‘Faculdades federais’: cientistas propõem modelo para baratear acesso de jovens ao ensino superior

Estudo defende que expandir as atuais universidades – com ensino, pesquisa e extensão – é processo mais caro e limitado; especialistas em educação divergem sobre ideia

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(Atualizado às 10:46)
Estudantes em campus da UFC
Legenda: Modelo focado em ensino, sem pesquisa nem extensão, é defendido como forma de ampliar vagas públicas
Foto: Divulgação/UFC

Acessar o ensino superior é, para jovens, uma oportunidade de mudar a própria trajetória – mas só 4% das vagas ofertadas são na rede pública, segundo o Censo da Educação Superior 2023. Para mudar o cenário, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) lançou, nesta semana, um estudo propondo a criação de “faculdades federais”, inéditas no País.

Os cientistas propõem, entre outras medidas, que sejam criadas instituições públicas e gratuitas voltadas apenas ao ensino, e não sob o tripé ensino-pesquisa-extensão, como funcionam as atuais universidades públicas. 

Os pesquisadores defendem que, dessa forma, o País conseguiria ampliar o número de “profissionais qualificados a um custo menor por aluno” – ou seja, seriam empregados menos recursos para acelerar a inserção de jovens no ensino superior. Especialistas divergem sobre a pauta.

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O estudo consta no livro “Um olhar sobre o ensino superior no Brasil”, lançado pela ABC na última quinta-feira (7). Rodrigo Capaz, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do grupo de trabalho que elaborou o documento, destaca que a ideia não é mudar o que já existe – mas criar novos formatos.

“A massificação e a democratização do ensino superior nunca ocorre nesse modelo de universidade de pesquisa. Em outros países, existe um conjunto mais diversificado de instituições de ensino superior, cujo foco principal e missão única é o ensino de graduação. Necessariamente o gasto por aluno é menor”, frisa.

Eloísa Vidal, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e doutora em Educação, alerta que “o movimento de criar esse tipo de faculdade não é novo”, e data desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. 

“Há muito já se fala na possibilidade de criar institutos e centros de educação superior pra preparar os profissionais pro mercado de trabalho de forma mais pragmática, rápida, de 2 a 3 anos. Algumas iniciativas foram adotadas logo após a LDB, mas tiveram vida curta no Brasil”, contextualiza.

A professora reconhece que a oferta de ensino superior público é um gargalo da educação brasileira. “Se por um lado a oferta de educação básica representa 89% do atendimento, no superior é o contrário: quase 80% é privado. Os governos federal e estaduais nunca conseguiram avançar na ampliação”, lamenta.

Além da criação das “faculdades federais”, a publicação da ABC lista outras propostas:

  • Centros de Formação em Áreas Estratégicas (CFAEs): instituir centros especializados dentro das universidades públicas, destinados a campos como bioeconomia, agricultura, saúde, transição energética e tecnologias avançadas;
  • Aumento do número de matrículas em Institutos Federais (IFs) e Cefets, promovendo uma rápida inserção no mercado de trabalho;
  • Melhoria dos mecanismos que garantam a qualidade educacional;
  • Reestruturação de carreiras e salários de professores, além de investimento em formação e desenvolvimento profissional dos docentes;
  • Recuperação da infraestrutura das universidades federais e adotar programa de metas de melhoria da retenção e diminuição de evasão;
  • Ampliação e qualificação da oferta de cursos públicos na modalidade de Ensino a Distância (EaD), destinado àqueles que precisam de flexibilidade.

“A gente precisa democratizar o acesso ao ensino superior público com qualidade, e a única maneira viável pra isso é a diversificação do tipo de instituições de ensino, pra termos não apenas as universidades e institutos federais, mas preencher a lacuna ocupada pelo ensino privado”, pondera Rodrigo.

Vanessa Jakimiu, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (Faced/UFC) avalia que "a proposição de ofertar ensino superior público sem pesquisa e extensão significa um retrocesso sem precedentes para a educação pública superior".

A docente defende que criar faculdade pública com centralidade apenas no ensino "é uma via para transgredir uma conquista normativa histórica que é a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como tripé da universidade".

"A implementação desse 'modelo' representa um ataque ao papel social do ensino superior público na produção de conhecimento científico e atuação junto à sociedade. Esse modelo também aprofunda e institucionaliza a desigualdade de acesso ao conhecimento em nível superior, uma vez que, do ponto de vista pedagógico, centrar a formação apenas no ensino significa ofertar uma formação técnica e instrumental. É um contrassenso pedagógico", sentencia.

"É importante destacar que a proposta de implementação desse 'modelo' atua na lógica de mercado, ou seja, de 'fazer mais com menos'. Assim, ao propor uma formação em massa, ao mesmo tempo se precariza o trabalho docente, já que com a carga horária expressivamente aumentada, seriam necessários menos docentes para a ministração de mais aulas", acrescenta Vanessa.

‘EaD é demanda irreversível’

Estudante mexendo no computador
Foto: Shutterstock

Além das faculdades, uma das propostas mais fortes do documento da ABC é a de ampliação de vagas públicas em formato de Educação a distância – “demanda real e irreversível, mas com dificuldades no controle de qualidade”, segundo avalia o professor Rodrigo Capaz.  

“A maioria das vagas nessa modalidade é oferecida por instituições privadas. Então propomos que o ensino superior público tem que abraçar de forma definitiva a ideia do EaD, mas com a qualidade que sempre foi uma marca da educação pública”, frisa, acrescentando que o EaD “é ainda mais eficiente pra ampliar as vagas com um custo reduzido”.

A professora Eloísa Vidal reconhece que a modalidade EaD, de fato, facilita a oferta de vagas muito mais do que a criação das faculdades federais, que exigiria “construção e expansão de estruturas físicas, sendo uma demanda complexa, custosa e com efeitos apenas a médio e longo prazos”.

“As grandes críticas são ao EaD praticado pela rede privada, que é precarizado, com pouca rede de apoio ao aluno. O EaD público tem parâmetros de qualidade muito superiores, e claro que isso tem um custo muito superior ao privado.”

Eloísa cita que uma experiência “promissora” é a Universidade Aberta do Brasil (UAB), criada em 2006 e vinculada à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). “Ela consegue disponibilizar 250 mil vagas públicas a cada edital, para todo o País, uma contribuição grande. Mas nunca passou de um projeto”, lamenta.

“Costumamos dizer que na EaD temos uma estrutura ‘lego’: montamos os cursos onde há demanda. Quando formo um técnico em informática no interior, pelo tamanho da cidade, não vou precisar mais de técnicos ali, já movo as vagas”, exemplifica.

A docente da Uece analisa que “as propostas da ABC suscitam uma discussão, trazem elementos para por na mesa e contribuir, mas não se esgotam em si”. “O Brasil precisa pensar um ensino superior a partir de muitas dimensões, um deles é o território, com barreiras físicas e temporais”, acrescenta.

Já a professora Vanessa Jakimiu sintetiza que "não é institucionalizando a precarização do ensino superior público via criação de 'Faculdades Públicas centralizadas apenas no ensino', nem ofertando na modalidade de EaD que a questão do acesso será resolvida". 

A docente da Faced/UFC sugere que "a democratização do acesso ao ensino superior demanda de investimento em educação pública, contemplando financiamento, melhores carreiras, melhores condições de trabalho e aposentadoria e políticas públicas de assistência estudantil."

Fies e Prouni

Durante a divulgação do estudo da ABC, na quinta-feira (7), Ado Jorio, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do GT, afirmou que o atual modelo de oferta de vagas de ensino superior no Brasil favorece a expansão da rede privada – inclusive às custas de investimento público, por meio do Fies e do Prouni.

“Como o ensino privado está crescendo? Fundamentado pelo recurso público colocado por meio de projetos do governo. O investimento no ensino privado pela rede federal é muito grande, e propomos que isso seja revertido com as propostas que trazemos”, opina. O documento da ABC, porém, não menciona os programas governamentais.

O professor Rodrigo Capaz afirma que “o Fies e o Prouni foram escolhas num certo momento político e histórico da sociedade, mas representam um fluxo de recursos públicos pra aumento de vagas em instituições privadas”. 

“Esses recursos, no dia de hoje, podem ser redirecionados para trabalhar numa proposta de um ensino genuinamente público e gratuito. Porque a qualidade do ensino superior público é comprovadamente melhor, com exceções meritórias que existem na rede privada”, diz.

A professora Eloísa Vidal, da Uece, observa que a discussão sobre esse tópico é comum entre os acadêmicos. Segundo ela, profissionais da educação “batem insistentemente nisso: é uma educação de baixa qualidade oferecida por renúncia fiscal, recurso que poderia ser melhor aplicado”.

No Ceará, mais de 8 mil alunos foram beneficiados pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) só em 2023. Já o Programa Universidade para Todos (Prouni) ofertou, só para o segundo semestre de 2024, mais de 7 mil bolsas para estudantes cearenses – 5.472 delas integrais.

O que diz o Ministério da Educação

O Diário do Nordeste buscou o MEC para saber se:

  • O órgão tem conhecimento das propostas da ABC; 
  • Já foi procurado pela ABC para discuti-las; 
  • Alguma delas – sobretudo a de criar faculdades federais – está no escopo de planejamentos ou debates no âmbito do Ministério.

Em nota, a Pasta federal afirmou "reconhecer a importância de iniciativas voltadas ao fortalecimento da educação superior", mas informou que "até o momento, não houve contato formal da Academia Brasileira de Ciências (ABC)".

O ministério também assegurou que "a criação de faculdades federais não está no escopo de planejamentos ou debates no âmbito do MEC", já que a Constituição Federal de 1988 prevê que "as universidades obedecem ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão".

"As universidades são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano. A atuação do MEC está pautada no fortalecimento da Rede Federal de Educação Superior e da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica", complementou a Pasta.

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