Parceiros e cidades do Ceará na trajetória do Rei do Baião
Enlaçado ao Ceará pela geografia, a história e a música, Luiz Gonzaga reunia todos os atributos para ser considerado um cidadão desta terra
As fronteiras sempre foram mais simbólicas do que físicas. Gonzaga atravessava-as com a flexibilidade de um viajante cujas raízes, mesmo aterradas, também se queriam aéreas. É que do Pernambuco ao Ceará era apenas um pulo. Desses que, para ele, se dava com chuva e sol, poeira e carvão. "Era mais fácil subir a Chapada e ir pra feira do Crato do que ir para Recife ou outra cidade grande de Pernambuco. Tudo se resolvia mais para o Ceará", observa a pesquisadora cearense Elba Ramalho, cuja tese de doutorado aborda a música de Luiz como síntese poética e musical do sertão.
Foi para as terras de cá que ele fugiu de uma desilusão amorosa, três anos antes da maioridade e com o objetivo de se integrar ao Exército. No 23º Batalhão dos Caçadores, o jovem pernambucano serviu entre 17 de julho de 1930 e 24 de julho de 1931, quando a sede funcionava no Forte Nossa Senhora de Assunção.
De Fortaleza, saltou para o Sudeste, onde seguiu carreira militar em Minas Gerais até 1939. Após pedir baixa, para regressar à terra natal, tinha de passar pelo Rio de Janeiro e, na capital carioca, passou a tocar acordeon nas calçadas do Mangue. Lá, outra vez, ele contou com um "empurrãozinho" de cearenses. Um grupo de universitários, entre os quais Armando Falcão, intimidaram-no a tocar o repertório do Nordeste numa das boates em que costumava se apresentar.
"Fizeram-me uma sugestão que jamais esqueci, que abriu meus olhos para um novo caminho na minha arte: a música do nosso sertão, nossa música autêntica e tão vigorosa, que vinha sendo mistificada, deturpada pelos falsos artistas", diria mais tarde, conforme discurso reproduzido no livro de Elba Ramalho.
Parcerias
Foi também com o povo daqui que seu trabalho ganhou forte expressão. A procura por um letrista levou Gonzaga a Lauro Maia, que recusou o convite e encaminhou-o ao cunhado Humberto Teixeira. Em agosto de 1945, cruzavam-se os caminhos dos dois. Juntos, trabalhariam em 133 canções, incluindo Asa Branca. "Era uma canção de trabalho e ele (Luiz) leva esse tema para Humberto, que cria esse grande poema com uma estrutura poética incrível. É uma obra de arte impressionante", destaca Elba.
Em um novo encontro, nasceria "Baião", com a intenção didática de ensinar o ouvinte a dançar. Mesmo o reinado, por assim dizer, precisava de um cearense para a coroação. E não parou por aí. De Patativa do Assaré, gravou "A Triste Partida", do cratense Hildelito Parente obteve "Bandinha de Fé" e "Eu sou do Banco". "Gostava do estilo de ele tocar, a puxada dele é inconfundível, não é todo mundo que sabe imitar não, viu? Luiz Gonzaga era um mestre", recorda o parceiro, hoje com 78 anos.
Com Fagner também estreitou uma parceria sólida.
Eu gravei com muita gente, muito artista, mas o trabalho com Gonzaga tinha algo mais, uma coisa da região, mais nossa, do amor dele pelo Ceará também. Pelas nossas raízes. Tinha um pouco a mais nisso. E, felizmente, isso ficou registrado nos discos", ressalta.
Fagner recorda ainda que fez muitos shows grandes, "de parar região". "Lembro bem do nosso último encontro, quando ele já não estava recebendo mais ninguém direito. Lembro que nesse momento, eu fiquei olhando tudo aquilo com um olhar muito agradecido, por essa coisa nossa do Nordeste. Ficou essa lembrança forte dele", completa.
O cearense que participou do último show do pernambucano, porém, foi Waldonys. No palco do Teatro Guararapes, do Centro de Convenções de Recife, Gonzaga falou chorando e se despedindo para 2.500 pessoas: "Ninguém vai acabar com o forró, minha gente, porque o forró é uma música do povo. Nasceu ali no Exu e hoje está consagrado em todos os recantos do País", conforme matéria especial publicada por ocasião de sua morte no Diário do Nordeste.
Waldonys, identificado na reportagem da época como "sanfoneiro da nova geração", estava com 16 anos e já tinha noção, àquela altura, da debilidade do padrinho, que o havia presenteado com uma sanfona a qual lhe pertencera. "Ele pediu para eu e Dominguinhos tocarmos 'Nilopolitano', foi um momento muito marcante. Tenho uma lembrança bem forte, dele já na cadeira de rodas", recapitula. "Quanto mais o tempo passa, mais ele está vivo na memória das pessoas", acredita o sanfoneiro, hoje com 46 anos.
Homenagens
A mesma terra que acolheu Gonzaga no começo da vida, reverenciou-o por toda a trajetória. Foi assim com a comenda Sereia de Ouro, concedida em 1984 pelo Sistema Verdes Mares de Comunicação.
Vejo a homenagem como um reconhecimento do meu trabalho. Para um sanfoneiro, nascido no meio do povo, em Exu, no Sertão de Pernambuco, a Sereia de Ouro é uma grande felicidade. Para coroar um final de carreira, é um evento inesquecível",
disse ao Diário do Nordeste em setembro daquele ano. Na mesma ocasião, recebeu diplomas do Exército, no 23BC, pelos 10 anos de serviços prestados.
Da relação com o povo daqui, ele se considerava um felizardo. "Como sempre um cearense me botando prá frente", diria também em entrevista ao Diário do Nordeste, em 18 de fevereiro de 1982.
E já na batida de asas do "assum preto", por ocasião da parada cardiorrespiratória que levou-lhe à morte, no Recife, em 2 de agosto de 1989, o Ceará também se curvou. O cearense Dom Hélder Câmara celebrou a missa em Pernambuco. O poeta popular Pedro Bandeira cantou em versos a homenagem ao corpo dele no Aeroporto de Juazeiro e pelas ruas do Crato. E foi o padre Gotardo Lemos que seguiu com o Rei até o enterro em Exu.
É dessa relação tão íntima com o povo e também com cada pedaço de chão do Ceará, que Luiz Gonzaga se eternizou para nós como se um dia o sangue daqui tivesse corrido em suas veias. Talvez só tenha faltado mesmo isso para o Rei do Baião "cearense".
Colaboração: Felipe Gurgel, Germana Cabral, Roberta Souza e Rômulo Costa
*Agradecimento especial ao pesquisador Paulo Vanderley, que prestou consultoria para a realização desta série de reportagens sobre os 30 anos de saudade de Luiz Gonzaga