Unificar, prevenir e penalizar: o que diz a Lei Geral de Enfrentamento à Violência de Gênero
Para explicar mais da proposta, o PontoPoder entrevista a secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, Estela Bezerra.
"A lei é essencial, fundamental e central para mudança de comportamento, porque ela expressa o pacto social que a gente está buscando construir", pontua Estela Bezerra, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, ao falar sobre a construção da Lei Geral de Enfrentamento a Violência de Gênero.
A legislação busca unificar as leis existentes que tratam do tema, tipificar as violências que ainda não estão presentes no arcabouço legal brasileiro, mas também construir ações para prevenir e evitar que os casos de violência contra as mulheres continuem a acontecer — e aumentar a cada ano.
A meta é apresentar o projeto de lei ao Congresso Nacional ainda em 2026. Mas, antes disso, deve existir um processo de elaboração envolvendo diversos setores das sociedade, principalmente as mulheres.
Existe, claro, uma referência: a pioneira Lei Maria da Penha, de 2006, e a construção — com forte participação, como movimentos de mulheres e pesquisadoras do tema — adotado há duas décadas para a elaboração da legislação, que se transformaria em inspiração para diversos países do mundo.
O intuito, no entanto, é ampliar o entendimento de violência de gênero para além das relações familiares e afetivas, como trazido na Lei Maria da Penha. As violências institucionais, trabalhistas, políticas, no mundo digital, obstétricas e reprodutivas estão entre os exemplos daquelas que devem ser abordadas na Lei Geral.
"Ela vai agregar absolutamente todo tipo de violência contra a mulher e articulá-las, porque essas violências não acontecem desarticuladas, elas são sistêmicas", explica Estela Bezerra. Além disso, a nova legislação quer qualificar o debate em torno das tipificações já existentes, com a meta de aprimorar esses conceitos.
E, por fim, a Lei Geral quer "ampliar o conceito de mulheridades". "A inclusão de mulheres negras, de comunidades tradicionais, de população de mulheres LBTs (lésbicas, bissexuais e mulheres trans), de mulheres com deficiência", cita Estela Bezerra. "A diversidade, ou as mulheridades, que estão presentes nesse processo, e o olhar atento a isso é fundamental".
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Confira a entrevista completa:
A Lei Maria da Penha foi pioneira na proteção de mulheres a nível mundial, servindo de inspiração para muitos países. No que a Lei Geral de Enfrentamento à Violência de Gênero pretende avançar em relação à Lei Maria da Penha?
Quando o Brasil resolve, em 2006, cumprir com a Convenção de Belém do Pará, que é de construir uma legislação que tipificasse a violência contra a mulher e avançasse no enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha trata de um tipo de violência que a gente sofre, que é a violência doméstica e familiar, que está no âmbito das relações afetivas e das relações familiares.
Essa é uma lei que era necessária, porque a mulher não era enxergada nesse tipo de violência. No espaço da casa, na moral da época, era: 'em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’.
E a gente passa, a partir de 2006, a dar outra mensagem para a sociedade. Isso já vinha numa luta muito anterior, da década de 1970 e na década de 1980 mais fortemente, quando temos aquele movimento das mulheres, (em que) elas vão à rua para dizer que ‘quem ama, não mata’, por conta daquele julgamento de Doca Street (pelo assassinato da socialite Ângela Diniz), onde ele foi solto por (alegar) crime de honra, tipo, 'essa mulher pediu para ser morta'. Todas aquelas coisas que aconteceram na década de 1980, que resultaram nas delegacias especializadas da mulher, mas que não se tinha uma lei que tipificasse.
Mas essa lei (a Maria da Penha) trata dessa violência doméstica e familiar, onde 80% das vezes o agressor é marido, ex-marido, companheiro, namorado ou ex-namorado, e, no restante, é pai, irmão, sobrinho; está dentro ali daquelas relações de família e de afeto, que é muito difícil de ser confrontada. A Lei Geral vai tratar de outros tipos de violência que são violência de gênero.
Por exemplo, o assédio sexual no espaço de trabalho: 80% das vezes acontece contra uma mulher e não é à toa que acontece. O agressor é um homem e acontece contra uma mulher. Então, existem vários tipos de violências que são de gênero e que não existe uma legislação que unifique essas violências de gênero, que vá agregando e tipificando novas formas de violência que surgem, como a violência digital, o uso de inteligência artificial, o stalkeamento da vida da pessoa, a exposição da intimidade da pessoa.
O Brasil provavelmente vai dar exemplo como fez com a Lei Maria da Penha. (...) A gente hoje tem várias legislações (que tratam da violência contra a mulher). A gente tem a legislação Mariana Férrer (que prevê punição para casos de revitimização de mulheres vítimas de violência sexual durante o processo legal), a gente tem (a lei) Carolina Dieckmann (que tipifica crimes virtuais e delitos informáticos), mas a gente não tem uma Lei Geral que trate integralmente todos os tipos de violência que acontecem contra as mulheres.
Nesse tipo de violência, você não tem uma exposição da intimidade do corpo masculino como forma de humilhar o homem. Mas você tem isso como forma de humilhar e expor uma mulher. Existe um universo de maneiras e de formas de violência contra as mulheres – psicológicas, morais – , que é própria, só acontece pela condição da das mulheres.
A gente tem um universo muito grande de violências e de crimes contra as mulheres que não estão sistematizadas dentro de uma Lei Geral, que dê um escopo e que trate integralmente dessas violências e pense as penalizações e os recursos para evitá-los. Porque o que tem de maravilhoso na Lei Maria da Penha é que ela não só pensa em penalização, ela pensa em todos os recursos para tratar o fenômeno da violência doméstica contra as mulheres. E é o mesmo que a Lei Geral deve fazer, não pensar apenas em tipificar e penalizar, mas como se deve tratar em âmbito mais amplo o fenômeno da violência de gênero.
A senhora citou a unificação das legislações. E muitas das violências contra as mulheres já estão tipificadas em outras legislações, como a violência política contra as mulheres, e outras mudanças no Código Penal. Qual a importância de ter uma Lei Geral, apesar de algumas dessas condutas já estarem tipificadas?
Tem quatro aspectos que eu posso dizer da relevância dela. Primeiro, que ela vai agregar absolutamente todo tipo de violência e articulá-las, porque essas violências não acontecem desarticuladas, elas são sistêmicas. Depois, ela vai qualificar, (porque) tem várias leis que foram criadas sem o devido debate público – do jeito que foi feito na (construção da lei) Maria da Penha.
Um dos aspectos que saiu no MESECVI (Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará), que preza pelo processo de construção da lei, é que o movimento de mulheres, o movimento feminista e setores da sociedade, que estudam e analisam os fenômenos, vão participar. E essa democratização do processo participativo dá mais amplitude e mais profundidade.
Essa amplitude e essa profundidade vão qualificar muitas leis que estão muito rasas. A própria lei de violência política de gênero é uma lei que precisa de aprofundamento, ela carece desse aprofundamento. Então, assim, a gente tem amplitude da participação da sociedade, a gente tem unificação e articulação de violências que se somam, elas começam e vão se correlacionando.
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Essa Lei Geral também preserva a Lei Maria da Penha, porque, em muitos momentos, os legisladores tentaram colocar, na Lei Maria da Penha, algumas legislações ou tratar de temas que não dizem respeito à violência doméstica e familiar. E essa violência doméstica e familiar precisa ser tratada de maneira distinta, porque ela é muito desafiadora por conta das relações que se estabelecem e de como a sociedade trata ou se omite a esse tipo de violência.
A Lei Geral preserva a Lei Maria da Penha, articula todas as infrações e crimes que a gente está reconhecendo, inclusive os novos crimes que surgem, qualifica e aprofunda as leis existentes e amplia a participação da sociedade civil no processo de produção delas.
Nós falamos sobre algumas violências de gênero que já estão previstas na nossa legislação, mas o que a Lei Geral traz de novo? O que ainda não é previsto ou tipificado na nossa legislação e que a Lei Geral vai trazer?
A Lei Geral provavelmente vai atuar muito fortemente em dois âmbitos. No âmbito da violência digital, a gente não tem amparo legal para uma série de coisas. Não está tipificada, não está classificada, não tem punição, não tem reparação, não tem responsabilização. (...) O espaço das plataformas e o universo digital, o metaverso é uma terra sem lei. Então, é muito difícil de punir.
O Felca deu uma contribuição enorme para poder andar com alguma coisa, no Congresso Nacional, em relação à adultização (das crianças), ao uso dos corpos das crianças e à exposição (de menores na internet). Isso não aconteceu ainda com as mulheres. Esse é o debate da hora.
Um outro aspecto que eu acho que vai crescer e que no momento a gente está trabalhando muito bem é a violência vicária, em que se tem o uso das crianças, a manipulação com as crianças (para que seja efetivada a violência contra a mulher). E outro aspecto é a violência obstétrica. A gente tem muita dificuldade de falar de violência obstétrica. Existe uma corporação médica muito grande que impede, inclusive, que o tema seja tratado como tal. Então, violência obstétrica é um lugar que não tem regra nem legislação.
Esses três são ambientes ainda muito vagos e vazios de um debate e de uma legislação que proteja as mulheres.
A proposta de Lei Geral também fala bastante sobre o combate à violência contra mulheres negras, que seguem sendo a maioria das vítimas de violência. Qual a importância desse olhar atento à questão racial dentro dessa discussão sobre a violência contra as mulheres?
Um dos aspectos era esse: eu tinha falado de quatro (aspectos, na resposta à segunda pergunta) e não tinha desenvolvido. Com essa diversidade, essa inclusão, a gente tem a obrigação de ampliar o conceito de mulheridades. As mulheridades que a gente fala (é porque), no Brasil, 28% da população das mulheres é de mulher negra, mas a incidência de violência, a incidência de violência obstétrica, de morte materna, de morte por feminicídio, é duas vezes maior em uma mulher negra do que uma mulher branca.
Então, para cada três mulheres que são executadas por feminicídio, duas são negras e uma é branca. Então, o Brasil continua reproduzindo o machismo e o racismo, que isola completamente as mulheres negras e coloca as mulheres negras nos piores indicadores. A gente precisa racializar as metas de proteção e de políticas públicas.
O Brasil vai ter que reduzir em 75% as mortalidades maternas e, para ser eficiente, ele vai ter que salvar uma mulher branca e duas mulheres negras, porque esse é o percentual. E racializar faz com que a gente consiga ter estratégias mais eficientes para isso. Então, a participação das mulheres negras vai qualificar tanto o conceito como vai qualificar a aplicação das políticas públicas e da própria legislação. Tem uma frase que diz "nada sobre nós sem nós" que é muito pertinente para o que saiu do MESECVI para a construção da Lei Geral.
A inclusão de mulheres negras, de comunidades tradicionais, de população de mulheres LBTs (lésbicas, bissexuais e mulheres trans), de mulheres com deficiência, que estavam lá representadas e debateram e que trazem, por exemplo, (o dado de que) o índice de violência sexual em mulheres com deficiência é imenso, é enorme. É como estupro de vulnerável. As mulheres com deficiência sofrem com a mesma intensidade a violência sexual e isso não é computado adequadamente, isso não é notificado adequadamente.
A diversidade ou as mulheridades que estão presentes nesse processo e o olhar atento a isso é fundamental. E, dentre elas, as mulheres negras, que são o maior contingente populacional do País. Para o Brasil vai ser muito valioso, porque o maior percentual populacional deste país é de mulheres negras.
Temos um cenário político mais conservador, que muitas vezes significa uma articulação mais difícil no Congresso Nacional para alguns temas. Eu queria saber quais são as perspectivas de articulação para aprovação da Lei Geral. O governo pretende aprovar a Lei Geral antes do fim do mandato em 2026?
Olha, eu não sei se há tempo em 2026. A gente vai correr para isso. O Ministério das Mulheres já instituiu aqui um grupo de trabalho para poder dar as mesmas condições que foram construídas no processo da Lei Maria da Penha. Na (Lei) Maria da Penha, eu acho que (o grupo de trabalho) foi constituído em 2004, levou dois anos para poder ser apresentado da maneira em que ela foi produzida. Eu acho que a gente pode diminuir esse tempo.
O Congresso vai estar muito envolvido na reeleição. No meu entendimento, a gente tendo as condições de produzir uma Lei Geral de qualidade, a gente vai colocar ela em debate, porque esse é o momento mais promissor. Mesmo os deputados e deputadas reacionários e retrógrados estão tendo que debater o tema e tendo que se posicionar no tema. (...)
Então, é um Congresso que não é só conservador, ele é reacionário em temas de gênero. Você não pode colocar nenhum projeto de lei que tenha (o termo) gênero. Se for até gênero alimentício, eles se assustam, essa bancada reacionária. Mas nós temos muitos aliados e a sociedade tem se movido muito. Então, nós vamos continuar nessa correlação de forças.
O Ministério das Mulheres vai promover, o Estado brasileiro assumiu esse compromisso. Esse compromisso não é um compromisso de agora. O Estado brasileiro vem ratificando esse compromisso da Convenção de Belém do Pará, do CSW, que é a comissão dos direitos das mulheres (órgão vinculado à Organização das Nações Unidas, a ONU).
A gente tem ratificado muito o compromisso do Brasil de não ser conivente com a violência contra as mulheres. Eu acho que, do ponto de vista da opinião pública, deputados e deputadas reacionários vão ter muita dificuldade de não ajudar a avançar numa legislação que seja adequada ao tratamento dessa chaga social que é a violência contra as mulheres.
Nós falamos aqui de várias legislações – a Lei Maria da Penha, a Lei Mariana Ferrér, a Lei Carolina Dieckmann, a da violência política contra mulheres — que já existem no arcabouço legal do Brasil. Mas apesar dessa existência, os índices da violência contra as mulheres seguem aumentando. A senhora considera que a aprovação de uma nova lei, ainda que geral, é o caminho mais efetivo nesse combate?
Sem marco legal a gente não avança. Ruim é quando você não tem nem marco legal. Marco legal é a regra da nossa sociedade. Nosso Estado é um Estado de Direito. Então, assim, não é que o marco legal não é efetivo. Ele é extremamente necessário, ele é essencial.
Sem ele não se avança em absolutamente nada, porque se você não tem regra e pacto social dentro do sistema de direito e dentro do sistema de Justiça, como é que você trata o agressor? Como é que você trata a vítima agredida? Então, assim, é que a lei não é suficiente, porque a lei é uma maneira de expressar o valor emergente ou o valor em disputa majoritária na sociedade.
Quando a gente cria uma lei, a gente está dizendo: "Ó, a gente não é de acordo com a violência contra as mulheres". Mas, para mudar a prática, para mudar o ambiente da vida real, da vida concreta, é preciso que essa lei seja no tamanho da Lei Maria da Penha.
Desde que a Lei Maria da Penha existe, e ela vai fazer 20 anos em 2026, desde que a lei que tipificou o feminicídio existe, esse tema emergiu na sociedade. Antes, ele era inteiramente invisibilizado. Então, a Lei Geral tem um compromisso muito importante.
A gente não pode fazer de conta que "ah não, vamos fazer outras coisas ou outras coisas são mais efetivas". A lei é necessária, ela não tem como fugir disso. Não é à toa que se tem convenções internacionais, um esforço de organismos internacionais... Esse fenômeno da violência contra a mulher não acontece só no Brasil.
Só que a lei não é suficiente. A gente precisa ter, como na Lei Maria da Penha, ações que são preventivas, que são do âmbito da educação, do âmbito da mudança de mentalidade.
Por exemplo, para prevenção a gente tem que mudar valores e mudar valores tem a ver com o imaginário popular, que coloca a mulher como subalterna, tem a ver com um jornalismo, que às vezes trata a violência contra a mulher colocando a vítima mais exposta e a gente não sabe nem quem é o agressor, (...) o agressor fica protegido e omisso, inclusive na narrativa dos meios de comunicação.
Da mesma maneira, tem instituições religiosas que, muitas vezes... Eu acompanhei um caso de uma mulher que corria risco de morte e o pastor que ela seguia orientava ela a voltar para casa, porque a responsabilidade de manutenção da família e do casamento era dela.
A ideia de que a mulher é menos na sociedade, que sustenta a ideia de um corpo que pode ser violado e executado é uma desconstrução muito complexa de ser feita, mas possível de ser feita.
Em vários ambientes. No ambiente escolar é fundamental tratar desse assunto, no ambiente dos meios de comunicação, como está se vendo agora que há um incômodo muito grande. A coisa importante que está acontecendo nesse cenário é o posicionamento do presidente Lula, que é um homem e puxou para ele o debate. De os homens debaterem a violência contra a mulher e se sentirem incomodados e corresponsáveis por isso.
Tem coisa que você não muda só com a lei, mas não pode fazer de conta que a lei não é importante. A lei é essencial, fundamental e central para mudança de comportamento, porque ela expressa a sociedade de direito e o pacto social que a gente está buscando construir.