Há 150 anos, Fortaleza anunciava mortos com toques de sino; mulheres tinham direito a menos badalada
Nos anos 1870, a cidade tinha no máximo 2 cidadãos mortos por dia, e cada perda era anunciada pelo sino da Matriz
Uma, duas, três… nove badaladas no sino da Igreja Matriz. Morreu um homem em Fortaleza. Horas depois, o som imponente volta a encher os ouvidos da cidade, mas desta vez em apenas seis toques: a “defunta”, então, era mulher.
Era assim na Fortaleza do século XIX: cada vida perdida era anunciada à cidade inteira, que distinguia gênero e idade por quantas badaladas soavam. Homens mais, mulheres menos. Desigualdade viva até depois da morte.
O relato curioso sobre a história da sociedade fortalezense nos anos 1870 aparece no livro "Vida e morte na Fortaleza Antiga", de Maria Clélia Lustosa, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ela cita trabalhos do cronista João Nogueira para descrever os ritos que envolviam a morte por aqui.
Os enterros se faziam à noite e os convidados levavam velas 'accesas'. Assim que se verificava o óbito, os sinos da Matriz tocavam finados, e a cidade inteira sabia, de 'prompto', quem era que já estava com Deus.
Os “códigos” para comunicar os sepultamentos à população eram determinados por lei, como destaca a obra de Maria Clélia. A pesquisadora frisa que “as cerimônias religiosas realizadas nos enterros do século XIX, em Fortaleza, refletem a forma como a população local se relacionava com a morte”.
“O dobre pelos finados variava de acordo com o sexo e a idade. ‘Por cada homem, não se poderá fazer mais de nove sinais; por cada mulher, mais do que seis; por cada menor, mais do que três, guardando-se a esse respeito tudo que se acha legislado na Constituição do Bispado’”, registra o livro.
Maria Clélia comenta, em entrevista ao Diário do Nordeste, que “se hoje a sociedade fortalezense é machista, imagine no século XIX”, e acrescenta que “também era assim na Europa”. As conquistas femininas, pontua a professora, “foram realizadas no século XX, como direito a voto e a ser votada”.
Antes, muitas decisões dependiam da aceitação do marido. Apesar dos códigos de posturas, das normas e da elite local querendo copiar o modelo europeu, o processo de urbanização, civilização e europeização é lento.
Epidemia de varíola ‘dizimou’ população
Nos anos 1870, Fortaleza somava cerca de 700 mortes durante o ano inteiro, uma média menor que 2 óbitos por dia. Hoje, só por crimes violentos, desconsiderando doenças e outras múltiplas causas, cerca de 70 fortalezenses morrem todo mês, de acordo com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Lá no século XIX, precisamente em 1878, foi justamente o aumento expressivo dos óbitos – pela seca e pela varíola – que fez os “sinais pelos defuntos” serem abolidos. Os sinos silenciaram, e só o som dos choros e lamentos do luto eram ouvidos após as mortes.
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“Na seca de 1877-1879, somente no ano de 1878 morreram, em Fortaleza, 57.780 pessoas, das quais 24.884 vitimadas pela varíola. Nesse período, também foi proibido o transporte de cadáveres e enfermos pelas ruas e praças da cidade”, relata o livro de Maria Clélia, reproduzindo informação escrita por Guilherme Studart – o Barão de Studart.