Força, autonomia e subversão à tradição patriarcal: o cotidiano de três mães de santo cearenses

Curta-metragem sobre a história dessas mulheres de luta e inspiração será exibido no Cineteatro São Luiz em sessão especial

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Mãe Telma é filha de pai de santo e chefia, além de uma casa e de um terreiro de Umbanda, uma sucata em Fortaleza
Foto: Camila de Almeida

Mãe Telma é uma mulher negra, com uma história de muitas dificuldades, mas que, hoje, além da casa e do terreiro de Umbanda que lidera, chefia também uma sucata em Fortaleza. Filha de pai de santo, o sacerdócio a chamou desde muito cedo.

Mãe Cristina, por sua vez, também teve uma trajetória de muitos desafios, sem tanto acesso à educação. Atualmente, ao dirigir uma casa e um terreiro sob sua tutela, é chamada “mãe criadeira” de outros terreiros, responsável por maternar filhos de santo em diferentes casas. Filha da famosa Mãe Neide Pombagira, Cristina foi casada com um pai de santo.

Mãe Elisa é a única das três que chegou à graduação. Mulher branca, formada em Economia e atuante como trader na Bolsa de Valores, integra um terreiro onde divide a chefia com outra mulher, Mãe Dionete. Ainda possui mãe de santo, diferentemente das outras duas.

Essas personagens com travessias tão distintas, ao mesmo tempo unidas em muitos aspectos, protagonizam o curta-metragem documental “Arreda Homem que Chegou Mulher”, produção cearense com exibição marcada para este sábado (16), às 16h30, no Cineteatro São Luiz, de forma gratuita.

Visando abordar como o sacerdócio e a chefia de um terreiro de Umbanda traz força e autonomia para mulheres, o trabalho tem direção da jornalista e realizadora audiovisual Renata Monte e empreende profundos mergulhos na temática a partir das três personalidades entrevistadas. De acordo com Renata, a ideia do filme surgiu pouco tempo depois do ingresso dela na Umbanda, em que se tornou filha de santo de uma das protagonistas, Mãe Telma. 

“Quando pensei em escrever um argumento foi baseado na história de vida dela. Telma, além de chefe de um terreiro, é chefe de sua casa e de uma sucata, ramo majoritariamente ocupado por homens. O sacerdócio foi um divisor de águas, e exercer esse cargo de liderança a fortaleceu em todos os aspectos da vida dela”, detalha a realizadora.

Legenda: Mãe Cristina é chamada “mãe criadeira” de outros terreiros, responsável por maternar filhos de santo em diferentes casas
Foto: Camila de Almeida

Apesar de o edital da Lei Aldir Blanc possibilitar a concretização do filme, Monte sentiu a necessidade de pesquisar sobre outras mães de santo também transformadas pelo sacerdócio.

A proposta foi entender se, de fato, terreiros poderiam ser espaços políticos, de emancipação feminina. “Agora sei que são”, confirma.

Percursos de desobediência

O levantamento ganhou maior fôlego com a participação do antropólogo Jean dos Anjos, uma das grandes referências em estudos sobre Umbanda no Ceará – sobretudo devido aos aprofundamentos contemplando os festejos de Iemanjá e as festas de Pombagira. Munido de vasta experiência e do conhecimento de outros terreiros, ele indicou e guiou a equipe do filme na escolha das personagens.

O desejo do time era buscar mães de santo com narrativas distintas, mas ligadas por similaridades nos percursos dentro do sacerdócio. “Assim, Jean, Luana (Caiube, produtora do documentário) e eu optamos por escolher mães de santo que não são muito conhecidas na cidade ou que seus terreiros não sejam famosas casas de Umbanda”, destaca Renata.

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Foi como encontraram as mulheres descritas no início desta reportagem: três histórias diferentes, de classes sociais diferentes, bem como práticas de Umbanda bastante particulares, terreiros distintos e em três territórios distantes – Curió, Granja Lisboa e Papicu.

Ainda assim, elas esbarraram e ainda enfrentam o machismo e o patriarcado religioso diariamente, seja dentro de uma sucata, em disputas num terreiro ou na bolsa de valores, na rua e na vida.

Legenda: Com personagens de travessias tão distintas, ao mesmo tempo que ligadas por várias similaridades, o documentário reforça a garra e o protagonismo das mulheres
Foto: Camila de Almeida

Na companhia de pessoas tão aguerridas, a realizadora do curta-metragem documental aprendeu que terreiros de Umbanda devem ser espaços para potencializar pessoas. Mais: a dinâmica sedimentou nela novos conhecimentos. 

“É  impossível falar de feminismo em espaços de Umbanda e não falar de Pombagiras. Elas são as maiores representantes do movimento dentro da religião porque partem de signos de liberdade, de emancipação, de desobediência, de subversão. Então, no filme, essas figuras também contam como vivem sob a pedagogia das senhoras Pombagiras e o que essas entidades lhe ensinam”.
Renata Monte
Jornalista e realizadora audiovisual

Discrepâncias

Segundo a União Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros, 80% dos terreiros registrados são governados por mulheres. E, de fato, são elas as pessoas que mais procuram auxílios espirituais. Contudo, a partir disso, Renata Monte chama atenção para o fato de que é preciso levar em consideração outros dois fatores: primeiramente, a esmagadora maioria dos terreiros nacionais não são registrados em federações e acontecem de forma independente

A outra questão – que, para ela, é ainda mais relevante – é que ainda que mulheres sejam a maioria em lideranças de terreiros, quando se trata de visibilidade, autoridade ou espaço na mídia sempre são pais de santo que estão à frente. “Isso acontece desde os registros históricos e o mito da Fundação da Umbanda até a literatura e manuais de magia que guiam os estudos nessa área”, percebe.

Legenda: Mulher branca, formada em Economia e atuante como trader na Bolsa de Valores, Mãe Elisa integra um terreiro onde divide a chefia com outra mulher, Mãe Dionete
Foto: Camila de Almeida

Há, portanto, uma enorme discrepância entre homens e mulheres na religião. Compreendendo que a Umbanda também é política, a jornalista trabalha, assim, para que mais mulheres possam falar sobre as práticas de culto e atravessamentos.

“Umbanda é cultura e, assim como Paulo Freire sugere, um terreiro que ensina, reflete. Porque reflete, politiza;  e, porque politiza, insere pessoas no mundo não só pra viver as circunstâncias, mas para construir e transformar o mundo. Acredito nisso. Terreiros são escolas de vida”.
Renata Monte
Jornalista e realizadora audiovisual

Não à toa, conforme situa, é impossível uma mulher ser atravessada por outra e não ser transformada de alguma forma. Para Renata, existe algo sobre-humano nisso. Ela conta da felicidade pelos encontros proporcionados com vistas a realizar o documentário. Além dos nomes já citados, a obra ainda conta com direção de fotografia de Camila de Almeida e possui performances de duas artistas: Adna Oliveira dá vida a uma mãe de santo que cruza os caminhos com a Pombagira de Yasmim Shirran.

O figurino, por sua vez, foi criado pela artista visual e figurinista Cris Rodrigues, que agregou elementos circenses ao projeto. A trilha sonora é assinada pela multiartista Clau Aniz, com músicas do repertório intitulado “Filha de Mil Mulheres” e outras imagens sonoras originais.

“Acho que as relações que surgiram a partir do documentário foram surpreendentes. Eu não esperava me envolver emocionante com o trio para além do filme. São três mulheres muito fortes, destemidas, subversivas, cada uma à sua maneira. Mas é triste constatar como o machismo não escolhe mulheres, eles só as atropelam. Claro que existem todos os recortes de classe, sexualidade e raça nisso, e as lutas dentro do movimento feminista são distintas; mas, em geral, todas as mulheres travam batalhas diárias contra o patriarcado”.

Legenda: No documentário, a Pombagira da artista Yasmim Shirran cruza os caminhos de uma mãe de santo interpretada por Adna Oliveira
Foto: Camila de Almeida

Encontros

Neste sábado (16), a exibição do filme será seguida de uma conversa com as mães de santo no Cineteatro São Luiz. Será a primeira vez que elas vão se encontrar. Para Renata e toda a equipe do documentário, é importante que mulheres umbandistas se enxerguem umas nas outras, o que justifica a necessidade dessa distância mínima entre os olhos e as lutas.

Ao falar sobre as tantas reflexões oportunizadas pelo trabalho, Monte considera ser o cinema e a Umbanda movimentos, em essência, semelhantes. Ambos possuem arte e política como pilares, sendo instrumentos pedagógicos de disseminação de ideias.

Legenda: Para Renata Monte e toda a equipe do documentário, é importante que mulheres umbandistas se enxerguem umas nas outras
Foto: Camila de Almeida

Portanto, aproveitar essa janela de transformação social para falar de uma religião de matriz africana que prega a emancipação de mulheres é importante em qualquer momento da história, ainda mais neste momento do Brasil.

“É impossível ser umbandista e apoiar Jair Bolsonaro simplesmente porque são dois ideais que comungam de valores completamente opostos. É impossível cultuar caboclos e todo o povo da mata e ser favorável a PL 490 e o genocídio indígena. Não há como girar com Pretos e Pretas Velhas em um terreiro e ser a favor de um presidente racista. Não há como girar com Exus e Pombagiras e ser a favor de um presidente que abomina as minorias e populações marginalizadas”, contextualiza.

“Se uma pessoa diz ser umbandista e apoia o presidente, definitivamente essa pessoa não é umbandista. Pra mim, política e religião sempre serão temas a se debater. Fico feliz de poder fazer isso pelo cinema”.
Renata Monte
Jornalista e realizadora audiovisual


Serviço
Exibição do documentário “Arreda Homem que chegou Mulher”, de Renata Monte
Neste sábado (16), às 16h30, no Cineteatro São Luiz (R. Major Facundo, 500 - Centro). Gratuito. Capacidade máxima de 300 assentos, em virtude dos protocolos de segurança contra Covid-19. Mais informações: (85) 98601-3839

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