Mulheres do CE usam algas marinhas para produzir de shampoo a pizza e previnem extinção do recurso
Projeto sediado em Icapuí mudou relação da comunidade com a natureza e estimula independência financeira feminina

O cenário era sagrado: enquanto pescadores se lançavam ao mar da Praia de Barrinha, em Icapuí, no Ceará, crianças e jovens se agachavam na faixa de areia apanhando “capim”. Anos depois, passariam a chamá-lo de alga marinha – e a transformariam em cosméticos, alimentos (veja receitas abaixo) e fonte de autonomia.
As meninas, hoje, são adultas, e compõem um projeto que contribui para preservar os recursos naturais das praias e conferir maior autonomia financeira às famílias: é o “Mulheres de Corpo & Alga”, fundado há mais de 20 anos.
Na 8ª e última reportagem da série Ceará, Rotas de Amar, visitamos a sede do projeto para ouvir as histórias das mulheres e descobrir as dezenas de receitas que podem ser preparadas à base de algas marinhas.
O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
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“Mudou nossa forma de viver”

Quando catava as algas para vender o quilo a um real, durante as férias na praia, Aldneide Silva, 41, nem imaginava que a mesma quantidade valeria, hoje, R$ 200. “A gente nem sabia pra que servia, vendia pra atravessadores. Aí descobrimos que uma empresa pegava essa alga e extraía o ágar-ágar, que é caríssimo”, relembra.
Era meados de 2000 e “as algas já estavam desaparecendo”. O tapete preto avermelhado que antes cobria as areias rareava. “Foi quando a Fundação Brasil Cidadão chegou junto e propôs as técnicas de cultivo e manejo sustentável”, explica Aldneide.

Antes, a gente fazia o extrativismo, só tirava. E através do projeto paramos e começamos a cultivar. Agora, a gente não arranca a alga: poda, como uma planta, e deixa o pedaço pra ela crescer novamente. Aprendemos através das capacitações.
As capacitações ensinaram aos moradores da comunidade como explorar os potenciais das algas marinhas e, ao mesmo tempo, prevenir a extinção delas. Aldneide entrou no projeto em 2004, se “apaixonou” e se viu ser transformada pela experiência.
“Mudou toda a minha vida. Vim do sertão, não sabia falar, tinha medo das pessoas. E hoje falo pelos cotovelos! Mudou a rotina de só viver dentro de casa pra limpar e cuidar – temos isso, mas temos também nosso trabalho, saímos, viajamos. Pelas minhas condições, jamais teria feito as viagens que eu fiz pelo projeto”, orgulha-se.
De corpo e alma
Conhecer a potência de si mesma e dos recursos naturais de onde nasceu também foram para Marli Soares, 54, os principais ganhos do Mulheres de Corpo & Alga. Nativa de Icapuí, de uma família de pescadores, ela está no projeto desde o dia 1.
“O que mais mudou pra mim foi o conhecimento com as algas, saber pra que servem. E pra nós mulheres que vivíamos em casa, não saíamos, o projeto abriu muitas portas. A gente viaja, fala sobre o trabalho… Se libertou, criou asas”, ilustra.

Especialista nas receitas culinárias à base de alga, a cearense reforça: ninguém consegue ainda se sustentar da renda dos produtos, mas o lucro vai além disso. “Não é uma renda que deixe salário, mas é conquistada com o nosso trabalho. Levanta nossa autoestima.”
Marli é vizinha de porta da sede do projeto, visitada pelo Diário do Nordeste numa tarde de junho. Pela proximidade, é ela quem “bate o ponto” todo dia por lá, recebendo visitas não agendadas, limpando aqui e ali. Cuidando como quem ama.

Mesmo com a fala tímida, reconhece: “aprendeu a falar” e a interagir com as várias entrevistas que já deu sobre o Mulheres de Corpo & Alga, projeto vencedor de editais e prêmios nacionais.
Quando pergunto qual a especialidade dela no uso das algas, responde quase junto às colegas: são os alimentos.
“Eu me identifico mais na gelatina, no mousse. Sempre vou agregando alga em outros alimentos pra ver se dá certo – e sempre dá. Testei o pudim de algas com castanha, já tá com 2 anos que a gente faz e todo mundo gosta. Não dá pra quem quer!”, diz orgulhosa.
De geração em geração

A importância que o projeto assumiu para mulheres e à comunidade se prova num fato: a participação passa entre gerações. Leandra Sebastiana, 34, por exemplo, entrou seguindo os passos do pai, que integrava a equipe quando era somente um grupo de algicultores (que cultivam algas).
“As algas fazem parte do meu tempo de jovem e das meninas, todas nós íamos pra escola, mas em tempo de maré a gente sempre catava algas. Desde os 9 anos que conheço, apanhava capim e vendia”, recobra.
Em 2004, contudo, a brincadeira ficou séria. Após uma capacitação, aos 15 anos de idade, passou a ser mulher de corpo e alga.
“O projeto mexe muito com a gente. Quando um jovem entra, a gente diz que tá aqui não por um valor real – estamos mais pelo amor do que pelo dinheiro”, resume, contando com carinho sobre a viagem a São Paulo para receber um prêmio, a primeira de avião que fez na vida.
Esse mundo de possibilidades e de convivência com mulheres fortes, que se reinventaram e construíram um percurso próprio de autonomia e conexão com a natureza, se abre agora para Milena Kelly, 17, integrante mais nova do projeto.

A adolescente chegou ao Mulheres de Corpo & Alga por meio de uma bolsa de incentivo da Fundação Brasil Cidadão, para a qual foi selecionada – mas mesmo após o encerramento do benefício, decidiu ficar.
“Fiquei porque gostei. Aprendi a fazer os produtos e alimentos, e senti muito acolhimento delas todas. Pra mim, é importante poder levar pra outras pessoas o conhecimento que eu tenho aqui”, projeta.
Receitas com algas
O Diário do Nordeste teve acesso a um livro de receitas produzido pelas mulheres, em parceria com a Fundação Brasil Cidadão, e compartilha, abaixo, duas delas: uma salgada, de pizza; e outra doce, de gelatina.
Além da sede do projeto Mulheres de Corpo & Alga e das feiras itinerantes das quais elas participam, é possível encontrar o insumo em algumas lojas de produtos naturais.
Pizza portuguesa com algas
Ingredientes
2 xícaras (chá) de leite;
¼ de xícara de óleo;
3 colheres de queijo ralado;
1 pitada de sal;
1 pitada de orégano;
1 colher (sopa) de fermento em pó;
3 ovos;
100ml de ágar.
Preparo
Pré-aqueça o forno. Junte todos os ingredientes no liquidificador e bata até obter uma mistura homogênea. Despeje numa forma untada e coloque o recheio. Leve ao forno até que a massa fique dourada.
Gelatina de algas
Ingredientes
100g de algas;
2 litros de água;
3 xícaras de açúcar;
1 limão.
Preparo
Coloque a alga em uma panela e espere ferver. Depois de 30 minutos, peneire, adicione o açúcar. Deixe esfriar por 1 hora e leve à geladeira por mais 1 hora.