Os números relacionados à violência doméstica no Ceará escancaram a permanente realidade do patriarcado, do machismo estrutural e do sofrimento de mulheres que, em sua maioria, foram agredidas dentro de casa, por aqueles com quem decidiram partilhar a vida.

A partir deste sábado até a próxima quarta-feira (20), o Diário do Nordeste traz uma série de reportagens sobre a violência sofrida por elas, com relatos de mulheres que sobreviveram às agressões e familiares que contam com a Justiça para terem uma resposta acerca dos feminicídios. 

Conforme dados da Polícia Civil do Ceará (PCCE), em menos de cinco anos (de janeiro de 2020 até setembro de 2024), foram pouco mais de 100 mil denúncias registradas por mulheres vítimas de violência doméstica no Estado e quase 14 mil prisões em flagrante registradas com base na Lei Maria da Penha.

Da instauração do pedido de medida protetiva de urgência virtual ao foco no ‘Tempo de Justiça’ para julgar com mais celeridade os feminicídios. A adoção e criação de políticas públicas com esforços integrados para combater a violência de gênero é passo para reduzir a subnotificação e encorajar vítimas a romperem o ciclo da violência.

A titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Fortaleza, Giselle Martins, destaca a importância de o Estado ter conhecimento sobre os crimes, o que é possível a partir da comunicação formal via Boletim de Ocorrência (B.O.)

“Violência doméstica é um crime de um perfil mais democrático. Temos casos de agressão de filho contra uma mãe idosa, pessoas mais humildes… Existe uma portaria que determina que todas as investigações de homicídio com vítima mulher tenham, como primeira linha de investigação, o feminicídio”, diz a delegada.

A reportagem solicitou entrevista com a Secretaria das Mulheres do Ceará, mas não teve resposta sobre o agendamento até a publicação

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Legenda: De acordo com a SSPDS, houve redução de 17,6% no número de ocorrências de feminicídios em 2024.
Foto: Emanoela Campelo de Melo

A Lei Maria da Penha completa 18 anos em 2024 e se mostra um instrumento essencial no combate à violência doméstica. O sociólogo, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Alisson Rodrigo de Araújo Oliveira considera que "não é possível afirmar que a subnotificação vem diminuindo efetivamente com o aumento das denúncias, isso porque as chamadas 'cifras ocultas da criminalidade' operam a partir do desconhecimento do Estado em relação ao crime".

"De fato, o que existe hoje é uma maior conscientização e acesso a informações, bem como o investimento do Poder Público em canais de denúncia mais acessíveis e instituições mais preparadas para acolher essas mulheres em situação de violência, além de uma melhor produção de dados primários sobre a violência doméstica e familiar. Entretanto, os números da criminalidade registrados nunca são capazes de representar de maneira fidedigna a criminalidade real", conforme o sociólogo.

“Muitas vezes a vítima não se reconhece como vítima de violência doméstica. Se alguém próximo percebe que a relação é tóxica, familiares, amigos, podem acionar a Polícia. A mulher pode estar em uma situação que não consegue pedir ajuda por conta própria para resolver o problema sozinha”
Giselle Martins
Delegada titular da DDM de Fortaleza

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Legenda: Delegada titular da DDM de Fortaleza, Giselle Martins
Foto: Emanoela Campelo de Melo

O DESFECHO MAIS TRÁGICO

No início deste mês de novembro, ao divulgar a redução dos Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs) no Estado, o governador do Ceará, Elmano de Freitas, disse que o “Ceará tem o menor número de feminicídios no Brasil”.

Ao lado da vice-governadora e titular da Secretaria das Mulheres, Jade Romero, Elmano pontuou que o Estado deve “continuar fortalecendo o trabalho das instituições para as mulheres viverem na paz que merecem", enquanto Jade acrescentou a necessidade de “fortalecer a rede de proteção”.

Só neste ano de 2024, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) contabiliza já, pelo menos, 28 feminicídios (até o dia 20 de outubro).  

Os registros vêm com uma ressalva: com base nos dados, a reportagem levantou que 68% destes assassinatos em 2024 aconteceram com uso de arma branca e outros meios, diferente de outros homicídios, nos quais prevalece o uso de armas de fogo.

O pesquisador do LEV Alisson Araújo Oliveira diz que "a primeira questão que precisa ser pontuada é que o feminicídio consiste em um crime de ódio e que envolve diretamente o menosprezo e/ou a discriminação à condição de mulher como elemento constitutivo. Por essa razão, acredito que os instrumentos utilizados na prática do crime são reveladores de uma lógica oculta, capaz de auxiliar no entendimento das motivações dos sujeitos agressores por ocasião da prática criminosa".

"A arma branca, geralmente predominante nos crimes de feminicídio, representa um instrumento cuja função transcende o ato de matar, na medida em que sua função primária não é essa, o que torna uma faca um instrumento muito mais acessível do que uma arma de fogo, por exemplo. Portanto, nesses casos, há tanto a busca por ceifar a vida da vítima quanto por descarregar em seu corpo o ódio ao feminino, o que caracteriza a crueldade do crime de feminicídio. Trata-se, então, de um crime igualmente pautado no exercício de poder sobre o corpo das mulheres-vítimas"
Alisson Rodrigo
Sociólogo e pesquisador do LEV

De acordo com a SSPDS, houve redução de 17,6% no número de ocorrências de feminicídios em 2024. De janeiro a setembro do ano passado foram registrados 34 casos e em todo o ano de 2023, 42 casos, conforme a nota da Pasta. Já de janeiro a setembro deste ano, 28 feminicídios.

AÇÕES INTEGRADAS

A SSPDS destaca que as Forças de Segurança do Ceará mantêm ações integradas para a captura de suspeitos, “mas sobretudo, para a prevenção dos crimes”.

“É necessário, por fim, destacar a importância da denúncia. O acionamento de emergência das Forças de Segurança pode ser feito via Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops-SSPDS), que conta com o Grupo de Despacho do Comando de Prevenção e Apoio às Comunidades (GD – Copac) da PMCE. O serviço garante um atendimento diferenciado já na ligação para o Disque 190. 

Outro canal de denúncias é o número 180, da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. As denúncias podem ser feitas ainda para o número 181, o Disque-Denúncia da SSPDS, ou para o (85) 3101-0181, que é o número de WhatsApp, pelo qual podem ser feitas denúncias via mensagem, áudio, vídeo e fotografia”, divulga a Pasta.

A Secretaria destaca que “quando uma vítima ou terceiros fazem uma ligação denunciando a situação de violência contra mulheres e demais integrantes dos grupos vulneráveis, uma cópia do registro é encaminhada para o Copac, que envia uma equipe do Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (Gavv), um dos núcleos do policiamento especializado, para acompanhar a situação”.

A série de reportagens sobre ‘Violência Doméstica’ tem continuidade nesta terça-feira (19). Leia a sequência no site do Diário do Nordeste e acompanhe via redes sociais.