De peixe a pterossauro, CE tem processos para repatriar mais de 50 fósseis levados a outros países

O dinossauro cearense, Ubirajara jubatus ilustra a situação que não é incomum: bens brasileiros levados de modo irregular para o exterior e batalha para retomá-los.

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: Imagem do paeloartista Raul Ramos, representando o Anhanguera santanae, que faz parte do mesmo gênero de pterossauros que está sendo repatriado para o Brasil
Foto: Divulgação/Raul Ramos

O fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus, que viveu há cerca de 110 milhões de anos no Cariri cearense, no Sul do Estado, voltou para casa, após uma longa batalha. O caso emblemático que mobilizou pesquisadores e autoridades brasileiras evidencia o drama que, embora venha sendo mais combatido nas últimas décadas, ainda afeta o país: o resgate de fósseis levados irregularmente ao exterior.

Além do caso Ubirajara, no Ceará, há, ao menos, outros 4 processos oficiais - envolvendo mais de 50 fósseis - para repatriação de relíquias que vão de pterossauros a aracnídeos, e cujos valores científicos e sociais são inestimáveis.

No caso do Ubirajara, ele foi devolvido ao Cariri, e agora segue para o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri (Urca), localizado em Santana do Cariri. O fóssil, assim como outras centenas, é oriundo da Chapada do Araripe, território no Sul do Ceará, conhecido internacionalmente não só pela quantidade, mas também pela diversidade de fósseis.

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E é justamente essa uma das regiões brasileiras que mais padece com os efeitos da retirada ilegal desse material. Hoje, conforme dados do Ministério Público Federal (MPF) no Ceará, há outros 4 processos formais que pedem a devolução de fósseis que estão em distintos países da Europa e da Ásia. São eles:

  • Esqueleto de pterossauro da espécie Anhanguera e outros 45 fósseis (dentre eles: tartarugas marinhas, aracnídeos, peixes, répteis e insetos) 
    País onde está: França
  • Duas peças de cabeça de pterossauro,  batizada de Cearadactylus
    País onde está: Itália
  • Um pterossauro, uma raia, insetos e aracnídeos
    País onde está: Alemanha
  • Pterossauro brasileiro, batizado de Tupuxuara Longicristatus.
    País onde está: Coreia do Sul

Pedidos de repatriação 

O Diário do Nordeste solicitou ao MPF a quantidade de processos de repatriação de fósseis em curso no Estado. O MPF informou alguns desses processos. Os pedidos têm datas e fases distintas de tramitação, mas guardam uma característica incomum: em todas as situações listadas, as peças ainda não foram devolvidas

No caso da ação relacionada à França, o MPF informou que os pedidos de repatriação são: do pterossauro da espécie Anhanguera que se encontrava em leilão e de 45 fósseis (incluem tartarugas marinhas, aracnídeos, peixes, répteis, insetos e plantas) apreendidos no interior de uma empresa francesa, cujas ordens de restituição ainda não transitaram em julgado na Justiça da França.

Outro caso envolve duas peças de cabeça de pterossauro, cuja espécie, segundo o MPF, até o momento foram descritos somente estes exemplares que estão no Centro Studie Richerche Ligabue, em Veneza, na Itália. A peça foi retirada da Bacia Sedimentar do Araripe, em Santana do Cariri. O material data do período Cretáceo, com cerca de 110 milhões de anos.

O trabalho é também para reaver 60 amostras (um pterossauro, uma raia, insetos e aracnídeos) que estavam à venda pela empresa alemã Fossils Worldwide, em um site hospedado na Holanda. Os sites foram retirados do ar, mas as provas foram preservadas, segundo o MPF, para tentar recuperar formalmente o material. A apuração teve início após dois biólogos buscarem a instituição para denunciar a situação.

Outro processo é a tentativa de repatriação de um Tupuxuara longicristatus, que é um pterossauro que possuía uma crista óssea na cabeça. Segundo o MPF,  o fóssil foi posto à venda na internet e encontra-se no Museu de História Natural de Mopko, cidade de Mokpo, na província de Jeolla do Sul, na Coreia do Sul.

Trabalho de identificação e busca pela devolução

O procurador da República, em Juazeiro do Norte, Rafael Rayol, ressalta que a legislação brasileira proíbe a comercialização de fósseis e ressalta que todo esse material é propriedade da União.

A batalha pela repatriação tem início, explica o procurador, a partir de denúncias de pesquisadores brasileiros que tomam conhecimento de publicações científicas nas quais determinado bem está descrito como abrigado em certos museu e também em buscas e monitoramentos em sites conhecidos por esse tipo de anúncio irregular. “Quando identificamos, abrimos o procedimento de ofício”, completa. 

De acordo com Rafael, quando há a identificação de fósseis no exterior em situação ilegal, o MPF instaura um procedimento, faz a identificação e demanda a área científica (a universidade), para o trabalho técnico da paleontologia, que confirma se os fósseis são realmente do Brasil.

“Trabalho com o apoio técnico da universidade. Para identificar que aqueles exemplares que estão sendo anunciados, por exemplo, pelas características constantes no anúncio e dos demais dados, são realmente provenientes do Brasil e especialmente da Chapada do Araripe. Ou pelo anúncio ou pelas publicações científicas que trazem as características geológicas. A partir daí, a gente verifica qual é o país que está envolvido e busca a identificação de tratados internacionais específicos para aplicar o caso”.
Rafael Rayol
Procurador da República em Juazeiro do Norte

Rafael informa que então é instalado um procedimento criminal, pois se trata de contrabando e, a partir daí,  há uma série de medidas de investigação de como esse material entrou no país, sobre a documentação que supostamente daria legitimidade para esse material estar lá e as ações para posterior repatriação desse material para o Brasil.

fósseis repatriados
Legenda: Fósseis do Ceará que estavam na França e que já foram recuperado pelas autoridades do Brasil
Foto: Arquivo procurador da República, Rafael Rayol

“São processos demorados, pois os procedimentos de cooperação internacional têm uma série de protocolos a serem seguidos.  O material precisa ser traduzido, tanto de lá pra cá quanto daqui pra lá. De acordo com o país, encaminhamos para a Procuradoria Geral da República, que tem a Secretaria Internacional própria que dá suporte, inclusive de traduções. Tem escritórios de traduções específicas contratados”. 
Rafael Rayol
Procurador da República em Juazeiro do Norte

Resistência nas devoluções

Após a tradução do material, o caso é encaminhado para a autoridade central que pode ser o próprio Procurador-Geral da República ou Ministério da Justiça, conforme o tratado que, por sua vez, deve encaminhar para autoridade central do respectivo país para que seja dado encaminhamento e os envolvidos sejam ouvidos.

“Eles (autoridades de outros países) vão coletar as provas que nos devolvem todas essas provas coletadas. Nós focamos em seguida na questão da apreensão e repatriação desse material. Que é a parte mais difícil de conseguir porque tem, especialmente, quando está em museus, uma dificuldade maior de devolução”.
Rafael Rayol
Procurador da República em Juazeiro do Norte

Segundo o procurador, nos últimos anos, tem sido possível “quebrar um pouco a resistência”. Ele ressalta que há uma discussão acentuada sobre a questão da ciência feita de forma lícita e com apropriação colonizadora de bens de países que não são europeus nem norte-americanos.

Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens
Legenda: Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri (Urca), em Santana do Cariri
Foto: Elizangela Santos/ SVM

Quando há decisão pela repatriação, no Brasil, quem define para onde o fóssil voltará e será guardado é o Governo Federal, que é o titular do bem.

“Mas, em regra, fica em museu. Os fósseis que nós recebemos (no Ceará) diretamente, a gente encaminha para o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, que é uma instituição oficial do sistema nacional de educação e comunica ao Governo Federal que esse fóssil está à disposição em Santana do Cariri”
Rafael Rayol
Procurador da República em Juazeiro do Norte

O bem repatriado pode ser transferido, diz ele, de um museu para outro “sem problema algum”. Na região da Chapada do Araripe, que envolve cidades do Cariri cearense, um dos grandes problemas cujo efeito é a fragilidade de retirada de fósseis e tráfico para o exterior, na avaliação do procurador “são questões econômicas das duas principais cidades em que se encontram essas bacias de fósseis: Nova Olinda e Santana do Cariri”.

Ele destaca que a economia das cidades gira, principalmente, na exploração de calcário laminado. “As jazidas clandestinas já foram inclusive fechadas. Entre a laminação do calcário é que ficaram todos esses fósseis consolidados ali. No momento que vai sendo retirado o calcário laminado para a produção da pedra Cariri, vão se identificando fósseis”.

O correto, acrescenta ele, “era que esses fósseis fossem separados e entregues às autoridades, mas muitos não são e as pessoas humildes, de baixa instrução e que ganham mal, acabam sendo seduzidos pela possibilidade de ter uma renda extra vendendo a preço de banana peças que têm valores inestimáveis”.

 

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