‘Até que a morte os separe’: em 80% dos feminicídios o autor é o companheiro ou ex da vítima
Em 2024, 60,7% dos feminicídios registrados no Brasil, tinham como autor o companheiro da vítima e 19,1% o ex-companheiro, segundo o Anuário da Segurança Pública de 2025. Esse padrão representa uma dimensão importante da realidade da violência de gênero no país, marcada por relações afetivas, familiares ou domésticas atravessadas por ciclos de violência que se intensificam até a morte.
dos casos de feminicídio em 2024, ocorreram na residência da vítima.
A maioria dos assassinatos de mulheres ocorrem dentro das casas das vítimas, por seus parceiros e ex-parceiros, pois é no ambiente doméstico em que as vítimas estão mais vulneráveis e desprotegidas. O término do relacionamento é a 'motivação' mais comum.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou que: "Realiza ações de prevenção e acolhimento às vítimas de violência doméstica. No âmbito da Polícia Militar do Ceará (PMCE), através do o Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV)". Além disso, afirmaram que "entre janeiro e novembro de 2025, foram realizadas 68 prisões por crimes de feminicídio, incluindo prisões em flagrante e cumprimento de mandados judiciais. No mesmo período de 2024, foram registradas 48, o que representa um aumento de 41,7%".
(Leia a nota na íntegra abaixo)
Para a psicanalista cearense Macedônia Félix, esse fenômeno é explicado pela lógica da posse que existe nos relacionamentos entre homens e mulheres. "Eu penso que esse ódio surge principalmente quando o desejo dessa mulher não inclui mais esse homem”.
A professora adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Layza Castelo, trabalhou com grupos de homens com antecedentes criminais de violência doméstica. A docente afirma que a maioria dos agressores só reconhecem atos violentos que "deixam marcas ou sangue". Esses homens, xingam as parceiras, forçam as esposas a fazer sexo, beliscam e empurram “sem entender essas ações como violentas”.
Esse homem que é capaz de apertar o braço da mulher, ele pode ser capaz de a partir de reflexões e processos psicoterápicos ele pode aprender a refletir sobre essas atitudes, mas ele também pode evoluir para um homem que vai matar uma mulher
A advogada e socióloga Gislene Gabriel aponta que o machismo é um 'código de conduta' construído socialmente e os homens o seguem desde muito pequenos. “Esse é um problema estrutural, cultural e que dá pra ser combatido. Mas temos que entender que esse fracasso é da sociedade e a responsabilização é de todos”, explica.
Os agressores enxergam o corpo das mulheres como territórios a serem conquistados, e quando conquistam, as parceiras passam a ser posses. No Brasil colonial, o código legal que se aplicava a Portugal e seus territórios, assegurava ao marido o 'direito de matar a mulher caso a apanhasse em adultério', por exemplo.
Há décadas atrás, os chamados 'crimes de honra' diminuíram o impacto dos assassinatos de mulheres que teriam ‘manchado’ a honra de seus parceiros. "Ele acredita que ela está ferindo a honra dele, que ela está descumprindo uma norma social, porque acredita que ela é um objeto dele", explica Layza.
Isso aparece muito nos casos das mulheres que foram assassinadas, que depois aparece um boato que ela 'colocou chifre' no parceiro. O 'fantasma do corno', que os homens tanto tem medo, 'justifica' a reação violenta
Nos dias atuais, parte da estratégia narrativa dos assassinos em julgamentos é afirmar que foram traídos pelas vítimas, como forma de justificar atos de violência, aponta a psicanalista Macedônia Félix. "Para o homem, a lógica é de que ele está sendo violado quando essa mulher decide o que fazer com o corpo dela".
As vítimas estão cada vez mais jovens
Dados da Supesp apontam que mais de 40% das vítimas de feminicídio no Ceará têm menos de 30 anos. Os homens são violentos e as mulheres perdoam a violência "porque a violência já está lá desde a infância", explica Macedônia.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) para comentar os dados, mas não obteve resposta até a publicação.
"Então, para as meninas, a violência muitas vezes começa na infância, em que elas são violentadas por aquelas e por aqueles que deveriam cuidar. Elas crescem e vão tentando sobreviver aos frangalhos emocionais, acreditando que a única possibilidade de dividir a vida com alguém é sendo marcada por mais violência", disse a psicanalista.
crianças, de 0 a 13 anos, foram vítimas de lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, em 2024.
Crianças e adolescentes que vivem em realidades violentas tendem a replicar e aceitar relacionamentos de violência no futuro. Em 2024, mais de 93% de crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos tinham como autores pessoas do próprio círculo familiar, percentual que se mantém elevado em todas as faixas etárias.
“Se você vai conversar com um adolescente de 13 anos, ele já diz o que é ser homem na cabeça dele. Então, lá na primeira infância, essa criança que vive violência dentro de casa, forma todas as crenças na cabeça dela”, afirma a psicanalista.
Esse menino, ele vai crescendo nessa sociedade, contando as mulheres que ele pega e nessa estrutura de masculinidade, ele pode tudo. Então a sociedade ensina para esse jovem que ele é irrecusável
No Ceará, cerca de 1.795 pessoas foram vitimas de violência sexual, no ano de 2025 - até novembro - . Mais de 75% delas eram menores de idade. “Nesse momento, tem milhares de casas violentas, onde um menino e uma menina estão aprendendo sobre isso”, pontua Macedônia.
"O contraponto a essa violência normalizada que se expressa nas relações adolescentes é a gente construir uma outra educação para vida, Então, a igreja, a escola, a família tem que se fazer presente, para fazer um outro futuro", explica a psicanalista.
Não existe o gene da submissão e o gene do machismo. O que existe é o que nós estamos ensinando e aprendendo o tempo todo.
O projeto 'Educar para Prevenir' do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher (Nuprom) do Ministério Público do Ceará (MPCE) é apontado pela promotora Lívia Cristina como uma das iniciativas públicas para conscientizar os jovens sobre a violência de gênero, relacionamentos saudáveis e não saudáveis e rede de apoio.
Quais violências eles praticam antes de matar?
Apesar dos casos trágicos causarem choque e parecerem acontecer de maneira inusitada e isolada, o feminicídio representa o último estágio de uma escalada de múltiplas violências psicológicas, emocionais, morais e até patrimoniais que se manifestam de forma 'sutil' e contínua na vida das vítimas.
A violência pode começar nas palavras, xingamentos e chantagens. Após um tempo, ela tende a escalar para proibições, ordens e punições, até que acontecem os primeiros beliscões, empurrões e tapas. "A violência começa ali muito mascarada e logo em seguida vem o pedido de desculpas", pontuou a professora de psicologia, Layza Castelo.
TIPOS DE VIOLÊNCIA:
- Violência física – Tapas, socos, chutes, empurrões, atirar objetos, sacudir, apertar braços, queimaduras, beliscões, lesões com objetos perfurantes
- Violência psicológica – Humilhações, chantagens, isolamento, vigilância, perseguição, proibições, manipulações, ameaças e ofensas.
- Violência sexual – Obrigar a mulher a manter relações sexuais contra sua vontade, forçá-la a práticas sexuais indesejadas, impedir o uso de métodos contraceptivos, intimidação, ameaça, uso de força, forçar matrimônio, gravidez ou prostituição.
- Violência patrimonial – Retenção e destruição de bens e documentos, controle do dinheiro ou restrição de recursos financeiros. Fazer dívidas no nome da outra pessoa, como usar o cartão de crédito sem autorização; falsificação de assinatura; receber qualquer auxílio financeiro do governo no nome da vítima; proibir ou manipular a mulher para que ela deixe de trabalhar para cuidar da casa.
- Violência moral – Exposição da mulher de forma vexatória, divulgação de imagens íntimas sem consentimento, acusação de traição, fazer críticas excessivas e mentirosas, desvalorização da mulher pelo forma de se vestir ou se portar.
Dentro do processo de construção psíquica da mulher, ela é ensinada a perdoar e cuidar, o que dificulta a percepção da capacidade do homem de evoluir nas formas de violentá-la.
Quando ela vê esse homem chorando e pedindo perdão, ela vai tender a perdoar, porque isso está no inconsciente dela, ela acredita que pode ajudá-lo a mudar
Além do perdão da mulher, existem 'perdões sociais', que tentam amenizar agressões e transferir culpa às vítimas. "Ele cometeu isso porque está cansado, porque ele é doente, porque ele bebeu. Isso vai retroalimentando o perdão, como se a responsabilidade fosse de uma doença, do uso do álcool, do cansaço do trabalho e não é", complementou a professora de psicologia.
Embora existam crimes cometidos durante o surto psicótico, a docente aponta que a maioria dos casos de feminicídio são cometidos por homens que têm transtorno de personalidade antissocial, "que diga-se de passagem é sinônimo de psicopatia", explicou. As pessoas com esse transtorno normalmente planejam por muito tempo o que vão fazer e violentam as vítimas 'aos poucos', antes de agir de maneira fatal.
Lei Maria da Penha
No Ceará, cerca de 24.436 mulheres acionaram a Lei Maria da Penha em 2025, o número aumentou 45% desde 2015, quando os casos começaram a ser contabilizados. A lei protege a vítima de violência doméstica através de medidas protetivas de urgência, como afastamento do agressor, proibição de contato e restrição de armas.
No ano passado, mais de 500 mil medidas protetivas de urgência foram concedidas a mulheres no Brasil. Mais de 100 mil foram descumpridas pelos agressores.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou que: "Em relação à Lei Maria da Penha, foram efetuadas 3.580 capturas em flagrante no Ceará no período analisado. Na comparação com os mesmos meses de 2024, quando houve 3.112 capturas em flagrante, o crescimento foi de 15%".
No Ceará, uma mulher foi morta seis dias após conseguir uma medida protetiva contra o ex-companheiro que não aceitava o término do relacionamento. A mulher foi morta a facadas em Canindé, no interior do estado. A vítima deixou três filhos, que teve com o suspeito.
“Eu digo que o ‘até que a morte os separe’ é levada ao pé da letra pelos homens, mas quem diz quem morre, quando morre e como, é o homem”, finaliza a psicanalista.
Denuncie
A Secretaria da Segurança Pública lembra a importância da denúncia, para evitar crimes e iniciar investigações de violências contra as mulheres. Confira os canais:
- Disque 190 - número da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops);
- Disque 180 - Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos;
- Telefone 181 - o Disque-Denúncia da SSPDS;
- Número (85) 3101-0181 - que está no aplicativo WhatsApp, por onde podem ser feitas denúncias via mensagem, áudio, vídeo e fotografia;
- E-denúncia: site do serviço 181 (https://disquedenuncia181.sspds.ce.gov.br/).
Nota da (SSPDS)
"A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informa que, entre janeiro e novembro de 2025, foram realizadas 68 prisões por crimes de feminicídio, incluindo prisões em flagrante e cumprimento de mandados judiciais. No mesmo período de 2024, foram registradas 48, o que representa um aumento de 41,7%. Em relação à Lei Maria da Penha, foram efetuadas 3.580 capturas em flagrante no Ceará no período analisado. Na comparação com os mesmos meses de 2024, quando houve 3.112 capturas em flagrante, o crescimento foi de 15%. Já no que se refere às prisões e apreensões em flagrante por crimes sexuais, o aumento foi de 10,7% no acumulado dos 11 primeiros meses de 2025. Entre janeiro e novembro deste ano, foram registradas 372 capturas flagranciais, contra 336 prisões e apreensões no mesmo período do ano passado. Os dados foram compilados pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), órgão vinculado à SSPDS.
A pasta reforça que, por meio de suas vinculadas, realiza ações de prevenção e acolhimento às vítimas de violência doméstica. No âmbito da Polícia Militar do Ceará (PMCE), o Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV), vinculado ao Comando de Prevenção e Apoio às Comunidades (Copac), presta suporte contínuo às mulheres e a demais integrantes de grupos vulneráveis.
Na Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE), a população conta com 11 unidades da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), responsáveis por receber denúncias e investigar crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, além de feminicídios e crimes sexuais. Na Capital, duas unidades especializadas estão em funcionamento: uma na Casa da Mulher Brasileira, no bairro Couto Fernandes, e outra no bairro Papicu.
No interior do estado, há DDMs nos municípios de Juazeiro do Norte, Sobral, Quixadá, Pacatuba, Caucaia, Maracanaú, Crato, Iguatu e Icó. Nas cidades onde não há unidade especializada, os casos podem ser registrados e investigados pelas demais delegacias da PCCE. O Governo do Ceará investe ainda na ampliação da rede de atendimento, com a construção de três Casas da Mulher Cearense, nos municípios de Tauá, Iguatu e Crateús, além de três Casas da Mulher Brasileira, em Itapipoca, São Benedito e Limoeiro do Norte.
Com o objetivo de fortalecer a rede de atendimento e ampliar o acesso rápido aos serviços de proteção, a PCCE, em parceria com a Secretaria das Mulheres (SEM) e a SSPDS, lançou, em agosto de 2023, o sistema virtual de solicitação de medidas protetivas de urgência, disponível no site mulher.policiacivil.ce.gov.br.
A Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) dispõe do Núcleo de Atendimento Especial à Mulher, Criança e Adolescente (Namca), serviço destinado às vítimas de crimes sexuais, com espaço humanizado para o acolhimento durante a realização dos exames periciais. O atendimento do Namca está disponível nos municípios de Juazeiro do Norte, Canindé, Tauá, Russas, Crateús, Sobral e Iguatu".
*Estagiária supervisionada pelo jornalista Emerson Rodrigues.