As memórias da última casa da Beira-Mar de Fortaleza
Residência será demolida por construtora, juntamente a dois hotéis de menor porte e um restaurante; nas paredes e habitantes do lar, a vontade de permanecer existindo
São pouco mais de duas horas da tarde. É festa na última casa da Avenida Beira-Mar de Fortaleza. Não há bolo, bandeirinhas nem canção. É festa porque tem gente reunida. Três crianças e três mulheres que brevemente não estarão mais ali. A casa não estará – o piso vermelho, girassóis na mesinha, ecos de risadas nas paredes. Qual a fisionomia da falta?
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A pergunta rodeia o gradil da fachada, logotipo de construtora. Em silêncio, anuncia: vem coisa nova por aí. Mais alta, mais larga, para poucos. Condomínio residencial de luxo. Rodeia também os passos arrastados de Mary Luce Miranda de Freitas, 75. Ela é uma das moradoras do lar que ainda permanece. Foi talvez quem promoveu aquela festa do encontro: quer ficar.
Mas já não há mais espaço para o sonho. Nem para a realidade. “Aqui tudo ficou perigoso, e a casa é muito grande para somente duas pessoas morarem”. Então a proposta de compra do imóvel veio, após tantas outras. Dessa vez, os donos decidiram vender. O edifício venceu. Este é um relato do acúmulo de detalhes que fica quando tudo da última casa for.
Cabe, então, falar da morada tal qual se fala de uma pessoa. Decerto receberia muitos nomes – Mary, Márcia, Neuza. Luiz Gonzaga e Zacarias. Em ordem, é como se chamam a irmã, a mãe, o pai e o avô de Mary Luce. Antigos e atuais moradores juntos num círculo de memórias. São várias. Começam com o mar. “Mamãe adorava nadar com minha irmã”.
Ele já esteve pertinho, limpo e nítido. Hoje as barracas e o movimento fazem escudo. Ainda assim, desanuvia a inquietude de Mary. É a ele que ela volta, seja no térreo ou na parte superior do duplex. Gosta de observar as pessoas e sentir os cheiros. Imaginar. Lembrar. Costuma sentar em uma das poltronas da sala de baixo para isso. Cômodo preferido.
Ambiente que, antes, já foi mercearia e sorveteria. Artigos primeiros e doces privilégios. Vocação longeva de reunir gente. Aos fins de tarde, ninguém enfurnado. Cadeiras na calçada para conversar. O costume é praticado até hoje. Passe lá para você ver: Mary, Márcia, amigos de longa ou curta data, colegas da Igreja de São Pedro dos Pescadores. Comunhão.
“Mas nós não temos mais vizinhos. Tudo foi embora. As casas já foram vendidas, restou só a nossa. Aqui é minha referência de lugar. É minha parte mais conhecida da cidade. Eu gosto daqui. Ficarei com saudades”.
Objetos-histórias
A família passou a viver no endereço em 1963 – a casa originalmente é de seu Zacarias, avô de Mary Luce – e tem a história registrada em cada fragmento de espaço. Além das fotografias eternizando formaturas, nascimentos, casamentos e afins, outros objetos tratam de revelar o rosto da moradia. São livros, espelhos, lustres, ímãs, abajures, banquinhos.
São também camas, televisores, artigos de fé de toda ordem. Infiltrações e rachaduras. “Se minha mãe estivesse viva, vocês iam ouvir a história do Mucuripe. Esta é a terceira rua, o mar sempre colocou eles pra fora. É como se fosse um tsunami”, dimensiona a filha, professora aposentada, ao falar de dona Neusa Miranda, falecida aos 98 anos. “A casa é original, muito antiga. Quase tudo é o mesmo como era antes”.
Exceto as cores. Quando todos reunidos, pouca idade e outra rotina, cada cômodo possuía uma diferente. Agora, um rosa quase branco contorna a extensão do lar. Deixa as coisas mais ternas (e econômicas). Delicada monocromia. Está na área/garagem, sala de estar, de jantar, banheiro, cozinha e quintal do térreo. Está nos quartos, banheiros, sala e na varanda de cima.
Neste último cômodo, uma extensa cortina abre a vista para o já comentado oceano. Fortaleza ali parece gradeada, o fio entrançado da tela deixando a luz entrar. Mary toca o tecido fininho e parece se perder na extensão de fios, ondas e redes. O pai, recorda, trabalhou com o renomado cineasta Orson Welles (1915-1985) durante a vinda do americano para cá.
“Daqui, presenciei o crescimento da Beira-Mar. Não tinha nenhum desses edifícios luxuosos, não tinha nada. Com o tempo, foram os coqueiros saindo e os prédios chegando. O que vai embora quando cair a estrutura? Muitas lembranças”.
“Da força da grana que ergue e destrói”
Após saírem da casa – ainda sem data confirmada – Mary e a irmã, Márcia, pretendem se mudar para perto dali. Não querem se desvincular do que aprenderam a amar. Desejam um apartamento pequeno, lar onde possam aprender a não olhar para as antigas paredes. Que já não estarão erguidas. Que serão outras, luxuosas e distantes.
Pergunto sobre o que ela sente quando vê as crianças que estavam na casa do dia da nossa visita – filhas de uma sobrinha, morada em York (ING) – ocupando o imóvel. “Penso que, da próxima vez que elas vierem, talvez não estejamos mais nem aqui”. Daí, suspira. Mary tem um olhar gentil, mas que vai turvando aos poucos. Uma esfinge pequenina e melancólica.
Não se sabe ao certo quando será o momento final da última casa da Avenida Beira-Mar. Até lá, cabe investir em festas – naquelas em que é preciso somente estar presente com as pessoas preferidas para sentir o tempo das coisas. Saber que não se soterram importâncias. Aquelas importâncias reunidas no número 4558, sob azulejos verdes e rosas.
Possivelmente haverá uma canção. Mary quem canta. “Sampa”, do Caetano. Um trechinho que diz: “Da força da grana que ergue e destrói coisas belas”.