Dia Internacional da Tradução: cearenses relatam experiências e situam importância do ofício

Celebrada nesta quarta-feira (30), data convoca a reflexões sobre um trabalho capaz de dirimir fronteiras entre culturas, conhecimentos e saberes

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A tradutora Nina Rizzi acredita que, como todas as atividades humanas, traduzir é um ato político
Foto: JL Rosa

Até que um livro chegue às mãos do público, muitos processos são realizados – da revisão à diagramação, passando pela edição e finalização, entre outros. Caso surja o interesse de fazê-lo acessível em distintos idiomas, mais uma etapa é incluída nesse panorama: a tradução

Um dos nomes mais importantes da literatura nacional, João Guimarães Rosa (1908-1967) certa vez escreveu que “traduzir é conviver”. Faz sentido. Ao dirimir fronteiras entre culturas, conhecimentos e saberes por meio da lapidação do verbo, o trabalho de verter sentenças de uma língua para outra convoca a um novo modo de enxergar e vivenciar ideias e contextos. Em suma, é ofício plural, vigorosa maneira de experienciar vidas.

“Traduzir não é verter vocábulos e expressões de um idioma para o outro, mas entrar em um mundo e recriá-lo”, define a poeta, historiadora, professora e tradutora Nina Rizzi. Paulista radicada no Ceará, há 20 anos ela atua no ramo da tradução – primeiramente como forma de aprendizado do idioma espanhol, depois como um estudo da linguagem da poeta que ela lia apaixonadamente, a argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972).

Legenda: “Traduzir não é verter vocábulos e expressões de um idioma para o outro, mas entrar em um mundo e recriá-lo”, define Nina Rizzi
Foto: JL Rosa

De lá para cá, verteu para o espanhol 13 livros infanto-juvenis – dois de contos e um de poemas; quatro obras de poemas e um romance, do espanhol para o português brasileiro; e três infantis e dois de não-ficção, do inglês para o brasileiro, além da obra poética completa de Pizarnik e inúmeras publicações em poesia não coligidas em livros, no blog que administra ou na revista escamandro, que coedita.

Nina acredita que, como todas as atividades humanas, especialmente se tratando de fazeres criativos, a tradução é um ato político.

“Seja sendo uma ponte entre culturas diversas, aproximando diferenças, nos tornando íntimas de pessoas, costumes e sentimentos que, talvez, nunca tivéssemos a oportunidade de ter contato; seja também pelas escolhas que fazemos ao traduzir um texto, literário ou não: com palavras, posso transformar uma personagem em agressiva ou indignada, furiosa ou apaixonada. Posso embranquece-la e, com essa língua patriarcal, tornar uma mulher um homem”, detalha. 

Ela percebe que o fato de haver um curso de pós-graduação na Universidade Federal do Ceará (UFC) em Estudos da Tradução já é algo para se comemorar. Além da instituição, destaca ainda projetos e iniciativas nas Casas de Cultura e na Universidade Estadual do Ceará campus Limoeiro do Norte – por meio do trabalho das professoras Fernanda Cardoso Nunes, que traduz a autora mística medieval inglesa Margery Kempe; e Graciele Lima, que traduz Teresa d' Ávila, da Renascença espanhola.

“Por outro lado, infelizmente essa atividade ainda não tem seu devido valor. Não vemos nomes de tradutoras e tradutores referenciados nas capas dos livros – em alguns casos, nem mesmo no miolo, a não ser que seja um escritor famoso (o que vem diminuindo, graças à pressão da classe). Não se discute amplamente a importância do ofício. Muita gente nem sabe o quão diferente um livro pode ser de seu primeiro original”, lamenta Nina.

Expansão de horizontes

Tais perspectivas ganham maior fôlego neste momento em virtude do Dia Internacional da Tradução, celebrado nesta quarta-feira (30). A data merece destaque porque, entre outros atributos, “a tradução tem o potencial não apenas de ler uma cultura, mas recriá-la em um novo contexto político e social, transformando-a”.

Quem diz é Ana Maria César Pompeu, tradutora e professora de Grego Clássico do Curso de Letras e dos Programas de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras) e de Estudos da Tradução (POET) da UFC.

A cearense afirma que todo estudioso de uma língua clássica se inicia nela pela tradução: lendo as obras traduzidas e aprendendo a traduzir do original para a sua própria língua.

Legenda: Ana Maria César Pompeu é tradutora com trabalho voltado para o grego clássico
Foto: Arquivo pessoal

“Desde quando adquiri os conhecimentos básicos da língua grega clássica, tornei-me tradutora. Vamos dizer que a partir de 1990, como bolsista de extensão na UFC, auxiliando o professor Eleazar Magalhães Teixeira na revisão de sua tradução de ‘A República’, de Platão”, conta. 

A primeira tradução publicada levando o nome de Ana foi a comédia “Lisístrata”, do dramaturgo grego Aristófanes – em 1998, pela Editorial Cone Sul e, em 2010, pela editora Hedra. Ela traduziu ainda outras oito obras, todas do grego antigo para o português, algumas vezes sozinha, outras em parceria e algumas ainda não publicadas. Entre elas, considera “Acarnenses”, de Aristófanes, a mais desafiadora. Debruçou-se sobre o material em 2010 durante o Pós-doutorado em Coimbra (POR).

“Traduzi do grego para o cearensês as falas das personagens do campo, especialmente o protagonista da peça, Diceópolis, que foi traduzido como Justinópolis. ‘A Paz’, que também tem um protagonista do campo, foi traduzida para o cearensês”, detalha.

Atualmente, desenvolve pesquisa intitulada “As Mulheres de Aristófanes”, com o desejo de completar a tradução da tríade feminina do autor. Nela, ele deu voz e usou a voz das mulheres para expressar críticas à cidade de Atenas do século V a. C., apresentando soluções pacíficas e comunitárias na expressividade feminina.

“Me sinto fazendo uma ponte entre nossos antepassados gregos na Atenas Clássica e o Brasil hoje: somos muito parecidos. É muito bom poder contribuir para a recepção da comédia de Aristófanes, que traz uma lição de vida, paz e bom humor”, declara Ana. 

“Nossa área é muito específica quanto à tradução. Não podemos prescindir dela. Estamos formando mestres e doutores em línguas clássicas. Já temos traduções excelentes no repositório de dissertações e teses da UFC. Esperamos que o mercado editorial publique mais essas traduções para divulgar a cultura clássica, tão importante para a formação humanística dos nossos jovens de todas as idades”, torce.

Legenda: Uma das traduções assinadas por Ana Maria César Pompeu, contemplando o legado do dramaturgo grego Aristófanes
Foto: Divulgação

Mediação cultural

Membro da Associação Cearense de Tradutores Públicos, professor de Letras-Alemão e do PPGLetras (UFC), o tradutor cearense Tito Lívio Cruz Romão endossa o debate. Segundo ele, um curso superior na área de Tradução e Interpretação, com uma visão teórico-prática bem estabelecida, daria uma grande visibilidade a esses dois campos de atuação.

“Em países como Alemanha, Áustria e Suíça, a formação superior em Tradução e Interpretação não coincide com a formação em Letras como a conhecemos aqui”, compara.

Há duas décadas atuando nesse ramo profissional – é dele a tradução de várias obras nas áreas do Direito, Filosofia, Literatura e Psicanálise, de autores como Carl Schmitt, Sigmund Freud, Ottfried Höff, entre outros, geralmente do alemão para o português, mas também alguns poucos do inglês e francês para o português – Tito também elenca quais são os atributos que fazem um bom tradutor. Procurar ser um excelente leitor é uma delas. 

“Também deve ter curiosidade sobre todo e qualquer tema; dominar, com excelência, seu idioma materno e a cultura de seu país, e, pelo menos, muito bem a(s) língua(s) e a(s) cultura(s) com que queira trabalhar”, elenca.

“Além disso, deve gostar do trabalho solitário na camarinha quase sempre isolada, buscando, horas a fio, a maneira mais adequada de expressar em sua língua-cultura o que outra língua-cultura expressou. Estar aberto a consultar especialistas das áreas cujo vocabulário específico lhe cause dificuldades também é importante”, completa.

Tantas exigências justificam a relevância do trabalho: sem tradutores e intérpretes, o mundo não teria evoluído nas mais diversas áreas do conhecimento humano.

Legenda: Para o tradutor Tito Lívio, o ofício de tradução merece ser visto como uma atividade específica
Foto: Arquivo pessoal

Não à toa, Tito ainda destaca que a efeméride do Dia da Tradução é uma forma de nos lembrarmos do papel pioneiro de São Jerônimo – falecido em 30 de setembro de 420, daí a consolidação da data. Ao traduzir a Bíblia em latim, a chamada “Vulgata”, ele já estava preocupado com conceitos tradutológicos ainda hoje válidos: deve-se traduzir literalmente ou pelo sentido?

“Assim, celebrarmos esse dia também significa lembrarmos que o trabalho do tradutor e do intérprete merecem ser vistos como atividades específicas que exigem um longo aprendizado teórico e prático. Muitos se denominam tradutores e/ou intérpretes sem o mínimo preparo técnico e/ou acadêmico. O tradutor traz consigo a tarefa de construir a ponte necessária, de que nos falou José Paulo Paes”, conclui Tito Lívio.

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