Como a guerra entre Rússia e Ucrânia afeta a saúde mental de quem acompanha mesmo de longe?
Tensões no leste europeu alcançam o mundo em imagens de drama humanitário e podem gerar ansiedade, medo e pensamentos catastróficos
Estar numa guerra voltou a ser realidade há uma semana devido ao ataque da Rússia contra a Ucrânia. Explosões, gritos e choro de famílias ganham notoriedade fora do leste europeu por meio de telas no mundo todo desde então. Quem acompanha isso, ainda que em outra escala, também pode sofrer com medo, ansiedade e pensamentos catastróficos.
As cenas de terror causaram a morte de, pelo menos, 136 pessoas comuns. Dentre elas, 13 crianças. Os bombardeios também feriram cerca de 400 pessoas. Mais de 660 mil pessoas já fugiram da Ucrânia e a agência da Organização das Nações Unidos para Refugiados (Acnur) estima que 12 milhões de pessoas vão precisar de ajuda no país.
Os números, divulgados pelas Agências Reuters e Brasil, não compreendem o sofrimento de quem perdeu casa, família e o lugar onde vivia. Mas alguns dos relatos também chegam ao público e a somatória de informações sobre a guerra possui impactos no psicológico.
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“Tem pessoas que talvez nunca vão ter contato com alguém na Ucrânia, mas estão absorvendo aquela dor, discutindo isso. Provavelmente, muitos dos que não ouviram falar estão aprendendo, entendendo e se aproximando dessa realidade”, resume a psicóloga clínica Maria Cecília Alves.
Com isso, cada pessoa pode reagir de uma forma diferente, mas a sensação de medo, dificuldade para dormir e excesso de pensamentos catastróficos podem estar entre os efeitos de acompanhar a situação de guerra.
“O nosso cérebro, ao observar uma cena de terror, vai ativar nosso sistema de defesa”, explica Cecília. A repercussão disso também pode afetar o físico com falta de ar, sensação de fraqueza e mudança no apetite.
As pessoas acabam ficando mais reativas quando estão assustadas, preocupadas, em um momento de tensão. Em uma guerra como essa, nós ficamos em estado de alerta o que faz com que eu tenha reações precipitadas
Diferente de momentos anteriores da História, as informações sobre o conflito internacional estão disponíveis logo depois de acontecer, como analisa a médica psiquiatra e professora na Universidade Federal do Ceará, Lia Sanders.
“O impacto de uma guerra na Ucrânia pode ser sentido aqui no Brasil, seja pela sensibilização com o sofrimento das pessoas naquele país, seja pelas consequências catastróficas de um possível ataque nuclear”, frisa.
Nesse sentido, o advogado Flavio Herbert Benevides, de 32 anos, recebe informações e compartilha a percepção sobre como os acontecimentos da guerra afetam a saúde mental nas redes sociais.
“Quando vejo as imagens dos prédios destruídos não tem como não ter empatia e não se colocar no lugar daquelas pessoas que estão perdendo suas casas, suas conquistas, suas rotinas”, reflete.
Flavio conta ter tido um impacto maior nas primeiras informações sobre a guerra e agora busca atualizações também pela TV. Sobre as consequências de acompanhar, ele destaca o “medo da incerteza”.
“Medo de como isso poderia refletir no nosso cotidiano, ainda tão confuso pela pandemia, crise econômica… Ainda sinto tudo isso, mas de forma mais controlada. Tentando ser otimista”, pondera. Esses acontecimentos geram insegurança e afetam o poder de ressignificação, como observa o advogado.
Eu faço terapia semanalmente e crio algumas válvulas de escape. Uma delas é tentar não ficar buscando tantas informações sobre assuntos sensíveis, vendo fotos ou vídeos que possam despertar gatilhos
Também é natural que algumas pessoas não queiram saber ou receber informações sobre o assunto, mas isso se torna um objetivo difícil com a intensidade dos compartilhamentos, como avalia Cecília Alves.
“A gente passa a entrar em contato nesse momento com informações que nós nunca tínhamos pensado sobre. Então, muitas pessoas estão imaginando como lidariam com essa situação, como seria vivenciar uma guerra e uma catástrofe”, completa.
Enxergar o momento delicado em que os ucranianos estão inseridos também desperta a vontade de ajudar. “Pensar sobre isso gera um movimento de empatia, de me colocar no lugar do outro, visualizar o que está acontecendo na vida do outro e me sensibilizar”.
Guerra, pandemia e desastres naturais
O mundo acordou com a confirmação da guerra na Ucrânia em um contexto em que a pandemia da Covid-19 ainda causa mortes e o aumento de casos da 3ª onda assusta as pessoas.
“A gente está em uma situação de estresse agudo e crônico, pela intensidade. Há dois anos estamos vivendo sobre estresse e a tendência é que as coisas não estão diminuindo”, analisa Cecília sobre o período de perdas e de isolamento social.
Antes do conflito internacional, os brasileiros também estavam sensibilizados com a tragédia em Petrópolis, no Rio de Janeiro, com mais de 200 mortos por causa das chuvas intensas desde o dia 15 deste mês.
“Há muitas pessoas vivendo em áreas de risco em toda a nação. Quando algo assim acontece, todos se sentem ameaçados. A angústia é naturalmente maior em quem já sofre com um transtorno mental”, analisa Lia Sanders.
Os últimos anos não têm sido fáceis e o tecido social já se encontra esgarçado. As notícias dessas tragédias só acentuam o mal-estar geral. Há uma associação entre desastres e transtornos mentais, exacerbações de patologias preexistentes e/ou sofrimento psicológico
A série de acontecimentos trágicos no período gera aumento na demanda por atendimento de saúde mental. “Entre os possíveis transtornos estão os relacionados ao estresse e de adaptação; luto, depressão maior e transtornos por uso de substâncias”, completa a psiquiatra.
Rede de fortalecimento
A estratégia adotada por Flavio Benevides está entre as recomendações de especialistas para manter o bem-estar mental. Cecília Alves destaca a importância de buscar informações adequadas como uma forma de evitar abalos.
“Se eu só buscar imagens ruins e de pessoas morrendo vai me impactar de uma maneira paralisante, mas (é diferente) se eu busco aquela informação para entender o que está acontecendo de fato, naquele contexto”, ressalta.
Ela também destaca a importância de racionalizar sobre a questão e entender quais os limites de quem acompanha. “Se eu me sinto com medo, quanto mais eu entender a situação, melhor eu vou administrar o medo, porque vou entender o que é possível, o que cabe a mim e o que não cabe”, conclui.
Os eventos também evidenciam como a sociedade precisa investir em saúde mental a longo prazo, como enxerga.
“Quando a gente fala de saúde mental é um processo, é trabalhar desde as nossas crianças, jovens e adultos. Buscarmos ter um contexto de vida que proporcione estabilidade emocional, as nossas relações, a busca pelo autoconhecimento, por ajuda psicológica e psiquiátrica”.
Para manter a saúde mental é necessário um equilíbrio, que vai desde a manutenção de hábitos saudáveis, como boa alimentação, meditação e atividade física regular ao cultivo de hobbies e relações sociais
Lia Sanders acrescenta, à importância de manter uma rotina saudável, instrumentos para fortalecer a saúde mental. “Psicoterapia, espiritualidade e a busca pelo autoconhecimento também ajudam a garantir um sentido à nossa vida e ao que nos acontece”, finaliza.