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Baú da Política: como uma deputada entrou de calça comprida na Alece e desafiou norma para mulheres

Antes de ser prefeita de Fortaleza, Maria Luiza Fontenele levou histórico de “transgressões” à Assembleia Legislativa e motivou mudanças

Escrito por
Marcos Moreira marcos.moreira@svm.com.br
(Atualizado às 10:19, em 03 de Setembro de 2025)
Ilustração mostra a ex-deputada estadual Maria Luiza Fontenele em uma cadeira com calças compridas ao fundo
Legenda: Maria Luiza Fontenele foi deputada estadual, federal e prefeita de Fortaleza
Foto: Louise Dutra (Ilustração)

Até 1979, as mulheres só podiam entrar usando vestido ou saia na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), a partir do entendimento em torno do artigo sobre “pessoa decentemente vestida” do regimento interno. Foi então que, naquele ano, uma deputada estadual em primeiro mandato resolveu desafiar as normas e entrar de calça comprida na Casa: era Maria Luiza Fontenele

Seis anos antes de se tornar a primeira mulher eleita como prefeita de uma capital brasileira, ao vencer a disputa pelo comando da Prefeitura de Fortaleza em 1985, a socióloga e professora universitária iniciou a jornada política como uma das primeiras parlamentares estaduais da história da Alece.

Em 1979, Maria Luiza formava uma trinca de deputadas ao lado de Douvina de Castro e Maria Lúcia Corrêa. Antes delas, apenas uma mulher havia exercido o cargo: Zélia Mota, a primeira eleita deputada estadual em 1974 — cerca de 140 anos depois da instalação da Assembleia no Ceará.

Maria Luiza Fontenele durante uma votação na Assembleia Legislativa, utilizando calça comprida
Legenda: Maria Luiza Fontenele durante uma votação na Assembleia Legislativa, utilizando calça comprida
Foto: Reprodução/Documentário Alece 190 anos

O "Baú da Política" é uma série de reportagens do Diário do Nordeste que explora a história política e social do Ceará. Nesta edição, o especial aborda figuras, eventos e processos marcantes dos 190 anos da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), celebrado em 2025.

Em entrevista ao PontoPoder, Maria Luiza Fontenele contou que o episódio da calça comprida faz parte de um histórico de “transgressões” e “enfrentamentos”, já que tinha uma trajetória ligada ao movimento estudantil e ao ativismo social, principalmente em greves trabalhistas e junto às comunidades da periferia de Fortaleza. 

Naquela época, comenta a ex-deputada, foi questionada de quem ela era filha ou de quem era esposa. No entanto, a então deputada estadual era divorciada e o pai, Antonino Fontenele, já havia falecido. Além disso, a eleição para o Parlamento veio a partir da ideia de dar visibilidade ao movimento pela Anistia na década de 1970, dentro do contexto da ditadura militar (1964-1985).

Ao chegar na Alece, em 1979, Maria Luiza Fontenele relata que foi empossada utilizando vestido e recebeu do então presidente da Casa, o deputado estadual Aquiles Peres Mota, um alerta: “Espero que você venha direitinha, porque você de saia já dá trabalho, imagina de calça comprida.”

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ALTERANDO O ‘REGIMENTO’

Maria Luiza Fontenele na Assembleia Legislativa do Ceará em 1985
Legenda: Maria Luiza Fontenele na Assembleia Legislativa do Ceará em 1985
Foto: Divulgação/Arquivo Alece

Mesmo diante do aviso, a rotina parlamentar fazia com que Maria Luiza Fontenele chegasse à Assembleia sempre com a mesma vestimenta que já estava na atuação externa, explica a ex-deputada. Foi nesse contexto que ela desafiou o entendimento da época e passou a tentar entrar na Alece de calça comprida, chegando a ser barrada. 

“Se eu ia para as favelas de calça comprida, se eu ia dar aula de calça comprida, por que é que eu não ia entrar na Assembleia de calça comprida? (...) Fui barrada. Aí eu disse que não podiam me barrar, não, que não tinha nada que me impedisse, aí disseram que tinha um regimento. Aí eu disse: ‘Sim, mas o regimento não é constituição, não é lei’. E aí o Aquiles disse que ia mudar o regimento, para não me dar Ibope. Mas aí já tinha dado, né?”
Maria Luiza Fontenele
Ex-deputada estadual e prefeita de Fortaleza entre 1986 e 1989

No documentário sobre os 190 anos da Alece, a ex-deputada Maria Lúcia Corrêa evidenciou o tamanho do episódio. Contemporânea de Fontenele, a parlamentar comentou que o “clássico” para as mulheres era a saia e o casaco para entrar na Casa, onde o uso de calça comprida era vetado para todas, incluindo as servidoras. 

“Qualquer mulher que fosse era sempre de vestido. E ela (Maria Luiza Fontenele) insistiu, insistiu, insistiu. Até que um dia eles abriram. Por que todas as pessoas, as funcionárias puderam usar. As pessoas que iam à Assembleia visitar iam à vontade. Se quisessem ir de calça comprida, estava livre. (Antes) Não entrava. Foi assim uma vitória enorme. Aí todo mundo vibrou”, salientou Maria Lúcia Corrêa no material audiovisual. 

Como indicam informações do Memorial Deputado Pontes Neto da Alece (Malce), o regimento interno de 1979 trazia o seguinte artigo: “Será permitida a qualquer pessoa decentemente vestida assistir às sessões, da galeria.”

Atualmente, o regimento interno continua com uma cláusula nesse sentido: “Compete à 2.ª CPG (Companhia de Polícia de Guarda - ALECE) o controle de acesso às dependências do Poder Legislativo, inclusive no tocante às sessões da galeria, sendo permitido a qualquer pessoa, decentemente vestida, assistir às sessões da galeria.”

A atitude de Maria Luiza Fontenele, porém, motivou a mudança de entendimento em torno do artigo, fazendo com que a calça comprida para as mulheres fosse aceita como “decente” para uso na Assembleia. 

QUEBRANDO O PROTOCOLO

Como noticiado pelo próprio Diário do Nordeste na época, a “despedida informal” de Maria Luiza Fontenele da Alece, em novembro de 1985, evidenciou como a deputada mudou as normas da Casa. 

“As regras e os protocolos foram quebrados com a invasão literal das dependências do plenário por centenas de pessoas, sem que os homens estivessem de paletó e gravata e as mulheres usando saia (a maioria estava de calça comprida). O guarda de segurança que fica na porta principal do plenário, para barrar quem estiver fora do protocolo, lutou em vão para impedir a entrada dos populares que acompanhavam Maria Luiza”
Trecho da edição do jornal Diário do Nordeste de 20 de novembro de 1985

Foto mostra edição do Diário do Nordeste sobre a despedida da Maria Luiza Fontenele da Alece antes dela assumir a Prefeitura de Fortaleza
Legenda: Edição do Diário do Nordeste sobre a despedida da Maria Luiza Fontenele da Alece antes dela assumir a Prefeitura de Fortaleza
Foto: Reprodução/Arquivo DN

Aos 82 anos, Maria Luiza Fontenele ainda costuma fazer visitas à Alece, onde gosta de observar a mudança que ajudou a concretizar. “Recentemente, eu cheguei na Assembleia e estava havendo uma solenidade em um espaço comum, era coisa de funcionários. Quando eu olhei, todas as pessoas, todas as mulheres de calça comprida. Aí quando me deram a palavra, eu fiz esse registro. Eu disse: ‘Minha gente, que coisa maravilhosa’, rememorou. 

Após dois mandatos no Legislativo estadual, Maria Luiza Fontenele foi eleita prefeita de Fortaleza, cidade que comandou entre 1986 e 1989. Em 1990, ela conseguiu um mandato de deputada federal. Na Câmara em Brasília, encontrou um cenário diferente para as mulheres em termos de restrições de vestimenta, no qual já havia uma série de parlamentares, como Marta Suplicy, Benedita Silva e Luiza Erundina.

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Ainda assim, Maria Luiza Fontenele diz que lembra do dia no qual tentou entrar de calça comprida em uma audiência pública do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, e foi barrada. "Aí eu disse: 'Não tem problema não, eu tiro a calça comprida e entro só de blusão’. Era comprido. Mas a minha filha estava comigo e disse: ‘Não, mãe, pelo amor de Deus, vamos lá em casa num minuto e a gente veste uma saia’”, relembrou. 

Ainda na entrevista ao PontoPoder, Maria Luiza Fontenele relatou que a questão da vestimenta foi apenas um dos enfrentamentos que precisou superar na vida política, relembrando casos de ameaças e ataques machistas. Ela também aproveitou para citar o nome de companheiras que estiveram ao lado dela nessas lutas, como Rosa da Fonseca (1949-2022). As duas fundaram a União das Mulheres Cearenses, na década de 1980, e o movimento Crítica Radical.

Calça comprida da Maria Luiza Fontenele é um dos destaques da exposição de 190 anos da Alece
Legenda: Calça comprida da Maria Luiza Fontenele é um dos destaques da exposição de 190 anos da Alece
Foto: Thiago Gadelha/SVM

Para a ex-deputada, ainda é preciso superar a “lógica do capital” para avançar na inclusão não só para as mulheres nos espaços de poder, mas também para negros, nordestinos e outros segmentos discriminados. 

“Em que pese todos esses avanços, todas essas situações de guerreiras, não quebramos essa lógica que hoje está num processo de destruição, totalmente destruição da natureza e de extermínio dos seres humanos. Então, nada da luta que foi realizada até agora é fundamental se você não sair desse turbilhão para o colapso. Ou você sai dela e cria uma sociedade alternativa, onde existe uma relação solidária entre homens e mulher, entre nós e a natureza ou não haverá alternativa para nós”
Maria Luiza Fontenele
Ex-deputada estadual e prefeita de Fortaleza entre 1986 e 1989

Maria Luiza Fontenele durante a sessão solene de 178 Anos do Liceu do Ceará na Alece, em novembro de 2023
Legenda: Maria Luiza Fontenele durante a sessão solene de 178 Anos do Liceu do Ceará na Alece, em novembro de 2023
Foto: Máximo Moura/Alece

MULHERES NO PARLAMENTO

O episódio de Maria Luiza Fontenele na Assembleia representa uma gama de desafios enfrentados pelas mulheres no meio político, ao mesmo tempo que refletem a própria dificuldade imposta à representatividade feminina: em 190 anos, apenas 44 mulheres foram eleitas para o parlamento estadual. 

Para se ter uma ideia desse panorama, caso todas as deputadas eleitas no Ceará ao longo da história fossem reunidas em uma única legislatura, ainda assim não preencheria o total de vagas da Alece (46). 

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Em 2022, um recorde foi registrado: nove mulheres foram eleitas para a atual legislatura. O melhor resultado anterior havia sido há 20 anos, em 2002, quando oito mulheres foram eleitas.

Dra. Silvana (PL), Emília Pessoa (PSDB), Gabriella Aguiar (PSD), Lia Gomes (PSB), Jô Farias (PT), Juliana Lucena (PT), Larissa Gaspar (PT), Luana Ribeiro (Cidadania) e Marta Gonçalves (PSB) foram eleitas deputadas estaduais do Ceará em 2022
Legenda: Dra. Silvana (PL), Emília Pessoa (PSDB), Gabriella Aguiar (PSD), Lia Gomes (PSB), Jô Farias (PT), Juliana Lucena (PT), Larissa Gaspar (PT), Luana Ribeiro (Cidadania) e Marta Gonçalves (PSB) foram eleitas deputadas estaduais do Ceará em 2022
Foto: Junior Pio/Alece

Parlamentar que integra o grupo, Juliana Lucena (PT) destacou, em nota ao PontoPoder, que é importante reconhecer a importância da atuação das deputadas que as antecederam para um espaço mais consolidado de representação feminina. Atual procuradora da Mulher da Alece, a política avalia que é preciso dar continuidade a esse legado, ampliando vozes, assegurando direitos e construindo políticas públicas que façam diferença.

“A política, historicamente, foi pensada e ocupada por homens, e isso se reflete na dificuldade que nós, mulheres, temos de disputar espaços de poder. Ainda lidamos com preconceitos, com a sobrecarga dos papéis sociais que nos são impostos e até mesmo com episódios de desrespeito no cotidiano político. O nosso papel é justamente o de transformar essa realidade”
Juliana Lucena
Deputada estadual do PT e procuradora especial da Mulher da Alece

Nesse sentido, Juliana Lucena enfatizou que a Procuradoria Especial da Mulher atua para fortalecer a representatividade feminina. “Quando uma mulher ocupa espaço de poder, ela abre caminho para muitas outras. E é isso que queremos: um parlamento que seja cada vez mais representativo e igualitário”, finalizou. 

Conheça também a história da primeira mulher a usar calças no Plenário do Supremo Tribunal Federal:

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