Do forrozão ao pop, a história da sanfona e de como ela se tornou um dos símbolos do Nordeste
Imortalizado por nomes como Luiz Gonzaga, instrumento ganha destaque em apresentação da Orquestra Sanfônica na Caixa Cultural Fortaleza
Sem sanfona, não dá. Já cantou Luiz Gonzaga (1912-1989): “Quem roubou minha sanfona, ai!/ Peço, não faça de novo”. O clamor do mestre é legítimo. Sobretudo no Nordeste, o instrumento ganha ares de sagrado. É o som que nos faz dançar, brindar, abraçar a vida. Compõe nossa identidade. Diz muito sobre o que somos e como vivemos.
Talvez poucos saibam, porém, que esse dispositivo musical tem raízes orientais. E que o chamego dele com o nordestino foi quem lhe deu o nome que hoje possui. No livro “Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular”, de Oneyda Alvarenga (1911-1984), consta que o termo “sanfona” começou a ser empregado em nossa região.
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Logo após, disseminou-se pelo Sudeste, tornando-se uma denominação genérica do acordeon brasileiro – grafado também como acordeão, acordeom, acordeona, fole e gaita-de-foles. “Por ser versátil e portátil, foi se popularizando rapidamente e adaptando-se à cultura de cada região do país”, situa o músico e professor Pedro Alves Feitosa, o Pedrinho do Acordeon.
De acordo com ele, a origem da sanfona não é clara. Há relatos de que ela surgiu a partir de um instrumento chinês criado há três mil anos antes de Cristo chamado Cheng. Totalmente diferente do instrumento que conhecemos hoje, mais parecia um bule – sem fole nem teclas.
Somente em 1822 o alemão Friedrich Buschmann (1805-1864) criou uma ferramenta musical chamada gaita de boca. Esta inspirou o austríaco Cyrillus Demian a inventar a gaita de fole, em 1829, trazida ao Brasil pelos imigrantes alemães por volta de 1846, sem cessar o alcance. “Dada a importância para a cultura nordestina, brasileira e mundial, a sanfona é tema de vários estudos e pesquisas”, salienta Pedro. E, claro, admiração. Muita.
Neste sábado (23), será possível estreitar o contato com essa energia a partir da apresentação da Orquestra Sanfônica na Caixa Cultural Fortaleza. O momento – totalmente gratuito – acontece às 18h, reunindo grandes mestres em leituras de clássicos da Música Popular Brasileira. Formado por 10 integrantes, o grupo liderado por Jair Dantas passeará por samba, música clássica, choro e o tradicional forró. Imperdível.
Mais versátil, impossível
A sanfona faz parte da família dos instrumentos de sopro (sopro mecânico), composta por três partes principais: teclado, no lado direito; fole, no meio; e os baixos do lado esquerdo. Com ela, é possível tocar qualquer estilo musical.
A versatilidade explica a forte presença em diferentes praças. Do sertanejo ao forró, passando pelo samba, rock, sala de reboco e grandes concertos em teatros, a sonoridade sanfônica agrada até os mais exigentes ouvidos. No Nordeste, o nome mais lembrado sem dúvida é o de Luiz Gonzaga. Com o trio sanfona, zabumba e triângulo, conquistou o mundo.
Em solo cearense, Adelson Viana, Chico Justino, Zé do Norte, Nonato Lima, entre tantos outros, são referência. Conversamos com o primeiro. Adelson vem de uma família de músicos por parte de pai. Aos 12 anos, aprendeu a tocar. “No Nordeste, um filho sempre aprende com o pai. Daí os exemplos de Luiz Gonzaga e Seu Januário, Dominguinhos e Mestre Chicão”, cita.
Nesse movimento de enxergar no parente um mestre, Viana teve a sorte de aprender teoria musical e só depois passar para o instrumento. Quando conseguiu tocar algumas melodias, elegeu a sanfona como companheira de vida. “É um instrumento riquíssimo, muito completo. Se começar a estudá-la, verá que possui um recurso enorme”.
O compositor, acordeonista, pianista, arranjador e produtor musical avança um pouco mais no assunto ao fazer a distinção entre sanfona e acordeon. Existe diferença entre eles? No fim das contas, trata-se de um mesmo instrumento, contudo em categorias distintas. Sanfona é utilizado sobretudo quando ligado a instrumentistas mais populares.
Acordeonista, por sua vez, é termo usado para o músico que toca por partitura, com conhecimento teórico maior, geralmente presença em orquestras. “De minha parte, gosto de usá-la para a nossa música brasileira, nordestina; aqui e acolá eu me arrisco a adaptar algumas músicas clássicas”, conta Adelson.
Sanfona para todos
São bons tempos para a sanfona, avaliam os entrevistados. Talvez o melhor deles. Viana lembra que, quando começou a tocar, na década de 1980, a música nacional recebia fortes influências dos Estados Unidos e da Europa, sobretudo no que diz respeito ao rock. Assim, o instrumento partilhado por Gonzaga soava tímido, quase inaudível.
Hoje, não. “Ela é usada em diversos gêneros de entretenimento. Mas, na minha opinião, gosto mais quando compõe um dos elementos da matriz que originou o forró”, considera Adelson Viana. “Fico muito feliz porque está sendo muito usada e valorizada. Os jovens estão estudando, as mulheres... Faz a gente pensar que o futuro dela está garantido”.
Verdade. Pedro Alves Feitosa confirma isso. O interesse dele pela sanfona também nasceu na infância, quando morava em Cococi, distrito do município de Parambu. Ao pedir a um senhor que lhe desse oportunidade de estudar o instrumento, teve contato com a esposa dele. Foi ela, Leolina Feitosa, quem transformou a vida dele.
Pedrinho estudou, começou a dar aulas e formou uma orquestra de sanfonas em Tauá. Em 2014, quando da visita do Dr. Airton Queiroz à cidade, o músico recebeu o convite para ensinar os estudantes da Escola Yolanda Queiroz, onde dá aulas até hoje.
“Me desloco semanalmente de Tauá para Fortaleza. Com muito amor e trabalho, nasceu a Orquestra Sanfônica da Escola Yolanda Queiroz, que está completando oito anos de existência. Atualmente, temos em Tauá e Parambu a Escola de Música Feitosa, com mais de 150 alunos de diferentes faixas etárias”.
Vetor de transformação. E para quem também quer embarcar na aprendizagem do instrumento, a dica é clara: toque a própria verdade, aquilo em que acredita. “Dedique-se, ouça os grandes mestres, estude músicas boas, estude, concentre-se. Costumo dizer que a sanfona é de difícil manejo, e é preciso realmente estar em dia com ela”, divide Adelson. Não deve ser sacrifício. Sem sanfona, não dá.
Serviço
Apresentação da Orquestra Sanfônica
Neste sábado (23), às 18h, na Caixa Cultural Fortaleza (Av. Pessoa Anta, 287 - Praia de Iracema). Distribuição inicia uma hora antes da apresentação. Entrada franca. Acesso a pessoas com deficiência. Mais informações: (85) 3453-2770