Cearense vencedor do Jabuti, Mailson Furtado lança novo livro e integra antologia sobre o sertão
Seja revisitando experimentações poéticas ou se lançando na escrita de prosa, literato avança em múltiplos atravessamentos com a palavra
Dois chinelos descansam na capa de “Nômade”, novo livro do poeta cearense Mailson Furtado. Pouco importa se o repouso é da chegada ou da partida. Interessa mais saber os trajetos por onde os pés passaram, quais caminhos sedimentaram a travessia. O próprio literato adianta terem sido muitos os cenários. “A obra compila minhas primeiras experimentações poéticas, escritas entre os anos de 2007 e 2014”, diz.
Vastas geografias, portanto. Cada uma delas encontra novo fôlego principalmente a partir de releituras de poemas publicados nos dois primeiros livros de Furtado – “Sortimento” (2011) e “Versos Pingados” (2014) – e algumas criações inéditas, compostas nesse período. O processo de seleção da produção deu-se numa espécie de garimpo dos trabalhos que de certa forma apresentam as primeiras vivências do poeta com a palavra.
Ao mesmo tempo, sempre foi uma tônica importante do projeto igualmente desnudar o primeiro encontro da escrita de Mailson com o público. Isso porque os livros citados tiveram, à época, curta tiragem e estão há tempos esgotados, bem como sem quaisquer motivos para reedições ipsis litteris editoriais ou literárias. “Não satisfeito com esse hiato, surge ‘Nômade’”, sintetiza o autor.
É também uma experiência de conhecer o gênio criativo de Mailson antes do laureado “à cidade” (2017) – título pelo qual o varjotense recebeu o Prêmio Jabuti nas categorias Livro de Poesia e Livro do Ano, em 2018. Para quem se afeiçoou à poética de Furtado a partir desse volume, a leitura da nova obra sob sua pena deve seguir o mesmo rastro de encantamento e engenhosidade responsável por catapultar o poeta ao posto de um dos mais interessantes nomes da criação contemporânea em versos.
Tantas paisagens
Dedicando o livro “aos que me deram caminho, encontro e morada em sua poesia”, e trazendo como epígrafes versos de Paulo Leminski (1944-1989) e Orides Fontela (1940-1988), o autor empreende em “Nômade” uma orquestra de viagens tanto pelo próprio eu quanto por um outro que se encontra lá fora, num frequente diálogo entre observações.
Em “Aparências sem motivo”, por exemplo, o poeta encara o tempo ao se valer do contato com uma fotografia. “minha pose/ não me diz o que sou na foto// minha foto/ não me mostra hoje// o hoje/ é isto”, considera. Já em “Passagem”, observa os gestos do cotidiano a fim de nomeá-los. “a vida passa/ como passa um sei-lá/ em sua cabeça agora”.
Para Mailson, o trabalho realmente passeia por várias possibilidades e por um nomadismo de fato – em experimentos, temáticas e outras possibilidades. Daí um dos porquês do projeto do livro.
“Esses encontros com o acontecer cotidiano às cenas ‘invisíveis’ são um dos meus primeiros encontros enquanto artista, e o motivo de obras seguintes, como ‘à cidade’ e ‘Ele’. À época, o encontro de tais cenas, pralém do fazer literário, foi fundamental para uma consciência pessoal de tradução de mundo, até ali distantes de mim”, percebe.
O sentimento ao encarar o próprio fazer poético de anos atrás, conforme situa o escritor, foi bem distinto em relação a todas as outras iniciativas que já realizou. Nesse sentido, a palavra “reencontro” e tudo o que ela carrega talvez possa ser a melhor empregada aqui.
“O livro desnuda meu primeiro encontro com a palavra, em experiências ora profundas, ora inocentes e óbvias de um menino sertanejo encontrando o primeiro olhar de mundo, que explicam muito do que o autor Mailson veio a ser em obras posteriores”.
Trata-se, assim, de também um exercício de análise do próprio trilhar literário, demarcando que tudo o que há na obra não nega em nada a produção que foi se costurando posteriormente, mas se soma e se entrelaça a ela. Desta feita, o Mailson de “Nômade” é o mesmo de agora, no entanto sem as referências que somente o tempo, com suas vivências e leituras, pode ofertar. Algo que alguns versos do livro deixam claro: “se eu mudasse o caminho/ que segui?// não sei não sei// só sei desse verso/ que não estaria aqui”.
Cidades possíveis
Disponível na Amazon Kindle nos formatos físico e eletrônico, além de seguir com um projeto o qual sela uma parceria com Renancio Monte, capista da obra, o livro possui alguns dos poemas gravados em vídeo. As produções estão disponíveis em @mailsonfurtado.
Lançado virtualmente neste mês, o trabalho também deve protagonizar outros instantes de encontro e de conversa em outubro – tanto na cidade natal do poeta, o município de Varjota, quanto em outros locais do Estado. Até lá, igualmente pode ser adquirido diretamente nas redes sociais do autor (Facebook e Instagram) ou a partir de site próprio.
Tão afoito ao registro da rotina nas cidades, Mailson ainda reflete como é produzir poesia neste momento em que o isolamento compulsório ainda é tão necessário. Que cidades possíveis o gênero é capaz de construir sob esses moldes? “Foi/É um exercício a novos prismas do que a cidade poderia ser também, e assim outros encontros possíveis, a emborcar-se no seu interno”, situa.
“Casas ganharam outros contornos, o conceito de distâncias ressignificou-se, e nisso tudo a poesia tomou seu lugar ao nos apresentar que espaços são/foram esses. Creio que as cidades ganharam esse novo prisma: o de ver-se um pouco do interno ao externo, ou do individual ao coletivo, e enxergo em tudo isso um caminho sem volta”.
Incursões pelo sertão
Publicada pela editora Reformatório, a antologia “Geração 2010: O Sertão é o Mundo” é outra recente empreitada que traz o nome de Mailson Furtado. O projeto conta com a participação de 25 autores surgidos na literatura brasileira contemporânea a partir da década impressa no título. Em comum entre eles, o fato de virem de fora dos centros de poder do Brasil, serem parte de grupos discriminados, produzirem uma literatura épica e poética e não terem começado suas carreiras apadrinhados por grandes editoras.
Mailson recebeu o convite para integrar a obra a partir do organizador da antologia, o jornalista e escritor Fred Di Giacomo, responsável pela seleção do time de autores e autoras. Segundo o poeta cearense, trata-se de uma espécie de re-descoberta do País a partir da literatura. “Fico muito feliz de estar junto de tantos/tantas artistas desse cenário contemporâneo que muito me inspiram”, festeja.
Furtado e a escritora Jarid Arraes são os únicos cearenses participantes da iniciativa, que também traz nomes como Itamar Vieira Junior, Maria Valéria Rezende, Ailton Krenak, Nara Vidal, Raimundo Neto, Micheliny Verunschk, entre outros. O texto de Mailson na coletânea intitula-se “Considerações sobre o sertão”, e é uma das primeiras experiências do poeta com a prosa – que, na verdade, é atravessada por seu fazer poético.
A produção compõe uma série de textos de ensaios-poemas que o autor vem produzindo. Seu alicerce se dá a partir de fichamentos e de algumas imagens poéticas imbuídos de situar o que seria ou onde estaria o sertão que sempre procuramos. Tudo a partir de um trilhar histórico e folclórico de dizeres desse lugar ainda uma interrogação.
Adiantando outros projetos, no momento o autor tem se dedicado à divulgação de trabalhos mais recentes, principalmente os lançados no ano passado – “Tantos Nós” e “Ele”. Nesse mesmo ritmo, também tem se debruçado sobre iniciativas literárias paralelas, a exemplo do ministrar de vivências e oficinas de escrita poética, além de algumas ações em parceria com outros artistas, mesclando literatura e outras artes.
“Na questão da escrita, tenho alguns trabalhos em andamento sob várias frentes – versos, crônicas, ensaio-poemas – mas ainda muito incipientes e que ainda precisam quarar ao tempo para se porem de pé. Projetos que cogito minimamente por volta de 2023”, estima. É quando os chinelos palmilharão a estrada com mais força, certos de que nunca saíram dela.
Nômade
Mailson Furtado
Independente
2021, 64 páginas
R$ 30
Geração 2010: O sertão é o mundo
Vários autores
Organização: Fred Di Giacomo
Editora Reformatório
2021, 200 páginas
R$ 46 (edição limitada)