‘Não é só aparar a criança’: parteiras tradicionais do Ceará resistem e mantêm ofício ancestral
No início de maio, o ofício, os saberes e as práticas das parteiras tradicionais do Brasil foram reconhecidos como Patrimônio Cultural do País pelo Iphan
Na primeira de cinco gestações, Thatiane Terra, 44, permitiu-se ouvir a própria intuição e buscou uma parteira tradicional para acompanhá-la na chegada do primogênito. Ela havia decidido deixar a capital cearense para morar mais próximo à natureza, e foi no meio dessa viagem, em visita aos Tremembé de Almofala, em Itarema, que encontrou Dijé, a mulher que dali para frente iria guiá-la como uma mãe.
Nesse período, a vida de Thatiane seguiu por um novo rumo. Duas semanas antes de entrar em trabalho de parto, ela foi chamada por uma vizinha que estava prestes a dar à luz e aparou um bebê pela primeira vez. E assim ela percebeu a própria vocação. “A gente só vem descobrir depois, no momento certo, mas a gente já nasce parteira”, diz.
No dia 9 de maio, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu o ofício, os saberes e as práticas das parteiras tradicionais do Brasil como Patrimônio Cultural do País. Com a aprovação unânime na 104ª Reunião do Conselho Consultivo, o novo patrimônio será inscrito no Livro de Registro dos Saberes, que reúne bens culturais imateriais.
O Diário do Nordeste buscou parteiras tradicionais do Ceará que falaram sobre as próprias experiências e o exercício da parteria.
ALÉM DO PARTO
O dossiê do Iphan referente à pesquisa dos saberes e práticas dessas mulheres aponta que elas acompanham de perto o pré-natal, o parto, o resguardo e os primeiros dias após o nascimento e utilizam técnicas com funções práticas e simbólicas “fundamentais para a saúde e a qualidade de vida da gestante e da criança”.
Ervas para banhos, chás e garrafadas são utilizados junto a preces, rezas, orações e defumações, relata o Instituto. Apesar das variações segundo o local em que estão inseridas, as parteiras tradicionais compartilham um sistema de cuidado que segue as seguintes premissas principais:
- Evitação de procedimentos e tecnologias invasivas;
- Uso prioritário de elementos da natureza para o atendimento;
- Empatia e a solidariedade entre mulheres;
- Envolvimento familiar no parto e depois dele;
- Agenciamento de uma experiência extraordinária ou religiosa;
- Valorização da casa como espaço privilegiado de realização do parto e do cumprimento do resguardo.
Parteira tradicional do Cariri cearense, Samara Simões, de 39 anos, afirma que esse título é mais do que um trabalho. É uma forma de viver e de olhar para o mundo, encarando a hora do nascimento como uma celebração da vida. “Tem uma responsabilidade muito profunda que é de receber os seres que estão reencarnando na Terra”, diz.
Mais do que acompanhar a chegada da criança ao mundo, as parteiras tradicionais tornam-se verdadeiras conselheiras das famílias e comadres das mulheres a quem prestam assistência. E normalmente, segundo Thatiane, é por meio do boca-a-boca que essa trama segue em expansão. “É uma grande família de pessoas que se conhecem, amigas. Hoje em dia, as mídias ampliam mais essa rede”, conta.
“ESTAMOS VIVAS”
Quando pequena, Samara era chamada de “Samarica Parteira” pelo dono da cantina do colégio onde estudava. Sem compreender o significado, achava “bonitinho e engraçado”. Hoje entende o apelido que vinha do nome de uma música de Luiz Gonzaga como uma profecia.
Foi após conhecer a parteira tradicional Marcely e criar uma forte conexão com ela que teve início a caminhada para assumir o chamado. “Minha vida começou a se transformar em algo diferente. Eram emoções muito fortes. Até que ela falou que percebia que eu tinha o dom de ser parteira. Aquilo foi uma surpresa para mim, mas ativou. Algo dentro de mim fazia muito sentido”, lembra. Foi um reencontro consigo.
De lá para cá, mais de 10 anos se passaram e Samara já perdeu as contas de quantas crianças viu chegarem ao mundo. Provavelmente mais de 100. E faz questão de lutar pela continuidade desse ofício.
Com a medicalização do parto, essa atuação ancestral e tradicional foi se perdendo na sociedade. Porém, Samara defende que essas mestras seguem resistindo e celebra o reconhecimento por parte do Iphan.
Se a sociedade inteira está viva até hoje, a gente certamente deve agradecimento e honraria às parteiras mais antigas. Com esse reconhecimento, a gente tem mais garantia de uma preservação e de uma continuidade do nosso saber, das nossas práticas, do nosso ofício. É algo muito celebrado entre todas nós.
Sem seguir estereótipos, elas não estão restritas à zona rural ou a locais onde a Medicina e o Sistema Único de Saúde (SUS) não chegam. “Tem parteiras de todas as idades e em vários lugares, com cor de pele diferente, mas tem algo que nos une, que é a parteria tradicional e encarar o parto como um rito de passagem, algo sagrado e profundo”, defende Samara.
“DEIXA ELE VIR”
A primeira atuação de Thatiane Terra foi “uma grande escola”. A mulher estava grávida de gêmeos e já era possível ver a cabeça de um dos bebês quando a família saiu de casa para o hospital. Ainda assim, a parteira relata que houve recusa por parte da equipe médica para realizar o procedimento, e quem aparou a criança foi ela.
“Olhei no olho dela e disse: ‘esqueça toda essa confusão. […] Na próxima contração, deixa ele vir’”, orientou a então iniciante, seguindo o próprio instinto. “Ela pediu para ficar de cócoras na cama e na próxima contração o bebê desceu. Eu aparei ele com as mãos e entreguei para ela. Um bebê super forte.”
Ao ouvir o choro, a equipe voltou para o quarto e procedeu com o segundo parto. Esse, porém, foi repleto de violência obstétrica. “[Foram] dois nascimentos completamente diferentes, e o segundo com muita intervenção. Não tinha um olhar para a mulher.”
Depois dessa vivência, Thatiane conta que acompanhou mulheres mais experientes no Ceará, na Bahia, na Paraíba e até no interior de São Paulo, durante o processo de aprendizado. Também trabalhou ainda mais a espiritualidade, com imersão no xamanismo.
Quando entendi que, na verdade, não era nenhuma religião, mas uma conexão espiritual que levava para algo maior, entendi que era o xamanismo mesmo, que era uma junção mais potente, que colaborava para a minha própria mediunidade e espiritualidade. E isso está completamente dentro do trabalho de uma parteira. A espiritualidade é base para a ampliação da intuição do que aquela mulher precisa de fato.
Mas ela bebe de duas fontes: da tradição e dos conhecimentos biomédicos, caminhando “junto à medicina hospitalar”. “Em uma necessidade, a gente vai precisar enviar essa mulher para o hospital, e precisa saber o momento de enviar dentro dos limites”, afirma.
Ela explica que sempre orienta as mulheres a fazerem o pré-natal em uma unidade de saúde e acompanha os resultados dos exames. “A partir desse equilíbrio eu consigo atender uma mulher, uma família, o bebê, com segurança”, diz.