Cotas no ITA: como é hoje e o que diz a proposta que reserva 50% das vagas para a rede pública
A adoção de ações afirmativas em uma das instituições mais concorridas do país voltou a ser debatida após um deputado cearense propor um projeto de lei sobre o assunto
Reservar 50% das vagas do Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA), um dos vestibulares mais difíceis do Brasil, para alunos da rede pública. A proposição é do deputado federal pelo Ceará, Idilvan Alencar (PDT) deve ser protocolada na Câmara Federal, em fevereiro, quando os trabalhos retornarem. A ideia do projeto de lei já tem gerado discussões. Mas, afinal, hoje, o ITA segue ou não a Lei Federal de Cotas (12.711/2012) adotada em outras universidades? Ou tem política específica de cota racial voltada para alunos pretos e pardos? Qual a proporção de cotistas? E o que a proposta vinda do Ceará traz de novidade?
O primeiro ponto em questão é que o ITA, instituição federal de ensino superior pública, referência na área da engenharia e com uma das seleções mais concorridas do país, hoje não adota a Lei Federal 12.711/2012, a chamada Lei de Cotas, a qual as universidades federais estão submetidas. O ITA tem sede em São José dos Campos, em São Paulo, e teve a pedra fundamental da nova unidade, a ser aberta em Fortaleza, lançada na última sexta-feira (19).
A chamada Lei de Cotas vigora no Brasil desde 2012 e garante que 50% das vagas de universidades e institutos federais sejam reservadas para ex-alunos da rede pública. Portanto, são cotas sociais, mas com desdobramentos que contemplam questões raciais e étnicas. Do total de vagas das cotas, 50% devem ser destinados a estudantes de baixa renda e uma fatia proporcional à população de cada Estado a pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência.
Desde que a norma entrou em vigor, há quase 12 anos, o entendimento interno no ITA e em instituições de mesmo perfil, como o Instituto Militar de Engenharia (IME) e as escolas navais também ligadas ao Ministério da Defesa, e que gerou debates à época da produção da lei, é de que, quem precisa cumprir a norma são as universidades federais que estão, conforme explicitou o texto da lei “vinculadas ao Ministério da Educação (MEC)”.
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A “brecha” é que o ITA está ligado formalmente ao Ministério da Defesa e “escaparia” da obrigação de cumprimento da Lei Federal 12.711/2012. Portanto, hoje no processo seletivo do ITA, diferentemente das demais instituições federais de ensino superior, não há uma reserva de 50% das vagas para estudantes de escolas públicas. Esse é um ponto na proposição do deputado Idilvan Alencar.
Mas, apesar de geridas pelo Ministério da Defesa, essas instituições seguem diretrizes pedagógicas e são avaliadas pelo MEC. O próprio ITA registra em seu site oficial que é uma instituição federal de ensino superior sob a jurisdição do Ministério da Defesa, mas que relaciona-se com MEC: “nos assuntos de natureza geral de educação, pois as disposições legais previstas na legislação educacional e de magistério diretamente dirigidas ao MEC são extensivas ao ITA, no que couber”, diz a descrição no site.
O Diário do Nordeste entrou em contato com o ITA, com a Força Aérea Brasileira (FAB), com o Ministério da Defesa e o da Educação (MEC) sobre o assunto, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria na manhã de quinta-feira (25).
Após a publicação da matéria, a Força Aérea Brasileira (FAB) enviou nota ao Diário do Nordeste na qual diz que o ITA "é uma Organização Militar vinculada ao Ministério da Defesa (MD). De tal forma, cumpre a determinação da Lei Federal 12.990/2014, que prevê a reserva de 20% das vagas para pessoas autodeclaradas negras".
Mas, o ITA tem cotas?
No modelo atual, o ITA adota uma reserva de vagas desde o processo seletivo de 2019, só que de cotas raciais. E isso porque ainda em 2015, o Ministério Público Federal em Brasília ajuizou uma ação civil pública requerendo que os concursos para ingresso nas Forças Armadas adotassem a reserva de vagas para candidatos negros conforme previsto na Lei Federal 12.990/2014. Pela norma, ficam reservadas aos negros 20% das vagas.
A ação civil pública resultou em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre o MPF e as três forças militares e um dos resultados práticos foi que o ITA passou a adotar o sistema de cotas raciais no processo seletivo para 2019. A mesma repercussão ocorreu no IME e na Academia de Força Aérea.
Também em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) em uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 41) reforçou esse entendimento reiterando que as vagas oferecidas em concursos das Forças Armadas estão sujeitas as cotas raciais previstas na Lei 12.990/2014.
A primeira turma com política de cotas raciais no ITA foi a do processo seletivo de 2019. Desde então, os editais que regem as seleções estabelecem que os candidatos que concorrerem pelas cotas devem se submeter a uma comissão de heteroidentificação para avaliar a autodeclaração. Essa comissão tem o poder de eliminar o candidato caso seja avaliado que ele não se enquadra como cotista. Mas no edital não constam quais critérios são considerados nessa avaliação.
Para 2024, o edital do vestibular do ITA ofertou 150 vagas e destas, 31 poderiam ser preenchidas por cotistas. Para concorrer às vagas reservadas a candidatos negros, é necessário a autodeclaração como preto ou pardo, conforme quesito cor ou raça utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em caso de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada a cotista, diz o edital, a “vaga será preenchida pelo candidato cotista, aprovado na segunda fase, com classificação imediatamente posterior”. Não havendo número de candidatos negros aprovados suficiente para ocupar as vagas reservadas aos cotistas, as vagas remanescentes são revertidas para a ampla concorrência.
No ITA as vagas também são dividas em candidatos da ativa (destinadas exclusivamente aqueles que têm interesse em seguir à carreira militar), com 28 vagas para ampla concorrência e 8 para cotistas; e candidatos da reserva (destinadas aos candidatos que não têm interesse na carreira militar), sendo 91 vagas para a ampla concorrência e 23 para os candidatos cotistas.
Na nota enviada pela FAB após a publicação desta matéria, a instituição ressaltou que "por não ser considerada universidade e não estar vinculada ao MEC não possui obrigatoriedade quanto à Lei Federal 12.711/2012, que reserva 50% das vagas para alunos oriundos da rede pública".
A assessoria da FAB também informou que o processo seletivo de 2024, "contemplou 31 vagas para cotistas, tendo sido 15 preenchidas".
Qual a proporção de alunos da rede pública no ITA?
O vestibular do ITA em 2024 teve 9.076 inscritos entre os que vão para a ativa, reserva e treineiros, conforme dados disponibilizados publicamente no site da instituição. Desse total, 3.385 candidatos optaram por seguir carreira militar (ativa). Desses 58,4% são provenientes de escolas particulares e 41,6% de escolas públicas: federais (12,7%), estaduais (27,8%) e municipais (1,1%). Ou seja, a maioria dos inscritos é da rede privada.
No caso dos candidatos que não vão seguir a carreira militar, foram 4.102 inscrições das quais 76,9% são de egressos da rede particular e somente 23,1% são da rede pública: federal (9,2%), estadual (9,5%) e municipal (0,6%). A diferença é ainda mais elevada nessa categoria. No site não há detalhamento sobre a procedência dos candidatos aprovados.
Na série histórica da última década, os egressos de escola particular nunca representaram menos que 50% dos candidatos que concorreram no ITA. No caso de diferença mais acentuada, os alunos da rede particular, assim como em 2024, representaram 70% ou mais dos candidatos entre aqueles que optam por não seguir carreira militar.
O que diz o projeto do deputado cearense?
O projeto de lei que será protocolado na Câmara Federal por Idilvan Alencar reserva 50% das vagas ofertadas pelo ITA para candidatos que tenham cursado integralmente o ensino médio na rede pública. Os editais dos vestibulares do ITA devem especificar o total de vagas para cotista em cada oferta.
Os candidatos devem comprovar a condição apresentando o histórico escolar. No caso de não haver número de candidatos aprovados suficiente para ocupar as vagas para cotistas, as vagas remanescentes serão revertidas para ampla concorrência.
Na justificativa, Idilvan destaca que o ITA é reconhecido nacional e internacionalmente pela excelência e pela contribuição significativa para o avanço científico e tecnológico no Brasil, mas, completa, “é inegável que a representatividade de estudantes de escolas públicas nessa instituição ainda é desproporcional em relação aos estudantes das particulares”.
No lançamento da pedra fundamental do ICA Fortaleza, no dia 19 de janeiro, Idilvan que estava presente, afirmou que: “nós conseguimos no Congresso aprovar a lei das cotas, e é muito importante termos no ITA, depois no IME, porque é investimento público. Por que não ser também para o filho do trabalhador? É uma disputa a ser enfrentada que não será fácil”.
“Vamos ver quem passa no ITA hoje? Temos conhecimento de alunos da escola pública que passa no ITA? O projeto vem na hora certa. Já estou conversando com outros parlamentares. Quero que as pessoas pensem nas pessoas mais humildes desse país”.
Necessidade de políticas de inclusão
O professor doutor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab/CE) e integrante do Fórum de Ações Afirmativas e da Educação das Relações Étnico-Raciais do Ensino Superior do Estado do Ceará, Arilson dos Santos Gomes, destaca que as cotas tornaram-se assuntos de debates, nas últimas duas décadas, mas “antes de mais nada, as cotas devem ser compreendidas no âmbito das ações afirmativas, que constituem políticas públicas de prazo temporário para grupos que tiveram a sua trajetória de direitos historicamente prejudicada".
Ele completa que com as cotas há "possibilidade de inclusão específica por meio de vagas direcionadas a determinados segmentos discriminados, visando ao seu ingresso em instituições públicas e privadas, sejam de cunho étnico-raciais, de classe, de gênero, entre outros".
O professor avalia que se o ITA mantém somente o que determina a Lei 12.290/2014, "a instituição deixa de avançar em outras dimensões de inclusão". Essas outras perspectivas, acrescenta, estão relacionadas a classe, a raça e a etnia, na graduação e na pós-graduação.
Ele também reforça que no Ceará, a população preta e parda, considerada negra de acordo com o IBGE, é mais de 20%. “Somente se tem embasamento de dados para compreender a limitação da manutenção da Lei 12.290/14 como meio de acesso ao ITA", completa.
Arilson explica que a Lei das Cotas deve distribuir os 50% das vagas reservadas em fatias proporcionais à população de pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência de cada estado, conforme registros do IBGE.
Logo, se o ITA adotar a norma, os parâmetros a serem aplicados para as vagas de São José dos Campos, em São Paulo, são distintos dos de Fortaleza, no Ceará, visto a composição diferenciada da população.
Questionado sobre se na revisão da Lei de Cotas, feita em 2023, as lacunas como a inclusão de instituições como o ITA, ligadas às forças armadas, foram temas mobilizados, Arilson destacou o contexto no qual essa atualização ocorreu, que era de avanço do conservadorismo, tornou determinados debates mais difíceis.
Ele também reforçou que ainda em 2020, devido à morte de João Alberto, um homem negro espancado até a morte por seguranças em um supermercado Carrefour, em Porto Alegre, a Câmara Federal formou uma comissão de juristas negros. E, diz: "uma das pautas relacionadas à Lei de Cotas foi a ampliação da reserva de vagas para todas as escolas, incluindo-se as da rede federal vinculadas aos Ministérios da Defesa e Economia”.
A situação, lembra ele, não foi inserida na revisão da Lei, "mas, como o observado, a época, foi mobilizado pelos juristas negros. Lembremos, o ITA faz parte das Forças Armadas, portanto, vinculada ao Ministério da Defesa e em épocas de disputas como estamos vivendo, o conservadorismo não apoia, em grande medida, o reconhecimento das diferenças. Não estamos falando somente das instituições, mas de setores da sociedade contrários à inclusão social de maneira mais geral".