O Ceará é o terceiro estado mais violento do Brasil, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025. Essa violência é culturalmente expressa através de crimes cruéis como os feminicídios que, neste ano, tiraram a vida de cerca de 44 mulheres no Ceará - até o começo de dezembro - , segundo dados da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp). Nos últimos 7 anos, foram 278 vítimas de feminicídio.

Em 2025, mulheres foram esfaqueadas, carbonizadas e decapitadas em Fortaleza e em cidades do interior do Ceará por seus namorados, maridos, filhos e por desconhecidos. As vítimas tinham idades variadas e foram mortas por terminarem relacionamentos, negarem ter relações sexuais com os parceiros ou resistirem a assédios e importunações.

278
mulheres foram vítimas de feminicídio no Ceará em sete anos

Os dados desse ano são os piores desde 2018, quando a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) iniciou a contagem.

Em nota, a SSPDS informou que: "Entre janeiro e novembro de 2025, foram realizadas 68 prisões por crimes de feminicídio, incluindo prisões em flagrante e cumprimento de mandados judiciais. No mesmo período de 2024, foram registradas 48, o que representa um aumento de 41,7%". 

(Leia a nota na íntegra abaixo). 

Alguns casos são emblemáticos e de natureza perversa como o da enfermeira cearense Clarissa Costa, morta com 34 facadas dentro da própria casa; da estudante Catarina Kasten, estuprada e morta em uma trilha de Florianópolis; e da jovem de 18 anos Lorena Ferreira, decapitada no município de Trairi (CE).

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Fatores sociais, raciais, culturais, emocionais e jurídicos explicam o aumento dos feminicídios - que são motivados por razão de gênero, envolvendo violência doméstica, menosprezo ou discriminação pelo sexo - . O crime só passou a ser tipificado em 2015, o que fez com que ele fosse diferenciado do homicídio.

Por que as mulheres são mortas de forma tão cruel no Ceará?

O ódio sobre o corpo das mulheres é expresso através de múltiplas facadas, da violência sexual como tortura e da queima de corpos por exemplo. Isso faz parte de uma herança da cultura misógina do país -  termo que se refere ao desprezo ou preconceito contra mulheres e meninas -, conforme especialistas ouvidas pelo Diário do Nordeste.

"Então, para eles, não basta só tirar a vida, mas é mostrar cruelmente como suas mulheres merecem sofrer por se negarem, por muitas vezes se posicionarem", pontuou a socióloga e pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança, Fernanda Naiara.

72%
das vítimas de feminicídio no Brasil morreram por arma branca ou arma de fogo, em 2024

O uso de facas e objetos perfurocortantes são comuns em assassinatos de mulheres. No Ceará, mais da metade das vítimas de feminicídio em 2025, foram mortas a partir do uso de arma branca. 

O fato pode ser vinculado à lógica da crueldade e premeditação dos crimes, pois na maioria das vezes as vítimas levam diversos golpes, principalmente na região do rosto e partes íntimas. As armas brancas (como facas, canivetes, tesouras, etc), também são facilmente acessíveis no cotidiano doméstico, fato que revela o caráter frequentemente interpessoal e íntimo dessa violência.

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Os agressores buscam atacar partes do corpo vinculadas a feminilidade e autoestima das mulheres. No Ceará, uma prática muito comum nas dinâmicas criminais, por exemplo, é a de raspar a cabeça das mulheres como punição por quebrar algum valor 'moral'. "Esse tipo de ação, acontece para ofender características socialmente femininas", explicou Fernanda.

Segundo a psicanalista Macedônia Felix, que estuda sobre feminicídios no Cariri, interior do Ceará, a história violenta do estado está diretamente ligada a recorrência do uso de meios desumanos para tortura e morte de mulheres.

As nossas ancestrais são mulheres que foram estupradas, invadidas e violentadas no Ceará. E isso aparece até hoje, em vários lugares, aparece no trabalho com assédio, nos espaços públicos com importunação, na violência em casa e na morte
Macedônia Félix
Psicanalista

O homem nordestino tem a violência como forte constituinte cultural de sua personalidade. Essa construção cria a ideia do homem como 'macho' que precisa ser agressivo para reafirmar sua masculinidade, apontam estudos realizados pela Universidade do Minho, em Portugal junto a Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Universidade de Fortaleza (Unifor).

A figura do ‘macho’ foi construída no início da cultura de agricultura e pecuária. Nessa época, os homens rurais tratavam as mulheres como posse, "porque a mulher é quem vai gerar os filhos e esses filhos é que vão ajudar dentro da estrutura da terra", explicou a professora adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Layza Castelo.

As mulheres demoram para denunciar?

"A mulher ter dificuldade para quebrar o ciclo da violência é um mito inventado pela própria violência contra a mulher para dizer que ela é a culpada, que ela foi morta por que demorou ou tentou pouco. E quando você vai escutar a história de cada mulher é uma história de quem já tentou tanto, que não tem mais nem forças", explicou Macedônia.

A psicanalista aponta que, sempre após as agressões e desrespeitos, os companheiros das vítimas 'prometem mudar' e por um tempo mudam e melhoram. Mas, mesmo quando decididas a partir, as mulheres se vêem em situação de abandono. 

"Essa mulher está sem dinheiro, com a rede de apoio fragilizada, isso se tiver uma pessoa que a apoie. Ela tem crianças pequenas. Geralmente quem ajuda nesse cuidado dessas crianças, é a família do acusado da violência"

Ou seja, essa mulher "perde o pouco que tinha", quando decide partir.  "Outra razão é a vulnerabilidade financeira. Mulheres ganham menos, mulheres são mais subjugadas no trabalho, mulheres têm jornadas triplas de trabalho", explicou a psicóloga Layza.

A questão financeira também é acompanhada de fatores raciais, visto que mais de 60% das vítimas de feminicídio eram mulheres negras, segundo análise produzida a partir dos dados dos registros policiais e das secretarias estaduais de Segurança Pública em 2025, no Brasil.

A advogada Gislene Gabriel explica que a violência contra a mulher negra já é naturalizada em todos os contextos. Então, quando essa mulher recorre a órgãos públicos em busca de ajuda, as próprias autoridades e profissionais já enxergam o corpo dessa mulher como algo normalmente violentado. 

A mulher negra não tem mais azar que a branca. Ela sofre racismo. Ela já é o alvo da violência.
Macedônia Félix
Psicanalista

"Além disso, também temos poucas delegacias especializadas. Tem cidades do interior que não vão ter as delegacias e muito menos vão ter essa rede, esses equipamentos de proteção, de apoio, de acolhimento, que vão ser muito importantes, para que a vítima tenha força para denunciar", explicou a socióloga Fernanda. 

Somada a dificuldade da denúncia, a subnotificação do crime de feminicídio, que acontece a partir de falhas policiais e jurídicas na notificação e tipificação do crime, prejudicam as mulheres. 

Por que o feminicídio é diferente do homicídio?

O feminicídio é o assassinato de uma mulher por razões da condição de gênero feminino, ou seja, por ela ser mulher, o crime está ligado à violência doméstica, familiar, ou a menosprezo e discriminação. Em 2024, o feminicídio passou a ser considerado um crime autônomo.

Antes dessa atualização, ele era apenas uma das qualificadoras do crime de homicídio - com pena de 12 a 30 anos de reclusão - mas, agora, o feminicídio tem pena de 20 a 40 anos  de reclusão, podendo ser aumentada em casos específicos.

218
mulheres foram mortas no Ceará, em 2025, mas apenas 44 delas são consideradas vítimas de feminicídio.

A advogada e socióloga Gislene Araújo, afirma que o número de vítimas de feminicídio deve ser muito maior do que o divulgado. Segundo ela, isso se deve ao fato de certa dificuldade que as autoridades policiais e jurídicas têm de notificar e tipificar o crime como um ataque motivado por questão de gênero. 

"É por isso que no Anuário de 2025 tem baixos números de casos de feminicídio aqui no Ceará, enquanto os casos de homicídio eles foram mais elevados", explicou. 

Essa subnotificação prejudica a apuração de dados que podem servir para estruturação de políticas públicas de combate a violência e diminui também a pena dos acusados, que passam a responder por homicídio.

Por que as leis não são suficientes para proteger as mulheres?

"Nós temos a terceira melhor legislação do mundo em questões relativas à violência contra a mulher, porém os número de casos de feminicídio só aumentam", aponta a advogada Gislene.

A promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher de Fortaleza, Lívia Cristina, explica que essa contradição mostra a ineficácia de medidas punitivistas isoladas, "mostrando que a elevação de penas não está resolvendo o problema". 

É fato que existem resultados na diminuição da criminalidade com o agravo da consequência do crime, além de auxiliar no processo de luto de amigos e familiares das vítimas. “Entretanto, as políticas de punição devem estar associadas a políticas de prevenção”, detalhou a promotora, em entrevista ao Diário do Nordeste. 

"É preciso investir na criação de equipamentos especializados, capacitação dos profissionais que vão atender essas mulheres em situação de violência, campanhas para conversar com a sociedade sobre violência contra a mulher, sobre desigualdade de gênero, sobre respeito à condição da mulher, sobre uma vida livre e sempre digna", finalizou. 

"Apesar de continuarem nos violentando e tentando nos matar, há sempre mulheres fazendo políticas de educação e prevenção, há sempre mulheres falando, trabalhando, escrevendo, publicando, conscientizando", finaliza a psicanalista Macedônia.

Denuncie

A Secretaria da Segurança Pública lembra a importância da denúncia, para evitar crimes e iniciar investigações de violências contra as mulheres. Confira os canais:

  • Disque 190 - número da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops);
  • Disque 180 - Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos;
  • Telefone 181 - o Disque-Denúncia da SSPDS;
  • Número (85) 3101-0181 - que está no aplicativo WhatsApp, por onde podem ser feitas denúncias via mensagem, áudio, vídeo e fotografia;
  • E-denúncia: site do serviço 181 (https://disquedenuncia181.sspds.ce.gov.br/).

Nota da SSPDS: 

"A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informa que, entre janeiro e novembro de 2025, foram realizadas 68 prisões por crimes de feminicídio, incluindo prisões em flagrante e cumprimento de mandados judiciais. No mesmo período de 2024, foram registradas 48, o que representa um aumento de 41,7%. Em relação à Lei Maria da Penha, foram efetuadas 3.580 capturas em flagrante no Ceará no período analisado. Na comparação com os mesmos meses de 2024, quando houve 3.112 capturas em flagrante, o crescimento foi de 15%. Já no que se refere às prisões e apreensões em flagrante por crimes sexuais, o aumento foi de 10,7% no acumulado dos 11 primeiros meses de 2025. Entre janeiro e novembro deste ano, foram registradas 372 capturas flagranciais, contra 336 prisões e apreensões no mesmo período do ano passado. Os dados foram compilados pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), órgão vinculado à SSPDS.

A pasta reforça que, por meio de suas vinculadas, realiza ações de prevenção e acolhimento às vítimas de violência doméstica. No âmbito da Polícia Militar do Ceará (PMCE), o Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV), vinculado ao Comando de Prevenção e Apoio às Comunidades (Copac), presta suporte contínuo às mulheres e a demais integrantes de grupos vulneráveis.

Na Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE), a população conta com 11 unidades da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), responsáveis por receber denúncias e investigar crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, além de feminicídios e crimes sexuais. Na Capital, duas unidades especializadas estão em funcionamento: uma na Casa da Mulher Brasileira, no bairro Couto Fernandes, e outra no bairro Papicu.

No interior do estado, há DDMs nos municípios de Juazeiro do Norte, Sobral, Quixadá, Pacatuba, Caucaia, Maracanaú, Crato, Iguatu e Icó. Nas cidades onde não há unidade especializada, os casos podem ser registrados e investigados pelas demais delegacias da PCCE. O Governo do Ceará investe ainda na ampliação da rede de atendimento, com a construção de três Casas da Mulher Cearense, nos municípios de Tauá, Iguatu e Crateús, além de três Casas da Mulher Brasileira, em Itapipoca, São Benedito e Limoeiro do Norte.

Com o objetivo de fortalecer a rede de atendimento e ampliar o acesso rápido aos serviços de proteção, a PCCE, em parceria com a Secretaria das Mulheres (SEM) e a SSPDS, lançou, em agosto de 2023, o sistema virtual de solicitação de medidas protetivas de urgência, disponível no site mulher.policiacivil.ce.gov.br.

A Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) dispõe do Núcleo de Atendimento Especial à Mulher, Criança e Adolescente (Namca), serviço destinado às vítimas de crimes sexuais, com espaço humanizado para o acolhimento durante a realização dos exames periciais. O atendimento do Namca está disponível nos municípios de Juazeiro do Norte, Canindé, Tauá, Russas, Crateús, Sobral e Iguatu."

*Estagiária supervisionada pelo jornalista Emerson Rodrigues.