Rei, Rainha e Imperatriz: A ‘Guerra dos Tronos’ em Fortaleza tem sabor de panelada
Por décadas, uma realeza da cozinha regional faz a fama de uma rua da Capital e apimenta a concorrência pelo reino desta iguaria
George R. R. Martin criou o universo de "A Game of Thrones" e nem a fértil imaginação do autor poderia escrever. Em Fortaleza, a panelada é o epicentro da concorrência entre membros de uma realeza culinária. Cada "casa", ou melhor, restaurante, defende a bandeira de melhor receita da iguaria.
Localizada no bairro Joaquim Távora, a Rua Capitão Gustavo é famosa pelos comércios batizados por títulos "reais". Quem passa pelo local pode se servir do melhor da cozinha tradicional nordestina com O Rei da Panelada, Rainha da Panelada e A Imperatriz da Panelada.
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A influência da nobreza por aquelas bandas ultrapassa o setor das guloseimas regionais. Pelas proximidades também funcionaram o "Rei do Gostosinho" e o 'Príncipe do Lanche". Tem até uma loja de autopeças chamada Rex (Rei em latim) garantindo o atendimento deste público.
Por mais de quatro décadas, a panelada (dentre outros pratos tradicionais do Ceará) garante o sustento destas famílias e a sobrevivência de uma produção alimentícia artesanal. Como um súdito da gastronomia raiz, adentramos a história destes reinados do sabor. A primeira visita foi no Rei, "O Pioneiro" da região.
O Rei se afastou, mas a tradição segue viva há 43 anos
O casarão amarelo anuncia de longe a fachada do O Rei da Panelada. Além de ressaltar o título de pioneiro do ramo naquela vizinhança, a entrada do local avisa os visitantes do ano de fundação. Desde 1979, o empreendimento serve o famoso cozido de miúdos do boi.
Seu Braga, o Rei, optou por se afastar do negócio e hoje a esposa Jucineusa Santiago está à frente do legado. A comerciante apresenta o amplo salão e convida à conversa sobre a jornada do lugar. O Rei, detalha, começou com poucas opções de prato. Hoje mantém um cardápio bem mais amplo.
Não tem só a querida panelada, some aí mão de vaca, rabada, carneiro, galinha, sarapatel, carne de sol. A comida tradicional mesmo. É típica e os clientes são fieis. Com o decorrer dos anos, o ponto passou por reformas no intuito de acomodar públicos maiores.
Famílias chegaram ali com os filhos pequenos. Estes agora são pais e trazem os netos. São grupos de jovens, empresários na hora de almoço do trabalho. Muita coisa foi testemunhada naquelas mesas. "Nossa história é essa. São 43 anos no mesmo endereço", explica Irmã Ju, como é conhecida carinhosamente na casa.
A comerciante adverte que a pandemia foi demais para o Rei. "Nos desestruturou muito. Outros comércios fecharam. Nós ficamos, estamos trabalhando. Foi muito difícil passar pela pandemia. Foi a gota d'água. Ele estressou mesmo, não quis mais. Ajuda nas compras, mas quase não fica aqui. Tudo hoje é comigo. Sabe aquele casamento que acabou e não tem mais volta?"
O monarca pode estar fora da trincheira, mas o tempero deve continuar rigorosamente igual. A qualidade é a mesma nestas quatro décadas, assevera irmã Lu. "Nosso segredo é ter o mesmo padrão. Para quem está na cozinha é passado o mesmo tempero. São 43 anos, mas a qualidade é a mesma".
Irmã Ju atuava no ramo da moda praia. Conheceu o Rei na Igreja e somam 15 anos juntos. Destes, há 12 presente no cotidiano do restaurante. Ela cuida do âmbito admnistrativo, atende e conversa com os clientes nas mesas. Cozinhar não é sua função, mas afirma saber os caminhos de uma refeição primorosa.
"Quando a panelada chega do fornecedor é limpar, cortar, escaldar, para depois temperar. É uma comida trabalhosa. Essa culinária regional é toda trabalhosa, sem falar, que é cara. Acham que por ser panelada é qualquer coisa, não tem valor. Tentam desvalorizar, mas a panelada deve ser valorizada", alerta.
Diariamente a comida é preparada. De terça a domingo (incluindo feriados) é mantido o cardápio. Uma rotina entre 8h e 16h. Em anos anteriores, o Rei atendia até tarde da noite, até o último cliente sair. "Por isso ele se estressou muito. Se dedicou demais, entrava pela madrugada. Sem falar que todo dia ele ia comprar material, não existia de fornecedor deixar aqui. Quando faltava ele mesmo ia. Isso foi acumulando e explodiu".
Irmã Ju detalha que o Rei segue atualmente na casa dos 64 anos. "Não aparenta, hein!", avisa. "Ele é corredor de 21 km, 10 km, 5 km. O esporte é o negócio dele hoje". Nos despedimos e bastam alguns passos pela calçada até a Rainha da Panelada.
A verdadeira dona do trono
Braga (O Rei) e Margarida (a Rainha) foram casados e tiveram três filhos. Alex explica que os pais começaram numa garagem, só eles dois. "A panelada nem era tão divulgada como é hoje em dia. Ele fez o Rei da Panelada e na década de 1990 o negócio deu um 'boom'. Se separaram e a Rainha existe aqui desde 1997", compartilha.
Os filhos eram adultos, foi uma separação tranquila. "Nós ficamos com a mãe. Ela ia começar tudo do zero. Verdade seja dita, ele não a deixou desamparada. Ela ficou bem estruturada, móveis, cadeiras. Tudo meio a meio. Ela começou a Rainha lá no Vila União. Não ficou legal, não era o mesmo público, o nicho era outro".
Surgiu a oportunidade da casa a poucos metros do Rei. Foi dela a ideia de apimentar a concorrência. Ela adicionou o slogan "A Verdadeira Dona do Trono". "A guerra tem que existir no comércio. O cliente anda no Rei, mas diz: 'Eu vou lá na Rainha para conhecer porque que eles brigaram'. E assim, graças a Deus tudo é família", aponta Alex.
Herança materna
A arquitetura da Rainha da Panelada guarda aquele clima de batente de casa do interior. O pé direito baixo, o chão frio, a decoração das mesas. Tudo permite essa conexão com as raízes de um Ceará profundo. Tal premissa acompanha a feitura dos pratos. "Uma coisa que a mãe sempre batia: O cliente dela é do interior, então ele conhece, saberá a diferença".
Alex explica que Dona Margarida nasceu em Pentecoste e aprendeu a cozinhar com a mãe. Por sua vez, esta receita advém da avó da Rainha. Uma criação caseira, sempre trabalhando artesanalmente. Sem insumos industrializados, do mesmo jeito. "Ela não ensinou o tempero para ninguém de fora, pois tinha medo que alguém copie e não faça como deve ser", descreve.
Assim, Liliane hoje é quem salvaguarda o segredo repassado entre as mulheres da casa. "O ensinamento passado pela Rainha é 'fogo lento e paciência'. Demorei um pouco para entender isso, mas, na verdade, é fato ter essas regras. Aqui, ela nunca usou panela de pressão. É de 30 a 60 quilos de panelada cozinhada", descreve a herdeira.
É lavada, fervida, escaldada... Após todo esse processo vai para panela com os ingredientes. "Acende o fogo e fica lá de seis a oito horas cozinhando. Chega a mercadoria hoje, refaz todo esse processo. É pôr no fogo e só sai amanhã, não se serve no mesmo dia. "Faz sentido essa questão de fogo lento e paciência. A gente dorme e acorda nessa panelada. Dá um trabalho, mas depois nos habituamos. É trabalhoso, mas é bom quando recebemos até um elogio".
Sobre a concorrência, Alex defende que a "Guerra dos Tronos" é da porta para fora. "Nos damos bem. Ele vem aqui, vamos lá. Um ajuda o outro. Precisar de um gelo, uma quentinha, uma mesa, um refrigerante, uma bebida, uma ajuda, não tem problema. O sol nasceu para todos dois. Cada um tem sua clientela, se misturam também. Às vezes acaba aqui e mandamos para lá".
Reforço feminino
A mais recente estrela deste reinado do sabor é A Imperatriz da Panelada. Luciana Ferreira, a proprietária, iniciou a jornada na região há cerca de um ano e meio. Ela é responsável por manter a aura comercial daquele ponto. Antes, no mesmo local, funcionava o "Imperador da Panelada".
Com a nova gerência, veio a natural mudança no letreiro da casa situada na esquina da Rua Capitão Gustavo com Avenida Soriano Albuquerque. Diferente da concorrência, que atende o público com o cardápio
"à la carte", o lugar serve pratos feitos, os PFs. As opções regionais fazem parte da "mistura" entregue pela Imperatriz.
Uma rua, mesmo comércio
O processo de coesão forma as chamadas ruas especializadas, explica Alexandre Queiroz Pereira, professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC). A existência de distritos e zonas especializadas nos mais diferentes serviços ou comércios é benéfico para os comerciantes.
"A proximidade de empresas, negócios ou lojas do mesmo setor criam uma sinergia positiva e permite que aquele lugar passe a ser identificado como um ponto para clientes de várias partes da cidade ou quem tenha interesse sobre aquele produto, serviço, aquela condição, saiba que será atendida a sua necessidade naquela rua, naquela esquina, naquele bairro", avalia.
Este ordenamento comercial une público alvo e uma condição diferenciada de acessibilidade. Mesmo com as mudanças no território urbano e as novas ferramentas de venda, caso do comércio online, o pesquisador compreende que esses espaços tendem a continuar na cidade.
"Por mais que os shoppings center tenham impactado a organização comercial e de serviços nas cidades, acredito que estes setores, zonas ou ruas especializadas permaneceram como estratégias de localização das empresas que buscam potencializar seus negócios e atrair mais clientes", finaliza Alexandre Queiroz Pereira.
Onde comer panelada em Fortaleza?