Rachel de Queiroz 110 anos: Pesquisador cearense prepara biografia da escritora

Em entrevista exclusiva para o Verso, Sávio Alencar traça detalhes sobre a obra que pretende lançar em 2025; segundo o estudioso, propósito do livro é enfatizar a complexidade de uma personagem plural

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Entre os tantos desejos de Sávio Alencar para a biografia de Rachel de Queiroz sob sua assinatura está o de investigar o amplo percurso editorial da escritora
Foto: Cynthia Nogueira

A história de Sávio Alencar, 28, está intimamente ligada a Rachel de Queiroz, dos maiores aos diminutos detalhes. Apesar de nunca ter estado com a celebrada escritora cearense, falecida em 2003, o editor e pesquisador a conhece bem de perto. Por um acaso, boa parte da infância e adolescência dele aconteceu na casa de uma prima de Rachel, Dona Maria José de Queiroz Bessa, em Beberibe. Desde ali, ouviu inúmeros comentários acerca da trajetória e da personalidade da autora. Conviveu com seus tantos “eus”.

Veja também

Sávio também reside no mesmo bairro onde Rachel outrora viveu em Fortaleza, o Henrique Jorge. Na Casa dos Benjamins – como foi carinhosamente apelidada a propriedade sob posse de Queiroz – ela escreveu “O Quinze”, livro de estreia e inveterada obra-prima. 

Mas há bem mais sobre essa relação entre o estudioso e a literata. Durante a graduação e o mestrado, Alencar teceu olhares em torno do escritor Jáder de Carvalho, de quem, aliás, Rachel era primo. Foi Jáder quem resolveu o mistério que rondava a primeira publicação dela na imprensa, a famosa carta dirigida à escritora e jornalista Suzana de Alencar Guimarães, tia-avó de Sávio. O texto foi assinado sob um pseudônimo (Rita de Queluz) e publicado no jornal O Ceará.

“Apesar de Jáder ser uma figura de relevo na paisagem intelectual do Estado, as informações sobre ele estavam dispersas e careciam de apuração. Minha monografia e dissertação tentam dar conta desse homem de tantos ofícios”, explica o estudioso. “Essas experiências de pesquisa me deixaram uma lição: há muitos nomes fundamentais da nossa vida literária cujas histórias ainda precisam ser contadas com a justeza que merecem. A de Rachel de Queiroz é uma delas”.

Com essa ideia em mente, Sávio prepara, neste momento, uma biografia da romancista – a primeira, segundo ele, conduzida de um modo mais clássico, “enfrentando” a personagem em toda sua complexidade e cobrindo os vários aspectos da existência dela. O projeto, de motivação pessoal, surgiu no fim do ano passado, mas apenas neste tomou corpo, quando iniciaram-se a pesquisa e as entrevistas, em julho. A proposta é que a obra seja publicada em 2025, embora ainda não haja uma casa editorial definida. 

Em entrevista exclusiva ao Verso, o estudioso – que, inclusive, possui parentesco com José de Alencar (1829-1877) pelo lado paterno, ao passo que Rachel detém semelhante vínculo com o escritor, embora pelo lado materno  – conta que, embora o levantamento de dados se encontre em estágio inicial, já foi possível reunir bons achados.

“Rachel atravessou o século XX e foi uma figura ativa na vida literária brasileira, por isso há muito material para ser apurado. Sem contar a diversidade de instituições de guarda de memória, aqui e em outros estados – arquivos, equipamentos culturais, bibliotecas –, que ainda devo visitar”, situa.

Legenda: O pesquisador com o livro "Tantos anos", escrito por Rachel e a irmã, Maria Luiza, publicado em 1998: ponto de partida para a pesquisa biográfica
Foto: Cynthia Nogueira

Percursos

As memórias de Rachel de Queiroz em “Tantos anos” – livro escrito com a irmã, Maria Luiza, e publicado em 1998 – é um dos pontos de partida para a biografia assinada por Sávio. Ele diz que a autora, de imediato, não era simpática à ideia de escrever sob a égide de um gênero tão confessional feito esse, afoito em recordações.

“A irmã precisou insistir. Ela própria, Rachel, chegou a dizer que não ia facilitar a vida de seus biógrafos. De fato. Sabe-se que ela queimou parte expressiva de sua correspondência, um material valioso para qualquer pesquisa biográfica. Por sorte, em suas crônicas, falou muito de si e do seu entorno – amizades, leituras, episódios caros à história do Brasil e do mundo. Outro ponto de partida, portanto”, conta.

Mesmo assim, o cenário ainda é cravejado de desafios. A primeira e provocadora missão é mapear, reunir e ler todos os textos, dispersos em vários periódicos – da década de 1920 ao início dos anos 2000. “Só sua produção na revista O Cruzeiro, onde manteve a lendária ‘Última página’, já justificaria sua biografia. Na página final do periódico, escreveu regularmente durante 30 anos (1945-1975). A biografia, portanto, deve cobrir toda essa produção, de número elevado”, sublinha Sávio.

Também são vários os lugares por onde o pesquisador atravessará a fim de recontar os passos da exímia narradora. Além de instituições como as Academias de Letras (Brasileira e Cearense), Arquivo Nacional, Fundação Joaquim Nabuco, entre outras, deve visitar os caminhos de Rachel no Ceará – a exemplo das famosas fazendas de sua família, como a Não Me Deixes, em Quixadá, o pedaço de terra que mais amou na vida, concebido por ela própria.

A história familiar de Rachel passa muito por esse ambiente sertanejo, flagrante também em seus romances, como se sabe”, destaca o estudioso, afirmando ainda que tem mantido contato com pessoas que escreveram sobre Rachel e/ou a conheceram, para colher mais informações. Heloisa Buarque de Hollanda, talvez a crítica mais importante da autora, é uma das que integram esse time.

“Igualmente, tenho conversado com quem se dedica à escrita de biografias, como Josélia Aguiar, biógrafa de Jorge Amado, e Wander Melo Miranda, que prepara uma biografia de Graciliano Ramos. Jorge e Graciliano são alguns dos escritores do convívio de Rachel que estarão na biografia. Já iniciei também o contato com a família da escritora, que devo entrevistar em breve”, complementa.

Minúcias

Sávio ainda comenta que pode não ser o primeiro pesquisador a apresentar as minúcias da escritora, mas já encontrou dados que nenhum dos trabalhos consultados por ele deu notícias. Pouco se fala, por exemplo, no primeiro marido de Rachel, o poeta bissexto e jornalista José Auto da Cruz Oliveira, pai da única filha que a literata teve, Clotildinha. A rebenta faleceu ainda bebê em função de uma meningite. “Normalmente, os textos em que ele é mencionado não vão além dessas informações. Essa – a história do casal – é uma das narrativas que pretendo contar com mais detalhes”, garante.

Num outro viés, pela própria formação do editor e pelo que isso significa na vida de Rachel, ele alimenta o desejo de recompor a trajetória da persona escritora da biografada, o que significa investigar seu percurso editorial, em dimensão nacional e internacional. “Sua produção amadurecida, sobretudo os romances, já é lida e consagrada, mas a Rachel antes de ‘O Quinze’, por exemplo, precisa ser melhor conhecida. São obras de uma iniciante – como o folhetim ‘História de um nome’ –, mas que já demonstram a inventividade de uma autora em plena ebulição”.

Legenda: Sávio diz que pode não ser o primeiro pesquisador a apresentar as minúcias da escritora, mas já encontrou dados que nenhum dos trabalhos consultados por ele deu notícias
Foto: Cynthia Nogueira

Entre as vontades de Sávio para o volume, está ainda a de trazer histórias que dizem respeito à produção de mulheres escritoras que dividiram o tempo com Rachel. Num ambiente dominado pela presença masculina, essas literatas que lhe foram contemporâneas – Dinah Silveira de Queiroz, Lúcia Miguel Pereira, Adalgisa Nery, entre outras – não deixam de chamar a atenção nesse ambiente, o do Rio de Janeiro em meados do século XX.

Desta feita, várias “Racheis” estarão no livro, tendo em vista que ela foi muitas: filha, mãe, tia, “avó” (seus sobrinhos, filhos de Maria Luiza, irmã mais nova, foram os netos que ela não pôde ter), escritora, tradutora, cronista, romancista, dramaturga e jornalista – sobretudo jornalista, como se apresentava. 

“Ela não ficou refém do acaso. Fez seu destino. Uma self-made woman, pode-se dizer. Não teve medo de conhecer e enfrentar o mundo. Apegada, sim, ao seu torrão natal – esse é, aliás, um de seus grandes temas –, mas não teme abandoná-lo. Saiu do sertão do Ceará, fez carreira no Rio de Janeiro, onde frequentou as rodas literárias e boêmias, ambientes marcadamente masculinos, o que nunca lhe serviu como impedimento”, destaca o biógrafo.

“Nos anos 1940, fumava em público, o que os bons costumes não recomendavam para uma mulher. Ao mesmo tempo, é essa mulher, mais tarde, que prefere se manter distante do movimento feminista – embora, jornalista iniciante, tenha articulado a publicação de textos de Maria Lacerda de Moura, um dos ícones do movimento no país, em jornal local. É também ela a responsável por criar uma galeria de personagens femininas marcantes na literatura brasileira, sempre prontas a tomar as rédeas de suas vidas. Uma pessoa é inclusive suas contradições, dimensão que a biografia também pretende explorar”, completa

Inclusive, um dado curioso encontrado por Sávio em texto do jornalista, romancista e biógrafo Antonio Callado (1917-1997) é que Rachel participou do grupo de trabalho do Aterro do Flamengo, coordenado pela arquiteta-paisagista francesa Lotta Macedo Soares (1910-1967). Ou seja, não bastasse ter entrado no cânone das letras cearenses, Rachel também tratou de se inserir na paisagem carioca de um modo geral. Segundo Callado, a ideia de instalar campos de futebol no Aterro foi de Queiroz.

A conversa com Sávio finaliza tratando a respeito do livro da autora preferido dele. É “As Três Marias”, de 1939, obra mais autobiográfica de Queiroz. “Talvez por esse motivo, já que Rachel não era dada à exposição de si”, diz.

“Mas não só. Nessa obra, a força da narração, de uma boa história, é premente. Acho que um dos seus legados é esse: em literatura, nada pode ser mais interessante do que uma história bem contada, aquela que segura o leitor pela gola da camisa. Nisso Rachel é e sempre será mestra”.

Reedições

Enquanto essa nova biografia da autora é preparada, vale conferir como o mercado editorial celebra os 110 anos de Rachel de Queiroz. Reedições de alguns dos principais livros da literata são a grande aposta do setor. O intento é nobre: fazer com que mais leitoras e leitores possam conferir a incontornável influência da cearense nas letras de todo o Brasil.

A editora José Olympio está reeditando toda a obra da autora em novo projeto gráfico, a começar por “O Quinze”, “As Três Marias”, “Dôra, Doralina” e “Memorial de Maria Moura”, quatro dos principais romances de Rachel. Totalmente repaginadas, algumas edições já podem ser conferidas pelo público.

Legenda: Nova edição de “Dôra, Doralina” já está nas livrarias e passará a integrar o catálogo virtual da editora José Olympio no dia 30 de novembro
Foto: Divulgação

Dentre as que já ganharam lançamento, “O Quinze”, primeiro e mais popular romance da escritora, recebe encarte especial; por sua vez, “As Três Marias” conta com prefácio de Heloísa Buarque de Hollanda, fortuna crítica com textos de Mário de Andrade e Fran Martins e um encarte com fotos da autora e das amigas que inspiraram as personagens do romance.

“Dôra, Doralina” está nas livrarias desde o dia 9 de novembro e passará a integrar o catálogo virtual da José Olympio no dia 30 deste mês. “Memorial de Maria Moura” é o próximo a ser lançado, igualmente recebendo um encarte especial, além do renovado projeto gráfico. A previsão é que chegue às prateleiras em março do próximo ano.

Assuntos Relacionados