O ano é 2020. Uma menina de dez anos foi estuprada pelo tio no Espírito Santo e engravidou. A família só descobriu a gestação quando ela estava com 19 semanas. Crianças não são mães e muitas vezes nem entendem o que está acontecendo com seus corpos. Neste caso, ameaçada pelo tio estuprador, a menina se calou.
Quando a família descobriu, buscou o direito ao aborto, garantido pela legislação brasileira apenas em tese. Foram mais algumas semanas dentre os procedimentos legais e enfim encontrar um profissional e uma unidade de saúde para assegurar o direito.
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A menina precisou cruzar o País até Pernambuco para conseguir o procedimento, que esperou com uma boneca de pano nas mãos. Não bastasse tudo isso, a família ainda foi intensamente assediada por políticos e religiosos, que tentavam evitar o aborto que a menina, uma criança, e sua família queriam.
Agora, o projeto de lei 1904 quer criminalizar meninas como esta ao equiparar o aborto realizado por vítimas de estupro depois da “viabilidade fetal” — hoje considerado 22 semanas de gestação — ao crime de homicídio, com pena de seis a 20 anos. Se virar lei, crianças estupradas vão ser revitimizadas. Não é exagero dizer que terão seus corpos mais uma vez torturados ao serem obrigadas a seguir com a gestação, caso não seja seu desejo.
A lesgislação brasileira hoje autoriza aborto em qualquer período gestacional em três casos: estupro, risco para a mãe e anencefalia. Mesmo assim, não é fácil fazer um aborto legal no País. É difícil encontrar uma unidade de saúde e um profissional dispostos a fazê-lo. E mesmo conseguir a autorização judicial pode ter seus entraves. Como não lembrar da menina que engravidou duas vezes por estupro e teve o direito ao aborto negado pela Justiça no Piauí?
Além disso, o tema costuma vir repleto de preconceitos e julgamentos, mesmo quando o abortamento é espontâneo. Não são raros os relatos de mulheres que não receberam o tratamento adequado por terem sido julgadas pelos profissionais. Quem não conhece alguém que passou por algo assim?
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Para os que argumentam que, com o tal PL 1904, ainda será possível fazer o aborto antes das 22 semanas gestacionais, é importante lembrar que mais de mil mulheres precisaram sair de suas cidades (e até de seus estados) em 2023 para conseguir realizar um aborto legal. Essa dificuldade para acessar o direito é apontada por especialistas como uma das causas do aborto tardio. Além disso, não esqueçamos que o texto do projeto de lei é vago e abre brecha sobre a determinação de qual o momento da tal “viabilidade fetal”. E se alguns juízes passam a considerá-la a concepção? Os primeiros batimentos? Oito semanas?
Precisamos falar (muito) sobre o aborto no Brasil, mas precisamos especialmente ouvir as mulheres. O tema precisa deixar de ser pautado apenas por grupos políticos conservadores e fundamentalistas para chegar ao debate público com os pés no chão. Vamos olhar para o que acontece neste País?
O Brasil é o terceiro país que mais acessa a plataforma Safe2choose, um projeto internacional sem fins lucrativos que combate os abortos inseguros em 180 países. Seis de cada dez buscas são para fazer aborto com medicamentos. A interrupção da gestação é real em uma expressiva parcela das pessoas com útero, mas o silêncio só multiplica os estigmas e o sofrimento.
Países desenvolvidos que autorizaram o aborto já provaram que descriminalizá-lo não aumenta os casos, mas reduz as desigualdades e salva vidas. Criminalizar o aborto não impede mulheres de abortar, mas mata espacialmente mulheres pobres, que se arriscam em procedimentos sem qualquer atenção médica. Que todo o movimento que surgiu a partir dos absurdos do PL 1904 — nas redes ou nas ruas — seja uma oportunidade de enfim fazermos um debate sério sobre o tema. Por nossas meninas e também por todas as mulheres.