'Acredita em si mesma, bixa!': com afirmação de si, desenhista Peaug faz manifesto pelas vidas LGBT+
Apaixonada pela ilustração desde a infância e inspirada por Leonilson, Peaug rompe muros para ecoar mensagem de afeto e esperança
O desenho é parte fundamental da existência da artista visual cearense Peaug, 31 anos, desde muito cedo. Por ter sido uma criança muito tímida, essa era a linguagem que melhor conseguia usar para se expressar e se conectar com as pessoas – dos colegas de sala da escola, no dia a dia, aos ídolos mais distantes, como a apresentadora Xuxa, uma das artistas que mais gostava de retratar no papel. O que a futura desenhista ainda não sabia na época é que, de fato, não precisaria de muitas palavras para comunicar o que queria.
Incentivada pelos pais a se manter em contato com a arte, Peaug se dedicou ao hobby durante toda a adolescência – o que a levou ao curso técnico de Edificações do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), onde começou a estudar desenho com um viés mais técnico, voltado para a arquitetura.
Foi ali, no entanto, que percebeu que não era exatamente isso que queria. Nas horas vagas, seguia desenhando pessoas, famosas e conhecidas, realistas ou não – e entendeu que era gente, e não prédio, o que a interessava.
Um passeio ao Museu de Arte Contemporânea (MAC) do Dragão do Mar foi o que mudou tudo. Até então, Peaug seguia riscando, decalcando, criando, mas não sabia o que fazer com aqueles desenhos. Naquele ano de 2013, ao se deparar pela primeira vez com uma exposição com obras do artista cearense Leonilson, conseguiu enxergar possibilidades.
“Foi quando achei a minha grande referência”, lembra. Naquele dia, entendeu as pessoas que ficavam admirando obras em museus por horas: ficou quase duas horas ali, refletindo, absorvendo, se encantando. “Ele conversava muito com materiais que eu gostava de usar. Foi muito importante para eu entender isso e me ver, né? E sonhar com, um dia, fazer uma exposição na minha cidade natal como ele”, completa.
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O impacto foi tão grande que virou decisão. Dali, se abriu para pesquisar mais sobre arte, conhecer novos espaços e referências. Afinal, assim como ela, Leonilson usava materiais e traços simples para que o foco fosse na ideia da obra, não necessariamente na técnica. Descobriu, então, que o que fazia também era arte.
“A obra do Leonilson, em geral, me passa a ideia de uma pessoa com urgência de falar. Urgência de botar para fora, de sintetizar o que se está sentindo. Quando eu vejo os desenhos dele num papel branco, com caneta preta, poucos traços, poucas informações, para você focar na ideia… Aquilo me pegou muito”, explica. “Entendi que eu também precisava desenvolver a minha sensibilidade e falar das minhas urgências”, completa.
Apesar de profundo, o contato com a obra do artista plástico cearense era só o início. Agora, era preciso mergulhar. “Me concentrei muito em desenho, pinturas, aquarelas e busquei essa identidade. Aí, eu fui entendendo que desenhar pessoas, seres, humanoides, era um caminho em que eu conseguia desenvolver uma pesquisa”, lembra.
Foi nessa época que a artista começou a desenvolver uma técnica que chamou de “Como Que Chega Perto”, representada por pessoas “com poucos elementos corporais, além dos contornos e olhos olhos”. Os personagens ali rabiscados se dividiam em dois tipos de desenho: às vezes minimalistas, às vezes em meio a elementos “caóticos”.
“O que não conseguia contemplar com um, contemplava com outro”, explica. Para ela, reduzir as pessoas a traços mais simples era uma forma de tentar traduzir emoções, colocando-as em primeiro plano.
“Hoje, me entendendo, enquanto não-binária faz muito sentido eu ter reduzido os elementos desses desenhos a um corpo com uma expressão de gênero indefinida. A genitália foi sumindo [nos desenhos] e, enquanto eu percebia isso, eu não entendia muito por quê”, comenta. “Acho que o desenho me possibilitou muita coisa, muito entendimento de identidade, não só de gênero, mas de identidade geral mesmo”, pontua.
Arte como ferramenta política e de cura
Apesar das alegrias e descobertas pessoais e profissionais potencializadas pela arte, o desenho também foi apoio e suporte para percorrer caminhos difíceis. Foi com a ajuda dele que Peaug conseguiu encontrar novas ferramentas para lidar com a depressão, uma questão que a acompanha há muitos anos.
“Era uma forma de me entender quando eu não tinha palavras ainda para isso”, destaca. Foi em 2016, em um momento de agravamento do quadro depressivo que surgiu o que, talvez, tenha sido seu trabalho mais importante até o momento – feito com traços simples e minimalistas e nascido de uma urgência, como Peaug acredita que deve ser.
A artista estava deitada na rede do quarto, onde estava passando boa parte de seus dias, quando sentiu o impulso de ir até uma das paredes e cravar ali um lembrete: “Acredita em si mesma, bixa!”, escreveu. Para emoldurar o escrito, fez um coração. Dali em diante, por dias e dias, se deparava com a própria mensagem, buscando força na afirmação.
“Como a depressão sempre foi algo muito presente para mim, eu buscava formas de não me sentir só, de continuar, de trazer graça para a vida”, explica. “Às vezes, o desenho, as artes, têm um aspecto terapêutico, embora nada substitua a terapia com um terapeuta. Mas as artes têm esse aspecto de liberação de energia, de sentimento”, completa.
A mensagem se tornou tão importante na sua rotina que passou a fotografá-la frequentemente, publicando os registros nas redes sociais. Depois, começou a compartilhar o recado em espaços artísticos, como o Salão das Ilusões. E foi vendo as pessoas interagindo, comentando, questionando – percebeu, então, que ali existia uma pesquisa possível.
O tempo passou. Em 2018, Peaug foi convidada a participar da exposição coletiva “Soterramento”, no Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (ICA/UFC). Na época, a artista passava por outro momento delicado, acompanhado por um bloqueio criativo, e não sabia o que poderia apresentar ao público.
Decidiu, então, fazer uma instalação que resumia um pouco daquele ano difícil: juntou camisas, peças íntimas, caixas remédios, guias de exames e um pedaço da parede do quarto, onde costumava desenhar – além de roteiros do curso de teatro, outra linguagem artística que vinha se tornando ponto importante na trajetória da artista. No centro da obra, havia uma camisa branca com os dizeres “Acredita em si mesma, bixa!”.
O ‘Acredita em si mesma, bixa!’ é mais do que uma frase. É toda essa carga que a gente traz. (...) Surgiu em um momento triste, mas foi de uma pessoa que viveu muitos momentos felizes, e que viu naquilo uma oportunidade de se expressar. Isso quer dizer muita coisa.”
Peaug ressalta que, apesar do jeito leve e humorístico, a frase também traz muito de político. “Para mim, é uma expressão muito clara de uma bicha cearense, porque a gente é muito acostumado a falar e a usar o ‘bixa’. Pra gente, que é LGBT, cearense, nordestina, é uma palavra enorme”, afirma
De palavra usada de maneira pejorativa, o bicha ou bixa tem ocupado lugar semelhante à expressão inglesa queer, que não significa apenas uma sexualidade, mas também um amplo espectro de identidades LGBTQIAP+. “É usado para denominar a nossa galera”, pontua Peaug. “É um termo que a gente tomou o poder dele, se apoderou dele”, completa.
Por isso, a artista destaca a relevância do recado estampado na parede do quarto, nas ruas da Cidade, nas redes sociais e em exposições – mais do que uma frase de efeito, é a afirmação de uma forma de existir no mundo, individual e coletivamente.“É muito forte, muito gostoso, muito bom usar isso na minha obra, algo que tanto representa a minha identidade nordestina e cearense, quanto representa muito a minha identidade LGBT”, conclui.
Da parede de casa para as ruas da Capital
Nos últimos anos, depois de tantas experimentações – desenhos, zines, instalações, performances e mais – Peaug vê o mote “Acredita em si mesma, bixa!” como uma obra em andamento, que pode ocupar diversas plataformas. Mais recentemente, o manifesto chegou à moda, por meio de uma parceria da artista com a amiga e estilista Arara, que dirige a marca de mesmo nome.
Com foco nas cores primárias e com a mensagem estampada nas costas da camiseta, a camiseta “Acredita” foi lançada neste semestre de forma experimental, aos poucos, com as artistas divulgando a peça nas redes sociais e para alguns amigos apenas. Depois, chegou a algumas feiras da Cidade e, neste mês, será lançada oficialmente, acompanhada por um zine que vira pôster, também produzido pela dupla criativa.
“Uma coisa que eu percebi é que, com o posicionamento da estampa atrás, as pessoas olham, elas têm menos vergonha de olhar”, comenta Peaug, que se diz animada com a repercussão da camiseta. “É isso que tenho visto: as pessoas andando com elas e sendo obras também. Isso é de uma poesia enorme pra mim”, completa.
Além de virar vestuário, a peça também pode ser vista como uma pequena instalação que complementa os primeiros experimentos de Peaug, bem como uma espécie de “força compartilhada”, segundo a artista.
“As pessoas gravam vídeos, tiram fotos e vão espalhando isso – e o mais bonito é que é uma obra que me deu e dá muita força. É uma obra em andamento, e espero que esse caminho não acabe, porque acho que o processo de achar potências em em si é algo para a vida inteira”, conclui.
No momento, a camiseta “Acredita” pode ser encomendada nos perfis do Instagram de Peaug e Arara, por R$ 159.