informações e subsídios para as tomadas de decisões”. 

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