Maria Bethânia lança “Noturno” e pede luz em tempos sombrios: 'Sou intérprete do povo brasileiro'

Aos 75 anos, baiana lança disco urgente para os dias atuais e canta, entre outros nomes, inéditas de Adriana Calcanhoto, Chico César e do sobrinho, Zeca Veloso

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
maria bethânia de branco, com as mãos postas, diante de uma parede escura
Legenda: Canções inéditas e releituras compõem o repertório de 12 faixas de "Noturno", novo álbum de Maria Bethânia
Foto: Jorge Bispo/Divulgação

Do outro lado da linha está Maria Bethânia. A qualidade do telefonema não ajuda nos primeiros segundos da conversa. Em meio ao ruído, um simples “alô” tem o efeito de materializar a cantora. Como se falasse a poucos metros.

São 56 anos de estrada, e a baiana conta orgulhosa sobre a chegada de “Noturno”, nesta sexta-feira (30). Em meio a tempos tão doídos, a mensagem dedicada pela artista é de esperança. Em suas palavras, um álbum feito na coragem e com a missão de acalentar o máximo de corações. 

Canções inéditas e releituras compõem o repertório de 12 faixas. Bethânia canta crias de nomes como Adriana Calcanhoto, Mayte Martín, Chico CésarTim Bernardes, Xande de Pilares e o sobrinho, Zeca Veloso. “’Noturno’ reconhece essa oscilação sombra e luz”, anuncia Bethânia. 

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Solitária 

A coexistência destes opostos alimenta o 35º trabalho em estúdio da carreira. O contexto pandêmico conferiu tarefa árdua: “Foi muito difícil fazer o disco na pandemia. Muito complicado. Fiz no tempo mais breve possível”, compartilha.  

Foi apenas duas semanas e meia de gravações. Obediência a protocolos rigorosos. Temor quanto à terrível doença que continua vitimando os brasileiros. O obscurantismo lá fora. Esse cenário influencia os caminhos da criação bem como as marcas sonoras entregues. Está tudo em “Noturno”.   

Foi preciso aproveitar cada minuto. Por essa razão, situa a cantora, diferentes faixas contam com ela e apenas um acompanhamento instrumental. Adversidade transformada em beleza sem igual. Temos Bethânia e o violão. Acompanhada apenas do piano ou sanfona. Ou só a voz, encadeante, a recitar o poema “Uma pequena Luz” (Jorge Sena) que encerra o disco.  

“Mas, ao mesmo tempo, tinha uma necessidade tão grande de me expressar e chegar às pessoas que isso me encorajou. E eu: ‘vou com coragem’. Eu tinha um repertório, eu tinha uma ideia de falar sobre essa oscilação, essa necessidade de louvar a luz”, sentencia. 

Sentimento brasileiro 

O repertório e o time de músicos foram componentes vitais ao disco, enumera Bethânia. Com a mesma intensidade, a produção do cearense Jorge Helder, os arranjos e direção assinados pelo baiano Letieres Leite forneceram a leveza necessária para extrair o melhor do estúdio. O aporte foi decisivo à costura dos diferentes cenários do País cantados.

“Sou uma apaixonada pelo Brasil. Sou uma cantora e sou uma voz do povo brasileiro. Sou intérprete do povo brasileiro. É isso que me interessa na minha carreira”.

Da periferia carioca às águas do São Francisco, casos de “Cria da Comunidade” (Xande de Pilares/Serginho Meriti) e “Lapa Santa” e "O Sopro do Fole” (Paulo Dafilin e Roque Ferreira). “De Onde Eu Vim” (Paulo Dafilin) e “Bar da Noite“ (Bidu Reis / Haroldo Barbosa) evidenciam do sacro à penumbra esfumaçada das horas boêmias.  

“Para isso que eu trabalho. Para isso que me entrego e me dou. Eu dou a minha vida desde os 17 anos para isso. Lógico que aos 17 não sabia tão profundamente como sei hoje. Mas, posso olhar para lá e dizer que a entrega foi a mesma. Eu sempre querendo ser a intérprete, a tradutora do sentimento brasileiro”.  

Grito dilacerante 

Cada composição traz uma dedicatória pessoal da cantora. Para os “corações inquietos”, ela canta o esperto bolero “Prudência” (Tim Bernardes, do O Terno). “Luminosidade”, autoria de Chico César, é para pedir “misericórdia” e que nossos caminhos sejam abertos.  

“Dois de Junho” é crônica de uma tragédia brasileira. “Um grito dilacerante”, assim ela define.  É canção destinada à consciência dos “indiferentes”. “Num país negro e racista. No coração da América Latina...”, situam os versos de Adriana Calcanhoto.  

Bethânia denuncia e reluz dor ao cantar a violenta morte do menino Miguel Otávio Santana, que após negligência da chefe da mãe, empregada doméstica, caiu do 9º andar de um prédio de luxo no Centro do Recife (PE).   

Artista do palco 

A arte gráfica de “Noturno” recria esse louvor à luminosidade. Na parte interna do material constam bordados da própria Bethânia. As peças reproduzem um coração pulsante e o drama real do palco vazio. O carinho da plateia, a troca e sinergia alimentam o desejo de criar e traduzir sentimentos.

bordado de coração em vermelho feito por maria bethânia
Legenda: Na parte interna de "Noturno" há bordados da própria Bethânia
Foto: Divulgação

Palco é sinônimo de sagrado. A distância e o silêncio afetam severamente sua arte. “Ninguém pode imaginar a falta que me faz”, assevera. A experiência da primeira “live” da carreira, em fevereiro deste ano, foi considerada positiva. Repetir, jamais. 

“Mais uma vez eu tinha que imaginar o público e me concentrar na minha entrega e conversa para que chegasse, tocasse ou ouvido e coração das pessoas. Fiquei muito feliz fazendo, porque essa necessidade de se expressar é muito forte em mim. Foi muito bom. Mas, não tenho vontade de fazer outra não. Tenho vontade de subir no palco, com público presente. Isso eu tenho”. 

Iluminada 

Maria Bethânia completou 75 anos de vida em junho passado. O novo disco resulta de uma realizadora ciente do tempo no qual vive. Determinada a emprestar voz e alertar sobre quais urgências no cercam.  

“Uma realidade que precisa ser iluminada, precisa ter luz para enxergar e ter bom discernimento nas escolhas. Nas nossas vidas. Acho lindo que o povo brasileiro foi à rua dizer ‘eu quero vacina’. As pessoas todas querem vacina. As pessoas comemoram a vacina. Isso é lindo”

Forjado ante o silêncio de um momento tão sofrido, o álbum é um grito, um chamado por sabedoria, amor e a providência. Contudo, pedir luz é diferente de negar a escuridão. Maria Bethânia expõe feridas e dramas com retidão, mas não se furta de crer na aurora de dias melhores. 

“Essa luz pode ser fraca, mas é no meio de nós, latente, acesa, quente. Não é?”, atesta e conclui Maria Bethânia.   

A chamada é encerrada. O silêncio ecoa. Tal cortinas descendo o palco.  

 

capa

"Noturno"
Maria Bethânia
12 faixas, 2021
Biscoito Fino
R$ 50,90
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