Mestra Zulene Galdino e a força da mulher na cultura popular: “Se não vem nosso direito, o Brasil perde também"
Aos 72 anos, ela reforça a importância das mulheres não desistirem dos espaços culturais
— Alô, museu da mestra Zulene, boa tarde! - diz a voz do outro lado do telefone, em uma ligação que conecta a repórter de Fortaleza ao município do Crato, no Cariri cearense.
O celular nem pertence a ela, pois não é muito afeita às tecnologias. Mas o discurso para responder aos interessados em seu trabalho, por meio do aparelho da sobrinha Josy, está sempre na ponta da língua.
“Meu nome é Zulene Galdino, nome artístico Mestra Zulene. Tô aqui agradecendo a Deus e o convite das pessoas para eu vir me apresentar”, introduz, assim como faz na abertura dos eventos culturais para os quais é convidada.
Dessa vez, ela é uma das escolhidas para contar sua história no Projeto Elas, iniciativa do Sistema Verdes Mares em prol do fortalecimento da luta das mulheres na manutenção de seus direitos e também do reconhecimento de suas conquistas.
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Com 72 anos, Mestra Zulene acredita que tem no máximo 10. Até porque, é com a criançada que ela mais convive, ensinando a dançar quadrilha, pastoril, coco e maneiro-pau.
Foram essas habilidades, aliás, que lhe conferiram, em 2006, o reconhecimento de Mestra pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. “Mas eu já nasci assim”, avalia.
Aprendeu muito com o pai, Luiz Galdino, do qual herdou o amor por esses saberes e alguns traços indígenas. “Era um pessoal tudo abençoado, animado”, recorda da família paterna, lembrando que mãe e pai eram primos.
“Na noite de São João, eles passavam a noite brincando coco de roda, aí eu tinha muita vontade de aprender também”. Tanto que absorveu e segue até hoje transmitindo, segura de que as crianças só não darão continuidade à tradição se não quiserem.
De portas abertas
É na Vila Nova Horizonte, no bairro Granjeiro, que está localizada a casa onde habita. A estrutura, adaptada como museu orgânico em 2019, é bem diferente das construções de palha em que cresceu, no pé da serra do Araripe.
Natural de Arajara, em Barbalha, foi mesmo no Crato que Mestra Zulene desenhou a maior parte da trajetória como “Rainha da Cultura e do Folclore”. Rezadeira, diz ter aprendido sobre cura com uma “caboclinha da mata”, nas lendas também conhecida como Caipora.
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“É assim que o povo me chama, de Rainha. Todo mundo dá valor a minha cultura. Agora, tem outras pessoas que não sabem o que é, né, aí não estão nem aí, mas quando eu vou me apresentar, todo mundo corre pra ir assistir, porque gosta muito”, orgulha-se.
Com a pandemia de Covid-19, a rotina foi drasticamente alterada. A casa-museu fechou e os ensaios com as crianças também foram suspensos.
“Ave maria, ruim demais, fiquei com medo e peguei até ansiedade, acredita? Mas já tô boa, fui vacinada, tô saindo, tá ótimo”, conta ela.
Em setembro, reabriu o museu orgânico para visitas, e, em outubro, fez até uma atividade para o Dia das Crianças. Além disso, já tem programado para os meses de novembro e dezembro as apresentações de Lapinha.
“As mães e pais ficam felizes demais. Quando tem alguma apresentação, terreirada, eu convido eles para verem os meninos dançando e ficam tudo satisfeito. Agradeço a Deus e a eles, porque confiam as crianças na minha mão”, diz.
É que no passado, a maioria dos adultos já esteve sob seus cuidados também. Assim, é como se Mestra Zulene carregasse uma legião de filhos, ainda que não tenha tido nenhum biológico. Criou três com a ajuda do esposo, Zé Miúdo, unida em matrimônio há 46 anos, e ajudou a educar algumas centenas. “Os filhos dos outros são também meus”, enfatiza.
Ela começa a receber os pequenos ainda bebês para participar das atividades culturais. “Entra até com 2 meses, para ser o Menino Jesus na Lapinha viva. Depois fica até 10,12 anos. Passou disso, quando começam a namorar, eu mando pra casa dos pais”, adianta.
Tecnologia é outra coisa que ela não administra nos ensaios. As crianças já são avisadas a deixar o celular em casa, porque, se não for assim, nem tem brincadeira.
O terreiro é sala de aula. E assim como ensina, a Mestra aprende um pouco com cada criança que passa por lá. "Tô até começando a ler com eles, porque eu sei bem pouco, viu?", admite.
Cultura como um direito
Com uma vida toda dedicada à cultura, ela reconhece os desafios da área, especialmente neste momento de pandemia. Mas não perde o entusiasmo, aproveitando essa força para incentivar outras mulheres com atuação nos espaços culturais.
“Não vamos deixar a nossa cultura cair não, porque ela é uma tradição de um povo brasileiro que gosta muito. Precisamos cada vez mais de apoio pra gente continuar”, introduz.
E, dialogando com esse discurso, a Mestra canta uns versos no ritmo do maneiro-pau:
“Nosso direito vem, nosso direito vem/ se não vem nosso direito, o Brasil perde também”.
Por entender a cultura popular e o folclore como ideias cultivadas no berço do mundo, ela convida as mulheres a ninar essas práticas, num processo semelhante ao que fazem com as crianças.
“Meu pai dizia que através da brincadeira, acaba a tristeza. E é mesmo, é uma tradição muito animada, alegre, saudosa, boa demais”, finaliza, convicta de que só o que é ruim deve ter um fim.