Conceição Evaristo, curadora da próxima Bienal do Livro do Ceará, dialoga sobre afetos e lutas
Ao lado de Talles Azigon e outros nomes, a escritora, em entrevista exclusiva ao Verso, deixa entrever questões que justificam a necessidade de escutá-la e lê-la
Conceição herda a terminologia dos aumentativos: nasceu palavra grande. Tem um “ão” que potencializa a pronúncia, deixando o mais forte para o fim. Agiganta-se, assim, toda vez que é convocada. Con-cei-ção. A bem da verdade, contudo, a verdadeira força vem do significado. Conforme consta em estudos, o vocábulo próprio pode ser traduzido como “fruto”, “fecundação”. É ato de trazer à tona, sobretudo. Parir.
Já na Antiguidade, os egípcios consideravam o nome pessoal mais que um signo de identificação. Para esses povos, a palavra era dimensão do indivíduo, tendo em vista que acreditavam no poder criador da denominação recebida. O nome, portanto, seria coisa viva por estar simbolicamente carregado de propósito.
Conceição Evaristo, nesse sentido, alinha forma e conteúdo. Ao ser um dos mais importantes nomes da literatura contemporânea brasileira, contornando barreiras da discriminação e invisibilidade, torna-se mãe de gentes, conceitos e trabalhos – que, não sem motivo, esparramam-se para além das linhas e multiplicam-se em novas perspectivas sobre muita coisa. Em especial, a respeito dela mesma e de uma linhagem de mulheres negras e cultivadoras da existência.
“Eu sou de Belo Horizonte, a segunda filha de nove irmãos. Minha família tem mulheres que marcaram profundamente minha vida e que sempre tiveram lugares subalternizados. Gosto, então, de afirmar que a minha relação com a literatura nasce de um outro lugar, de espaços feito esses. Romper com o lugar de subalternidade dá sentido ao que escrevo. Algumas vezes, eu já disse que ‘escrever é uma espécie de vingança’”, confessa.
A declaração chega ao ouvido com voz paciente, timbre em pé de guerra mansa. Ela é toda escuta. E, quando fala, sempre evoca ancestrais, coletividades inteiras ressignificadas pelo desejo de proporcionar a leitoras e leitores a experiência de encará-las de modo distinto ao qual foram enquadradas pela história dita “oficial”. É talvez, segundo conta, a principal conquista que carrega consigo. “Essa visibilidade que estou tendo e a possibilidade de conquistar um público tão diverso são muito significativas”.
Confissões
Mas, feito todo mundo, Conceição também guarda minúcias. Tem algo de que se alegra muito, por exemplo, o qual dá sentido grande à vida: a permanência de Ainá Evaristo de Brito, sua filha. “Ela nasceu com uma síndrome genética que, segundo a Medicina, faria com que vivesse nem três meses. Hoje, está com 37 anos. E tenho certeza absoluta de que a força do pai dela e a minha luta, mais os mistérios da vida que a gente não entende, seguram a existência da Ainá. Talvez se ela tivesse nascido numa situação que não fosse tão desejada, não sobreviveria”.
Tem medo. Apavora-lhe ir a hospital. Receia adoecer porque, durante muito tempo, temeu como ficaria a filha na ausência.
“Hoje, claro, tenho essa preocupação também, mas vejo que ela tem uma certa independência; caso eu não esteja, se ela tiver alguém para gerenciar a vida dela, já sinto que sobrevive. Mas ainda tenho medo. Ainá sofreu muito quando o pai morreu. Eu não gostaria nunca de que a minha filha passasse por essa dor. Mas isso daí quem vai definir? Escapole às minhas possibilidades”.
Em distinto movimento, também é da opinião de que, no vasto léxico do português nacional, “esperança” e “paciência” destacam-se como palavras favoritas. Junto a elas, há pessoas e um tanto de histórias cujos caminhos confluem para o novo. Feito termos como “assuntar”.
É um dos típicos de sua vivência mineira, antes de rumar para o Rio de Janeiro, onde construiu e consolidou a carreira de escritora e professora. Significa observar, ficar digerindo a realidade. Conceição assunta muito. “Gosto da palavra e da ação que evoca”, situa a autora.
Nota-se, assim, que é uma mulher em várias. Ao demarcar as origens da escrita sob sua posse, cresce ainda mais em alcance. Recorda que as mulheres da família, as quais já mencionou, trabalharam para grandes nomes das letras nacionais, como Otto Lara Resende e Henriqueta Lisboa de Oliveira.
Talvez tenha nascido daí a raiz necessária para debruçar-se sobre as letras. “Nada indicaria ou permitiria que filhas de pessoas subalternizadas trabalhando em casas de escritores também cumpririam esse papel. A atitude que assumi diante disso é como dizer, ‘pois é, eu também tô aqui, apesar de todo o contraponto da história. Eu estou aqui’”.
Herança
Marcas da oralidade são o que mais ditam o fazer literário de Conceição Evaristo, nascida em origem humilde e com parte da vida nessa condição. Saiu de Belo Horizonte por questão de sobrevivência. Morou na favela do Pendura Saia, onde trabalhou como babá e faxineira, e rumou para a capital fluminense. Quer na nova circunstância, quer em outros tempos, as palavras que ouvia de familiares e amigos sempre emolduravam o viver. Cresceu rodeada de livros vivos, muito mais que os em brochura.
“Eu tinha um tio que era um verdadeiro griô (espécie de mediador de transmissão oral), tio Totó, casado com a minha tia. Eu me lembro que ele contava histórias com todo o corpo. Se o personagem morresse, se jogava no chão e você via-o ali, morto. Essa eloquência esteve muito presente nas narrativas que eu ouvia”, recorda.
“A minha mãe é uma mulher que até hoje, com 97 anos, responde determinadas coisas por ditados. Assim, toda essa vivência de expressões me deu uma sensibilidade muito grande, inclusive para a escrita”.
Não à toa, considera que o processo de desenvolvimento de suas obras marca tanto no nível do inconsciente quanto no da escolha estética. Quer levar expressões do cotidiano para a literatura, frases que se aproximem o mais possível de um registro oral. Em “Ponciá Vicêncio”, primeira obra publicada individualmente, em 2003, faz isso: em certo momento, troca “semelhança” por “parecença”, jeito bonito de estar ali, onipresente.
As escolhas estéticas são conscientes, garante. Porque em momento algum esquece que está trabalhando com a arte da literatura. Por isso aprecia tanto consultar o dicionário: prefere fugir dos termos comuns. “Gosto de trabalhar com palavras em português mais antigo e que algumas pessoas mais velhas ainda usam. É um trabalho artesanal mesmo, que produz um efeito no texto. Falam mesmo que minha prosa é poética”, avalia.
Daí vem o termo que cunhou, “escrevivências”, escrita contaminada pela vida. Surgiu em 2009, durante um seminário sobre mulher e literatura. No evento, afirmou: “A nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim para acordá-los de seus sonos injustos”.
“Por que digo isso? Tem uma figura no imaginário brasileiro que me incomoda muito que é a imagem da mãe preta. Ela trabalha na casa grande e cria os filhos da prole colonizadora. Uma das funções que essa mulher tinha era justamente a de contar histórias para adormecer os meninos”, diz.
“Sempre fico pensando, assim, em como a mulher escravizada estava inscrita em algo grave: a questão da fala que, imagino, também fosse comandada. Ela tinha que falar. Quando afirmo nossa escrevivência, penso nela como texto que hoje não está comprometido com a casa grande. Nós escrevemos o que queremos escrever. Não é uma literatura canônica que vai me dizer que história contar e o que escolher para isso”.
Afirmação
No ano passado, Conceição Evaristo protagonizou um dos momentos mais intensos da literatura nacional: a candidatura à Academia Brasileira de Letras (ABL). Seria a primeira negra a se tornar imortal pela Casa. Mas não aconteceu, apesar do documento que deixou às portas da instituição declarando o desejo de entrada e a petição online, com 25 mil assinaturas apoiando a causa.
“Vejo que a posição que a ABL tomou simplesmente confirma como são as instituições brasileiras. De uma forma geral, são espaços em que a presença das mulheres é muito pouca. Se existem, são brancas, e uma quase ou total ausência de pessoas negras”.
Ao metaforizar a Academia como uma casa, a autora é direta: falta gente ali. “Se formos pensar o discurso literário como aquele que representa a identidade de uma nação, e se considerarmos a Academia como a casa simbólica que guarda esse discurso, então nesse lar está faltando habitantes. Temos uma representação capenga da literatura brasileira”.
E completa: “Falo sem modéstia: quem perdeu não fui eu. Porque foi um desejo coletivo. As pessoas têm insistido muito para que eu torne a me candidatar. E, às vezes, acho que a gente tem que avaliar a Academia não só pelos que estão lá, mas pelos que não estão também. Tem alguma coisa que ainda está mal arrumada. O que eu vou fazer é escrever a história dessa candidatura. Ela não pode ser esquecida”.
A decisão alinha-se ao desejo que outros negros e negras, e indígenas, candidatem-se à instituição. Tanto é que, quando indagada sobre o que tem a dizer especialmente a mulheres negras e periféricas que resistem para contar suas histórias, ela cita Carolina Maria de Jesus (1914-1977).
“Ela se assume como escritora no momento em que Clarice Lispector, Jorge Amado e Lygia Fagundes Telles estão escrevendo. Tinha certeza, então, de que a escrita também era algo que lhe pertencia. Acho, assim, que cada uma das mulheres que estão nesse processo tente, não desista, não”.
É não se deixar paralisar, feito que se confunde com a própria trajetória.
“Eu poderia dizer que nada me paralisou. Quando o meu marido morreu, minha filha tinha nove anos e hoje vejo que passei por um processo profundo de depressão. Mas continuei trabalhando e cuidando dela. Então, nem a dor me paralisa. Nada mesmo”.