Cearenses recorrem ao miojo e à salsicha para não passarem fome: 'alimentação saudável é um luxo'

Diante da inflação dos alimentos saudáveis, famílias que ainda conseguem se alimentar substituem as frutas e verduras pelos ultraprocessados; realidade ocasiona o adoecimento da população mais pobre

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Legenda: Tubérculos, raízes e legumes ficaram 39,09% mais caros para os brasileiros no acumulado dos últimos 12 meses até julho
Foto: Fabiane de Paula

Numa pequena casa azulada, no bairro Mondubim, em Fortaleza, um prato cheio oculta a dura realidade de cearenses de baixa renda: é almoçar o "miojo" ou sucumbir à fome. Essas famílias, que agora enfrentam ainda mais dificuldades de acesso aos alimentos saudáveis devido à inflação, são obrigadas a consumirem os ultraprocessados.

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Abarrotados de gorduras, açúcares e sódio, esses produtos economicamente acessíveis (para uma parcela da população) provocam obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis que estão entre as principais causas de mortalidade no País, como câncer e diabete.

Para se ter ideia, os tubérculos, raízes e legumes ficaram 39,09% mais caros para os brasileiros no acumulado dos últimos 12 meses até julho, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Já as frutas subiram 33,11% no período. 

Medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o indicador aponta a inflação sentida pelos grupos de renda mensal de um a 40 salários mínimos. 

Se a professora de reforço, de 30 anos, moradora da casa ilustrada no início desta reportagem que não quis se identificar, pudesse fazer uma salada para almoçar, teria de desembolsar 53,18% a mais pelo pepino, 38,75% pela alface e 38,2% pela cenoura.

Enquanto a linguiça, a salsicha em conserva e o macarrão instantâneo, itens da sua dieta diária, subiram 4,31%, 7,59% e 26,5%, respectivamente. Apesar da alta significativa do 'miojo', esse item ultraprocessado permanece acessível por custar até R$ 2, a depender da marca. 

"Sei que esses alimentos têm muita coisa química e só fazem engordar ou causar uma doença. Acontece que, antes, a gente ainda tinha como tentar comer melhor, mas, hoje em dia, alimentação saudável é luxo”, lamenta.

A renda familiar atual da jovem, que mora com os pais, é inferior a um salário mínimo. Ela ficou sem recursos durante a fase crítica da pandemia de Covid-19, em 2020, quando parou de dar aulas particulares às crianças da comunidade. 

Naquele período, o ‘Auxílio Emergencial’ de R$ 600 aliviara a fome da família. Com o fim do benefício, em novembro do ano passado, a situação piorou. Em 2022, contudo, o retorno gradual dos alunos tem garantido novamente a comida na mesa, mas apenas a de baixo valor nutricional. 

“Eu vivo como todo brasileiro: substituindo a carne pelos derivados, comendo enlatados, 'miojo', salsicha, mortadela, carne de hambúrguer, empanados e ovo”, lista. Na casa, os lanches da tarde não ocorrem todos os dias, dependem das sobras de pão do café da manhã.

“Não dá mais para comprar frutas, pois o preço está muito alto”, conta. Se a professora tivesse condições de incluir o mamão no cardápio para evitar pular essa refeição, por exemplo, teria pagado 103,31% mais caro pelo produto. O preço do melão (84,09%) e da melancia (60,7%) também dispararam nos últimos 12 meses, no Brasil, conforme o INPC. 

Número de crianças com obesidade grave subiu 40% em Fortaleza 

A inflação dos alimentos saudáveis torna a situação de famílias com crianças e adolescentes ainda mais dramática. Na etapa da vida cuja nutrição é fundamental para o crescimento e para o desenvolvimento cognitivo, pais e responsáveis precisam oferecer biscoitos, balas e salgadinhos de pacote para não virem os filhos e os familiares fustigados pela fome. 

É só na escola que muitas crianças pobres têm acesso a refeições equilibradas de nutrientes. 

Conforme levantamento da “Fiquem Sabendo”, agência de dados especializada no acesso a informações públicas, o número de pessoas de 5 a 10 anos com obesidade grave em Fortaleza elevou 40% em 2021 ante 2020, passando de 3,2 mil para 4,5 mil. 

O quantitativo foi extraído do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde. A plataforma aglutina informações de crianças que recebem atenção primária do serviço público de saúde. Destas, a maioria vive em situação de vulnerabilidade social e é atendida por programais sociais. 

Em Fortaleza, o número dessa parcela da população obesa também aumentou 35% no período (4,2 mil para 5,7 mil). Na outra ponta, cresceu em 25% a magreza entre as pessoas dessa faixa etária, com 799 crianças nesta condição em 2021. As diagnosticadas com magreza acentuada saltaram de 403 para 553, totalizando alta de 37,2%. 

A professora de saúde coletiva do curso de Nutrição da Universidade de Fortaleza (Unifor), Natália Sales de Carvalho, frisa que a dieta à base de ultraprocessados está entre as causas por trás dos índices de obesidade e de outras doenças crônicas.

“Esses alimentos têm uma composição nutricional desbalanceada. No geral, são ricos em gorduras, açúcares e sódio, mas são pobres em fibras, vitaminas e minerais”, diferencia. A professora lembra que o “Guia Alimentar para a População Brasileira” recomenda o maior consumo de alimentos in natura e/ou minimamente processados. 

O exemplo de uma alimentação adequada e saudável para nós, cearenses, seria a inclusão, ao longo do dia, de frutas, legumes, verduras, feijões, cereais (arroz, milho, trigo), raízes e tubérculos (mandioca, macaxeira, batata), castanhas, nozes, leites, derivados e carnes e ovos”, exemplifica. 
Natália Sales De Carvalho
Professora de Saúde Coletiva do curso de Nutrição da Universidade de Fortaleza (Unifor)

Contudo, a corrosão dos rendimentos pela inflação tem afastado, cada vez mais, cearenses de faixas de rendas mais baixas desse direito fundamental. Diante da crise, a supervisora Glauciana Rabelo, de 43 anos, teme pela saúde da neta de dois anos. A avó necessitou eliminar a carne vermelha, o frango e o leite para a feira caber no orçamento. 

“Vamos adaptando como podemos, comprando o que tem de mais barato, como carnes de hambúrguer, empanados e ovos. Frutas, então, a gente só come quando estão em promoção”, relata.

A gente trabalha só para se alimentar, mas ainda assim não consegue nem a comida adequada”, completa.
Glauciana Rabelo

Sobre a situação dessas pessoas, a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) informou ter projetos sociais voltados para o combate à fome e à insegurança alimentar na Capital cearense. Dentre eles, a horta social e a distribuição de sopas e "quentinhas" em refeitórios sociais. 

Em relação ao acompanhamento nutricional das famílias de baixa renda, disse atender 13 mil crianças com o "Cartão Missão Infância". Nas escolas, afirmou, o cardápio é elaborado pela equipe de nutricionistas e de coordenadoras do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), em acordo com as recomendações estabelecidas pelas legislações. 

“Os cardápios escolares são elaborados com base nas necessidades nutricionais de cada faixa etária, cultura alimentar local, dentre outros fatores importantes para a boa nutrição dos estudantes”, garantiu. 

A Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos humanos (SPS) não respondeu aos questionamentos sobre as medidas adotadas no Estado até o momento. 

Má alimentação por necessidade: as faces da fome e da insegurança alimentar 

Glauciana e a moradora do Mondubim, personagens apresentadas nesta reportagem, estão entre as 125,2 milhões de pessoas (metade da população brasileira) enfrentando algum tipo de dificuldade de acesso a alimentos em 2022, conforme pesquisa desenvolvida pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan)

Atualmente, 50% das famílias que reduziram a quantidade comprada de arroz, feijão, vegetais e frutas convivem com a insegurança alimentar moderada ou grave. Dentre aquelas que deixaram de comprar carnes no período de três meses anteriores à pesquisa, entre novembro de 2021 e abril de 2022, em 70,4% a fome está presente.

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A situação é semelhante nos lares onde os moradores não haviam comprado frutas (64%) e vegetais (63,6%). As mulheres sentem o impacto negativo ainda mais forte em razão da desigualdade salarial. Atualmente, seis de cada 10 lares comandados por elas sobrevivem com a insegurança alimentar.

Já o número de gente com fome saltou 9% neste ano, passando de 19,1 milhões para 33,1 milhões de brasileiros sem ter o que comer.  

A dor da fome irradia por outros setores da economia 

A economista e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Natália Cecília de França, observa que os prejuízos das doenças provocadas por uma alimentação à base de ultraprocessados também afetam o Produto Interno do País (PIB), além do bem-estar geral da população.

“Para se ter uma ideia, dados da Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV) mostram que, no período de 2012 a 2021, mais de 245 mil brasileiros sofreram amputação de membros inferiores”, contextualiza. 

Isso gera pressões nos sistemas de saúde e de seguridade social. Os custos indiretos ou sociais da obesidade incluem queda da produtividade, aumento do absentismo trabalhista, menor qualidade de vida e uma aposentadoria precoce”, enumera. 
Natália Cecília de França
Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP), da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Nesse contexto, acrescenta, a qualidade de vida dos mais pobre é severamente prejudicada. As crianças que hoje sobrevivem à fome e à insegurança alimentar podem sofrer atrofia do desenvolvimento físico e mental, impactando no aprendizado e na evasão escolar. 

"É comum que as crianças em situação de vulnerabilidade abandonem a escola para auxiliar no sustento familiar, comprometendo ainda mais seu desenvolvimento e contribuindo para a perpetuação do ciclo de pobreza", destaca.

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"Falando em ciclo da pobreza, bebês nascidos de mães desnutridas já contam com problemas ocasionados pelo baixo peso e pela falta de uma nutrição adequada durante a gestação", reforça a professora. 

Resumidamente, os impactos da fome e da insegurança alimentar sobre a economia são: 

  • Desnutrição e nascimento de crianças com baixo peso. Consequentemente, expansão dos gastos com saúde pública e de seguridade social;
  • Maior absenteísmo (falta de assiduidade no trabalho) no mercado de trabalho;
  • Redução nos níveis de renda dos trabalhadores;
  • A falta de uma alimentação saudável pode comprometer o sistema imunológico. Com a imunidade mais baixa, trabalhadores ficam mais expostos para serem acometidos por diversas doenças e podendo levar à morte prematura;
  • Provoca um cenário de elevada instabilidade social, possibilitando o aumento dos índices de violência. 

Na segunda parte desta reportagem, você vai entender a origem da fome, as possíveis soluções para esse problema histórico e ler uma entrevista com Gustavo Chianca, representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Clique neste link para continuar. 

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