Essa entrevista com Maria da Penha começa diferente: parte do diálogo sobre a história das mulheres que nos antecedem, entrevistadoras e entrevistada. Hoje, 18 anos desde a sanção da lei que leva o nome da cearense, Maria da Penha é uma ponte que conecta a um ideal de sociedade segura e de mais respeito às mulheres. Celebrar a existência da Lei Maria da Penha não é possível sem pensar no direito que faltou a quem veio antes e no que mais precisamos fazer para que a lei opere com toda potência para nós e para as que virão. 

A entrevista foi concedida no final do mês de julho, na sede do Instituto Maria da Penha, em Fortaleza. Neste 7 de agosto, a Lei Maria da Penha completa 18 anos de existência, com uma série de desafios a serem driblados, como a falta de assistência em municípios pequenos, a necessidade de fortalecer o processo educativo sobre o respeito às mulheres e a carência de ambientes de memória, que nos lembrem os horrores superados para que eles não retornem. 

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Ao pensar sobre o futuro, Maria puxa o fio do passado, da dores de dois casamentos, da pressão social, da luta na Justiça, e nos lembra que o ciclo que aprisiona e violenta mulheres ainda é tão real quanto o que viveu. "A Lei veio para dar saída a mulheres que vivem o que eu vivi", ressalta Penha. Após mais de 40 anos desde a violência que sofreu e baseia toda a luta de uma vida, Maria da Penha escolhe também falar da potência feminina que a antecede. E nos conta, antes de responder perguntas sobre a maioridade da lei e o que ainda precisa ser feito, a história da avó Leopoldina Fernandes Vieira, cuja memória de família registra como a primeira parteira diplomada da Região do Cariri, no sul do Ceará. 

Como Maria da Penha, a avó foi pioneira em abrir caminhos e ajudar mulheres. É assim que começa a nossa conversa:

“A minha avó era parteira, era filha de agricultores, de Barbalha. A mãe dela era conhecida na região pelos doces que fazia e, depois, as filhas colocaram um local em que elas bordavam, tinham costureiras e faziam trabalhos bordados e vendiam esses bordados para região. Ela se casou — um casamento muito interessante, porque o marido dela apaixonou-se por uma irmã dela que era mais nova e foi pedir a mão dessa irmã dela em casamento. Os meus bisavós, pela tradição, diziam que, se ele quisesse se casar, seria com a mais velha, porque era praxe a primeira filha casar-se primeiro. Então houve o casamento da minha avó com o meu avô, porque ela era a primeira filha dos meus bisavós.  

Maria da Penha, violência contra a mulher
Legenda: Maria da Penha criou o Instituto Maria da Penha em 2009 para fortalecer sua luta em defesa dos direitos das mulheres
Foto: Ismael Soares

O meu avô era de outra cidade, Missão Velha, e a minha avó, de Barbalha. O casamento não deu certo porque havia interferência muito grande da sogra da minha vó na vida dela. Ele ouvia mais a mãe do que a mulher. E a minha avó sempre dizia — depois (de separada), ela dizia, né —, que ‘quem aguenta espora é cavalo’, porque ela tinha que ter a liberdade dela também e então ela resolveu se separar. Tu imagina isso na época de 1900 e começo, no Interior, no Cariri. Houve uma resistência, mas ela disse: eu vou me separar, e separou-se. Como ela tinha esse trabalho, uma renda razoável - vamos supor –, meu avô não tinha uma profissão, então ficou determinado — o que era difícil naquele tempo, que a minha avó ficaria responsável pela educação da minha mãe.  

A minha avó se responsabilizou pela educação da minha mãe e resolveu vir para Fortaleza, porque a outra irmã dela casou com um engenheiro que estava fazendo a estrada de ferro do Cariri, casou, veio para Fortaleza, e esse marido da minha tia, irmã da minha avó, tinha irmãos que eram médicos que trabalhavam em Fortaleza, então surgiu a oportunidade de fazer um curso para ter uma independência melhor, e ela foi fazer o curso de parteira. Ela foi a primeira parteira diplomada da região do Cariri, voltou para a região do Cariri, e ela começou a trabalhar em todos os municípios da redondeza, ela era conhecida, a minha avó se chamava Leopoldina Fernandes Vieira, mas era conhecida como Senhora Fernandes.  

A minha irmã é pesquisadora. Ela resgatou a árvore genealógica da nossa família e tem os dados bem precisos sobre isso. Minha avó se tornou conhecida e foi quem trouxe ao mundo o Adauto e o Humberto Bezerra (respectivamente, ex-governador e ex-vice-governador do Ceará), nasceram pelas mãos dela. Aquelas famílias mandavam buscá-la de cavalo e aquela pessoa responsável, ela vinha de cavalo para aquela casa próxima, ou de transporte ou de trem e passava uma semana na casa da parturiente, já próximo de ela ter neném, e ficava até ela ter neném. Ela dava toda assistência, ela gostava do que fazia, e ela era profissional, porque ela fez o curso. Se tornou uma pessoa muito conhecida, muito querida. 

JÉSSICA WELMA - Essa história da sua vó lhe inspira? Entender que ela também fez história, no tempo dela, nas condições dela (lhe inspira)? Você já parou para pensar na história dela em relação à sua, como vocês são pioneiras? 

Não antes. Depois do meu caso, foi que nós começamos a fazer ligações, porque, quando a minha mãe saiu do internato, ela foi terminar o curso em uma escola de lá (da Região do Cariri), e depois ela veio para cá, e fez o curso da escola normal, e minha avó veio para cá, para Fortaleza. Minha mãe se tornou professora. E aqui também ela (a avó) fez vida como parteira. Orientava as pessoas que chegavam. Conheciam ela de lá (do Cariri) e mandavam pessoas de lá que moravam aqui ir procurar a minha avó. Ela tinha um quartinho na casa dela que orientava mulheres, dizia o que ela tinha que fazer, o que poderia estar acontecendo com ela, dava aquela orientação devido à confiança que tinham nela, e chegava a fazer alguns partos.

Minha avó teve essa história que, depois de muitos anos, a gente resgatou depois de uma pesquisa que a minha irmã fez. Ela puxou muito da história da minha família. Minha avó se tornou independente. A minha mãe se tornou órfã de pai quando tinha 10 anos de idade, mais ou menos, ele morreu do coração, e a minha avó tocou o barco sempre só, como mulher, como religiosa. A minha avó, se fosse nos dias de hoje, teria casado novamente, porque ela era uma mulher bonita, mas ela tinha que honrar a família. Ela se apegou muito à religião para não pecar – a interpretação que tenho hoje é essa.  

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Legenda: Em 1998, após dois julgamentos no Brasil sem cumprimento de sentença para o agressor, o caso de Maria da Penha foi denunciado para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA)
Foto: Ismael Soares

JÉSSICA WELMA - E viveu lutando pelas mulheres, que é a linha que a senhora segue hoje na vida. 

Ela se dedicou à profissão e conseguiu superar o que toda mulher deseja, encontrar um amor. Uma vez eu perguntei a ela: “Vovó, a senhora nunca se apaixonou por outra pessoa, não?”. (Ela respondia:) “Minha filha, não podia, senão eu ia ficar mal falada”. “Vovó, nem quando a senhora viajou para visitar sua irmã no Rio de Janeiro?”. Ela tinha uma irmã no Rio de Janeiro. “A única coisa que aconteceu comigo foi que o capitão do navio que eu fui era muito bonito e a gente puxou uma conversa boa, mas depois que cheguei no Rio a gente não se falou mais”. Imagina quantos amores se foram por causa da moral. 

JÉSSICA WELMA - Hoje a senhora é conhecida por uma trajetória muito ligada à lei, à defesa das mulheres, mas, antes disso, nós temos a Maria da Penha que era estudante, farmacêutica, médica, teve esses planos que deram lugar a outra Maria da Penha. Na percepção da senhora, há duas “Marias da Penha” na sua história? 

Meu pai era dentista, veio do Rio Grande do Norte, fazer mudança de faculdade aqui. Era também de uma família de agricultores, mas se formou e se fez aqui. Minha mãe era professora, tinha se formado. Quando eu nasci, a minha mãe decidiu não trabalhar mais porque queria se dedicar só aos filhos. (...) Eu tinha muita vontade de fazer uma profissão ligada à área da saúde, mas eu não queria ter relação com paciente. Não tinha coragem de fazer uma cirurgia, de tirar um dente. E a minha avó disse: ‘Minha filha, vá ser farmacêutica, você (fica) atrás de um balcão, dentro de um laboratório, você pode ajudar as pessoas’. Foi ela que me deu a ideia.

A partir daí, eu fiz vestibular para a faculdade de Farmácia, que ainda era ligada à Odontologia. Sou da primeira turma da faculdade que foi desmembrada da faculdade de Odontologia. Fiz e não me arrependi. Comecei a trabalhar, fazer estágio, em bromatologia, que é a análise de alimentos. Depois me deu vontade de entrar na área de análises clínicas, surgiu um concurso para o IPEC (Instituto de Previdência do Estado do Ceará), passei no concurso e virei farmacêutica do IPEC, que hoje é o Issec (Instituto de Saúde dos Servidores do Estado do Ceará). Minha trajetória foi na área da Farmácia. 

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Legenda: Maria da Penha concedeu entrevista às jornalistas Jéssica Welma e Lorena Cardoso
Foto: Ismael Soares

Antes dos 19 anos, conheci um rapaz, me apaixonei por ele, ele por mim e a gente resolveu casar. Meu pai e minha mãe sempre diziam: ‘Quando você for escolher um rapaz não escolha um homem que goste de beber, nem escolha um homem que não trate bem a sua mãe, porque são dois defeitos que não pode se ter’. Esse meu primeiro marido não era um mau filho e não bebia. Nós não tínhamos, as mulheres, a liberdade que temos hoje, de sair com namorado, era tudo muito vigiado. A gente tinha que casar, e meus pais disseram para ele: ‘Vocês estão querendo casar, mas você vai ter que prometer que ela vai terminar o curso dela’. E ele prometeu.

Depois de dois anos de casada, eu já não estava tão bem no relacionamento porque eu sofria muita violência psicológica. Ele era super ciumento e super namorador. Às vezes, eu precisava me prolongar na faculdade, e ele começou (a dizer): ‘Por que você demorou tanto, por que precisava estar na faculdade até uma horas dessas?’. Tudo no mundo ele questionava, e aquilo me incomodava. Mas o que mais me incomodava era que, no final de semana, ele saía dizendo que ia trabalhar, mas não ia. Ele aproveitava que o trabalho dele era uma profissão que exigia que estivesse fora, ele chegava com a roupa suja de batom, com a roupa perfumada, e eu passava a noite sem dormir, angustiada, porque eu sabia que ele não estava trabalhando. A dor da traição é muito grande. Não aguentei mais aquela vida.  

Um dia cheguei na casa da minha mãe e falei: ‘Não volto mais para casa’. Lá vem os homens da família: ‘Minha filha, isso é coisa de homem mesmo, se preocupe com isso não. Ele bate em você? Não. Isso é coisa de homem, deixe isso pra lá. Você quer se separar pra ser uma mulher mal falada?’. Como eu era apaixonada, voltei. Isso aconteceu umas três vezes. Eu saía de casa, ele chorava, pedia para voltar, não ia fazer mais aquilo, que eu estava inventando, que ele não me traía. Aquelas desculpas que todo mundo conhece.  
Maria da Penha
Ativista

Tínhamos comprado um apartamento, e ele estava indo dormir lá. Falei para a empregada: ‘Se ele chegar aqui com alguma mulher, me telefona, que quero pegar no flagra’. Com uma semana, a moça me liga. Chamei uma vizinha, ela disse que só ia se minha mãe fosse. Fomos nós três. Cheguei lá, arrodeei o apartamento, bati na janela do quarto: ‘Eu sei que você está aí’. Ele calado. Bati umas três vezes. Minha mãe falou: ‘Ele já sabe que você está aqui, não adianta você ficar aqui’. Foi como eu me separei. Ele não tinha mais como dizer que não estava me traindo. E me vi livre. Como era que eu podia provar que ele estava me traindo? Só com o flagrante. 

JÉSSICA WELMA - Percebendo esse relato que a senhora faz, é como se não tivesse existido uma Maria da Penha que não tivesse vivido, desde muito nova, uma situação em que tivesse que lutar por si. Existe esse olhar para o que era seu direito, como você deveria ser tratada dentro da sua casa, da sua família, desde muito nova. 

É, mas não com a consciência que eu tenho hoje. É como a minha avó dizia: ‘Quem aguenta espora é cavalo’. Eu não aceitava aquela situação. Sofri demais, porque eu era muito apaixonada por ele. Foi um momento muito difícil, mas eu não queria mais voltar.  

Depois da pós-graduação, surgiu a oportunidade de ir para São Paulo. Já tinha os amigos de Fortaleza. Formamos um grupo muito bom e, nesse grupo, alguns estudantes de outros países também faziam parte. A gente fez amizade e estava esse dito cujo lá dentro (Maria se refere ao segundo esposo, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, autor da violência que a deixou paraplégica). Era uma pessoa que cativava a todos, era boa de conversa, muito prestativo. A gente se tornou amigo e começamos a namorar. Me aliviei porque ele não era ciumento. Eu só não conhecia a família dele, e ainda não conheço. Só um irmão que esteve aqui um tempo, passou uma temporada comigo para fazer tratamento médico. Casamos. Eu terminei meu mestrado no ano em que minha filha nasceu, em 73, e ele terminou o dele em 76. Eu terminei antes e vim para Fortaleza com a minha filha, ainda bebê. Com o nascimento dela, ele deu entrada na sua naturalização (brasileira). Chegando aqui, tudo bem. Tinha comprado um terreno, resolvemos fazer uma construção desse terreno, da nossa casa. A naturalidade dele foi concedida, fizemos empréstimo para fazer a casa. E nós nos mudamos, mas ele começou a modificar o comportamento depois que a naturalização dele saiu.  

Maria da Penha
Legenda: Após muitos debates com o Legislativo, o Executivo e a sociedade, em 7 de agosto de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei n° 11.340, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha
Foto: Ismael Soares

Ele conseguiu o primeiro emprego e, a partir desse emprego, ele conseguiu se infiltrar em outros (empregos). (...) No momento em que ele estava naturalizado, tinha um emprego, a casa pronta, a personalidade dele aflorou. Era uma pessoa intolerante, exigente, maltratava as crianças, batia nas crianças quando elas faziam coisas próprias da idade, batia na boca da minha menina que gostava de dormir chupando o dedo, amarrava as mãozinhas dela para não chupar o dedo à noite. Ele criava situações que me magoavam, e era um sofrimento psicológico muito grande. Eu ficava pisando em ovos, com medo de ele encontrar alguma coisa fora do lugar, alguma coisa que ele não gostasse.  

Achava horrível quando chegava o fim de semana, porque era sábado e domingo juntos. Durante a semana, eu dava um jeito de sair antes. Quando ele chegava para almoçar, eu já estava terminando de almoçar e já levava as crianças para a escola e ia para o trabalho. Ele sempre tinha que ter uma sobremesa especial, quando foi um dia, não tinha nada. Passei no supermercado, comprei um bolo e coloquei dentro da fôrma de fazer bolo. Ele jogou o bolo e disse: ‘Esse bolo não foi você que fez, não’. 

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Jéssica Welma: Nós conversamos com algumas mulheres que já sofreram violência doméstica, das mais diversas, e que já recorreram a lei. Vou puxar uma delas, porque, ouvindo o relato da senhora, vemos que isso ainda se repete. Não vamos identificá-las. Essa se chama Maria também, e ela pergunta: “como ajudar as mulheres que estão sofrendo violência doméstica e não aceitam denunciar o agressor?”   

Olha, hoje (há saídas) sim, mas, no tempo em que eu vivi essa violência, eu não tinha perspectiva de saída. Cheguei, inclusive, a conversar com um colega dele de trabalho, que eu tinha amizade com ele a mulher dele e tudo mais, e eu falei perto do meu quase assassinato: “Fulano, por favor, você que pertence ao movimento de casais convida o Marco para o Encontro de Casais com Cristo. Eu estou precisando que ele vá lá”. E ele foi, ele chegou comigo, tudo mais, fez um curso. Se mostrou uma pessoa acessível dentro do curso, mas voltou do mesmo jeito.  

Diante disso, falei para ele: “Olha, eu não estou mais sendo feliz com você, e você também não é mais feliz comigo, porque, se você fosse, não me tratava do jeito que me trata. Então vamos nos separar que é melhor. Você vai arranjar uma pessoa que te faça feliz e me deixa aqui, vivendo sozinha com minhas filhas. Mas ele dizia: “Nunca vou me separar de você, tira essa ideia da cabeça”. 

O que é que eu podia fazer? O que é que a mulher dessa situação faz? Não tem saída. Quer dizer, a Lei veio para dar saída à mulheres que vivem o que eu vivi. E eu não tinha ainda consciência de que isso era violência doméstica, porque eu não convivia num lar violento. 
Maria da Penha

As amizades da minha família não eram violentas, nós tínhamos na rua casos de mulheres que apanhavam de marido, mas o que era que os vizinhos diziam? “Não sei por que isso acontece, esse rapaz é tão bom, mas, fim de semana, quando ele bebe, não sabe tratar a mulher”. 

Quando é eu vivi essa situação, eu não tinha mais o que fazer, eu tinha medo dele fazer alguma coisa comigo se eu quisesse me separar dele. Eu tinha que aguentar e rezar para que ele arranjasse uma outra pessoa.  

Falta o compromisso do poder público, por que onde é que uma mulher em um pequeno município vai procurar ajuda se não existe nada para ela se orientar? Se ela vem de uma situação onde isso é costumaz na família, é costumaz na sua comunidade”.  
Maria da Penha

A resposta para a sua pergunta é: procure se orientar sobre os seus direitos, procure um centro de referência da mulher, procure ajuda para saber onde ser protegida. Que a lei tem soluções para essas situações. Agora, falta o compromisso do poder público, por que onde é que uma mulher em um pequeno município vai procurar ajuda se não existe nada para ela se orientar? Se ela vem de uma situação onde isso é costumaz na família, é costumaz na sua comunidade. Todas as mulheres da sua família passam por violência doméstica e dizem: “É assim mesmo, tenha paciência, reze”.

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Legenda: Entrevista com Maria da Penha aconteceu na sede do Instituto Maria da Penha, em Fortaleza
Foto: Ismael Soares

Lorena Cardoso: A gente resgatou uma entrevista de 2009 onde a senhora fala que tinha o sonho de ver mais Delegacias da Mulher espalhadas pelo País. Agora, nesse Marco de 18 anos da Lei, como é como é que a senhora vê? Quais são seus sonhos e suas frustrações? 

Tem pesquisas que precisam ser feitas, só assim a gente vai ter a dimensão do que ainda falta. E falta muito. Por exemplo, sempre eu falo, nas minhas palestras, que todo município, por menor que seja, tem que ter um centro de referência da mulher dentro de uma unidade de saúde. Não quero que o gestor coloque uma placa numa casa e diga: “Aqui está o centro de referência da mulher. Denuncie”. Não é isso. Porque, se a mulher subir o batente daquele local, quando ela chegar em casa, leva uma surra. Numa cidade pequena, todo mundo sabe da vida de todo mundo e ela não vai ter coragem de fazer isso.

Então, a unidade de saúde é o melhor local para que exista o Centro de Referência da Mulher, porque, discretamente, essa mulher pode adentrar, se orientar sobre os seus direitos e, caso esteja correndo risco de morte, seja encaminhada para uma macrorregião onde exista a casa-abrigo, a Delegacia da Mulher e as demais políticas públicas para que ela possa sair daquela situação e possa dar entrada e iniciar o seu processo de punição do agressor, de ter uma medida protetiva. Se isso não acontecer, vamos continuar vendo mulheres (morrendo) e, quando o IBGE for fazer uma nova estatística, nós que somos a maioria da população brasileira, não seremos mais, porque as mulheres estão morrendo. Não por morte natural, mas porque estão sendo assassinadas.  

Maria da Penha, direito das mulheres
Legenda: Em junho de 2024, Maria da Penha foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Governo do Ceará. O pedido de proteção especial foi feito pessoalmente pela ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ao governador Elmano de Freitas
Foto: Ismael Soares

Lorena Cardoso: Já são 15 anos de Instituto Maria da Penha, muita coisa foi conquistada, mas quais são os planos e projetos para o futuro?  

Os projetos continuam os mesmo para o qual ele foi criado: é para esclarecer sobre a Lei Maria da Penha, informar e capacitar as empresas a tomarem conhecimento e tomarem providências sobre as mulheres que trabalham na sua empresa que sofrem violência. Essas mulheres vão produzir menos e vão dar prejuízo nessa empresa. Muitas empresas têm conseguido transferir essa vítima para um outro estado. Mas as que não têm essa possibilidade, que consiga (apoio) com a psicóloga da empresa, que oriente, encaminhe, vá com essa pessoa ao centro de referência para apoiar essa vítima a se conscientizar que ela tem direito e que ela pode sair daquela situação. Isso é um dos pontos de importância.

Outro, é investir na educação em todos os níveis, principalmente a partir do Ensino Fundamental, onde é importante que os professores e o serviço de psicologia da escola identifiquem aquelas crianças que apresentam comportamentos agressivos.
Maria da Penha

Essas crianças podem estar sendo vítima ou presenciando violência na sua casa. Talvez, a mãe seja vítima de algum tipo de violência, ou até mesmo a própria criança. Ou que, na comunidade daquela criança, exista o machismo, o racismo, e aquelas crianças estão aprendendo a serem machistas, a serem racistas, homofóbicas. Isso aí (a educação) tem que começar na sala de aula, no ensino fundamental. Identificar, desconstruir essa cultura.  

Jéssica Welma: A senhora falou sobre a questão de que seria importante nos pequenos municípios ter o suporte das unidades básicas de saúde que levasse para as macrorregiões. Isso responde outra das perguntas que trouxemos que foi da Raquel. Ela perguntava se não seria mais humano se todas as delegacias atendessem mulheres independentemente do município? Essa saída que a senhora dá é a que seria a mais adequada?  

É, por que, nós não temos um conselho tutelar em todos os municípios? Por que que não pode ter um centro de referência da mulher dentro da unidade de saúde? O que é que falta? É uma sala, não precisa de uma grande estrutura. Só juntar os profissionais. Aquela mulher discretamente chega lá (na recepção da unidade), (e diz:) “Eu queria ser atendida porque eu sofri violência doméstica, quem aqui pode me atender?”. Quem é que vai saber que aquela pessoa foi atrás do Centro de Referência da Mulher? Ela foi ali para cuidar da saúde dela. 

Maria da Penha, programa de proteção
Legenda: Em 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio. Primeiro, ela levou um tiro nas costas enquanto dormia, cujas lesões a deixaram paraplégica. Quatro meses depois, quando voltou para casa do hospital, foi mantida em cárcere privado e o agressor tentou eletrocutá-la
Foto: Ismael Soares

Jéssica Welma: São muitos anos que a senhora vem dedicando a essa luta, nessa discussão, com entrevistas, palestras, livro, com uma contribuição muito variada. E, ao mesmo tempo, como a senhora mesmo já ressaltou, vendo que as mulheres ainda têm sido mortas.  É um cenário que nos dói, enquanto mulheres, e a gente imagina isso também para a senhora. Como consegue manter uma saúde mental em todo esse contexto? Em algum momento, pensou em dizer: “não tem mais como seguir nessa luta”? Onde a senhora busca energia para seguir?  

Eu busco essa energia quando eu ligo a televisão e vejo no noticiário, aqui, no Ceará, que todo dia morre uma mulher vítima da violência doméstica. No meu Estado, não tem nos seus municípios políticas públicas necessárias. Aqui, eu tenho mais conhecimento, mas, nos outros estados também, com certeza, o noticiário da manhã traz essas estatísticas. Isso é muito grave. Onde estão os responsáveis pela criação dessas políticas públicas, pelo menos do Centro de Referência da Mulher dentro da unidade de saúde?Não estou querendo uma delegacia em cada pequeno município. Estou querendo o centro de referência na unidade de saúde que já existe. É uma sala que serve para orientar a vítima, mostrar o caminho para essa mulher preservar a vida. Sem contar que cada vítima da violência doméstica deixa, em média, três crianças na orfandade. Tem mulheres que deixam sete filhos. Sete filhos não quer dizer que foram frutos de amor.  

Como fica o futuro dessas crianças? O acompanhamento dessas crianças pelo estado onde está? Se eu tivesse morrido, eu teria deixado três filhas na orfandade. Se a minha família tivesse ficado com minhas filhas, elas teriam um  acompanhamento psicológico.
Maria da Penha

Mas, agora, uma criança que perde a mãe porque o pai matou, se ela for acolhida pela família da mãe, o que é que é essa família, que não tem recursos para fazer o tratamento psicológico, pode fazer com essa criança? Na maioria das vezes, ela pode dizer: “você perdeu sua mãe, porque seu pai não prestava”. Mas, e se for a família de pai que adote essa criança? Vai ouvir que seu pai está preso porque matou sua mãe, porque sua mãe não prestava. O que é que essa criança aprende do relacionamento que foi do seu pai e da sua mãe? (...) Pode até entender que, se a mulher "não presta", deve ser morta, não é?.

Lorena Cardoso: Como essas histórias são contadas pode confundir. A gente sabe que a senhora vem enfrentando uma rede de fake news sobre o seu caso. Como é para a senhora ver sua história sendo contada de outra forma? 

É revoltante, é revoltante. Em parte, não houve rebate público sobre essas histórias, sobre essas fake news. O meu caso foi julgado duas vezes pelo Tribunal do Ceará e por uma instância internacional. Quer dizer, não houve nem uma contradição, nada que fizesse com que essas fake news parassem de circular, fica como se houvesse uma falha no sistema de Justiça. Porque ele (caso) foi ao sistema de Justiça internacional. O meu agressor foi condenado no primeiro julgamento por 6 votos contra 1. Mas tinha um grupo de advogados de defesa, que eu não sei de onde é que este homem arrumou o dinheiro, porque a nossa despesa de casa era feita do meu salário e do dele, e não tinha dinheiro sobrando. Não sei onde foi que ele arrumou dinheiro, quem financiou, para ele contratar os melhores advogados, acostumados a cuidar de casos polêmicos, como de tráfico de droga.(...)  

A minha indignação foi tão grande quando os advogados dele solicitaram a anulação do primeiro julgamento, que eu resolvi escrever o livro “Sobrevivi posso contar”. Foi uma maneira que eu encontrei de desabafar e de provar que que ele foi o culpado.  

Livro Sobrevivi Posso Contar, Maria da Penha
Legenda: Livro "Sobrevivi, posso contar", escrito por Maria da Penha e publicado em 1994
Foto: Ismael Soares

Ele foi para o segundo julgamento, novamente condenado,e novamente os advogados pedem, por outro motivo aí, que seja anulado o segundo julgamento.

Então, eu considero o “Sobrevivi posso contar” a carta de alforria da mulheres brasileiras. Foi através da primeira edição, que começou a circular nas organizações de mulheres, e o CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e o CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) denunciaram o caso na OEA (Organização dos Estados Americanos). Se não, hoje eu já teria morrido de desgosto, de não ter sido feito nada. O que me alimenta é que eu não estou só. Isso é que me estimula: que eu preciso estar junto com as mulheres, continuando na minha luta.  

Jéssica Welma: Em junho foi anunciado que a senhora foi incluída no programa de proteção aos defensores de Direitos Humanos, após uma série de ataques nas redes sociais e ameaças desses grupos que promovem ódio às mulheres. A gente está falando de ser inclusa num programa de proteção a essa altura. São tantos anos nessa luta e de repente ainda é preciso recorrer a um mecanismo de proteção do stado porque parece ter faltado um sistema anterior. Mudou algo para a senhora desde a inclusão no Programa de Proteção? 

Muito, muito. A primeira fake news aconteceu em 2021, no começo do governo do Bolsonaro. Um deputado bolsonarista lá em Santa Catarina tinha levado o meu agressor para a Assembleia (Legislativa) de Santa Catarina, com o intuito de que meu agressor contasse a verdadeira história do caso. Aí começou o sistema da fake news. Mas chegou a um ponto que eu não tinha mais condição, eu deixei de sair. Até nos consultórios, eu tinha medo de ir. Porque eu tive vários episódios em que me disseram: "é bom você não sair mais de casa".  

Eu estava no supermercado, logo no começo em que a lei foi sancionada, e chegou uma senhora perto de mim e disse: “Olha discretamente, os dois homens ali perto daquela banca estavam dizendo que 'se fulano soubesse que a Maria da Penha estava aqui, ele vinha aqui para dar uma surra nela’”.  

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Legenda: Maria da Penha é símbolo de luta e dá nome à principal lei brasileira que coíbe atos de violência do
Foto: Ismael Soares

Outra vez, estava no banco, há uns três anos, para resolver um negócio do Instituto. Estava comigo uma pessoa do Instituto, que foi buscar o táxi para a gente voltar. Fiquei dentro do banco, num espaço reservado, porque realmente as pessoas sempre me reconhecem, fico no espaço assim mais reservado para não chamar atenção. Aí entraram dois homens, chegaram perto de mim e disseram: “Você é a Maria da Penha? Muito prazer, eu sou um ex-agressor". Eu disse assim: “Parabéns, você é um ex-agressor".   

Então, eu estava sem ir para médico, sem proteção. Há uns 15 dias atrás, eu tive uma uma surpresa tão agradável. Eu tinha ido para minha geriatra e, quando eu saí da sala, um menino de uns 10 anos disse: “É ela, mãe, é a Maria da Penha”. Ele estava com o pai e a mãe e disse (em tom entusiasmado) que teve uma aula e me reconheceu. Pediram pra tirar foto, uma alegria. 

Quer dizer, quem me conhece para fazer o bem, também pode reconhecer para fazer mal. E como tem tanta mulher morta, acho que tem muito homem que possa me fazer o mal.  
Maria da Penha

Eu me senti muito segura, eu estou muito feliz com essa providência que foi tomada pela ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, e pelo governador do Estado (Elmano de Freitas). Porque realmente as fake news estavam explodindo. Eu não costumo ver porque não me faz bem. E não vale a pena estar ouvindo mentira.   

Jéssica Welma: Vou trazer mais uma pergunta que nos foi enviada também por uma uma das mulheres, ela fala o seguinte: “Quando eu fui à Delegacia, logo quando a lei foi criada, senti tanta firmeza, parecia que ia diminuir muitas agressões, mas o número só tem aumentado. Apoio muito trabalho dela (Maria da Penha), mas penso o que a gente precisa mais, o que está faltando?”. 

É compromisso público mesmo, em todas as áreas. Na saúde, na educação, nas políticas públicas sociais precisa de compromisso. (...) Precisamos do poder público para criar pelo menos um centro de referência dentro de todas as unidades de saúde. 

Lorena Cardoso: Foi anunciado um projeto de transformar a casa onde a senhora sofreu a violência em um memorial. Que planos são esses, o que vocês imaginam para esse espaço?  

É um sonho, um projeto para onde a gente pudesse apresentar a história das mulheres no mundo, a história das mulheres do Brasil, os avanços das conquistas das mulheres e a história da criação da Lei Maria da Penha. E esses projetos tenho certeza que vão ser concretizados. Enquanto isso, fiz um (memorial) no espaço da minha casa. Coloquei algumas medalhas, troféus, tenho muito material relacionado ao movimento de mulheres, e convidei as mulheres no meu condomínio para a inauguração dele. E esse pequeno Museu foi batizado com o nome Espaço Maria Lery, que é o nome da minha mãe.