Anúncios de supermercados dos anos 1990 a 2022 mostram corrosão do poder de compra; compare preços
Encartes reforçam o patamar de preços estratosféricos alcançados por produtos como carne, leite, óleo de cozinha e o arroz
O consumidor tem acompanhado com o passar dos meses e anos a elevação nos preços da alimentação básica, mas comparar encartes de uma década atrás ou quase isso com os anúncios mais atuais de supermercados dá uma dimensão mais clara e impactante de como os produtos encareceram ao longo do tempo.
Para se ter uma ideia da diferença de preços de encartes, o óleo de cozinha custava R$ 2,69 em 2014, sendo necessário desembolsar cerca de 0,37% do salário de R$ 724 daquela época para comprar o produto. Em 2022, ao preço de anúncio de R$ 10,99, o consumidor precisa gastar 0,9% do salário de R$ 1.212 para adquirir o mesmo produto.
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No caso do leite, era necessário desembolsar 0,27% do salário de 2014, enquanto atualmente é preciso gastar 0,61% do mínimo de 2022.
O consumidor em 2014 necessitava gastar 0,55% do salário para comprar margarina, enquanto em 2022, o percentual do mínimo para adquirir o mesmo produto sobe para 0,83%. Esses são alguns exemplos de como o poder de compra foi corroído nos últimos anos. Veja os comparativos abaixo.
'Dinheiro está diminuindo'
Economistas consultados pela reportagem do Diário do Nordeste explicam os fatores responsáveis por isso e detalham por que o cearense tem cada vez mais a sensação de que o dinheiro está diminuindo. Um dos pontos que eles destacam é a mudança na política de reajuste do salário mínimo, ocorrida no governo de Michel Temer e perpetuada até então.
Antes da mudança, o salário mínimo era reajustado anualmente considerando o crescimento do País medido pelo Produto Interno Bruto (PIB) e o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que é a inflação para as famílias com renda abaixo de cinco salários mínimos. Hoje, apenas o INPC é utilizado para a correção do valor.
O conselheiro do Conselho Regional de Economia (Corecon-CE), Ricardo Eleutério, lembra que o INPC fazia a reposição da inflação e a variação do PIB gerava ganho real no salário, minimizando a perda do poder de compra gerada pela alta nos preços.
“Essa política foi abandonada, sendo retirada a variação do PIB. Ficou só a correção pelo INPC. Então temos o conjunto: algumas explosões de preços decorrentes de crises externas que vão produzindo impactos nos preços e reajustes salariais que não acompanham a inflação real, deteriorando o poder de compra”, detalha o economista.
População mais pobre
Ele lembra que esse tipo de política impacta fortemente os mais pobres. Isso porque eles são os que mais sofrem com a alta de itens como alimentação, transporte e habitação. “Esses itens, quando são muito impactados pela inflação, judiam de quem tem renda menor”, diz.
O supervisor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Reginaldo Aguiar, corrobora que o impacto é mais forte para quem ganha menos quando os alimentos ficam mais caros.
“O alimento pesa muito mais para baixa renda. Quem ganha um salário mínimo gasta 40% com alimentação. A pessoa que ganha 10 mil, não. Proporcionalmente, o impacto é maior”.
“Na hora que o salário mínimo para de crescer, você começa a dificultar mais a renda. Além disso, você vai vendo que a partir dessa data a participação dos salários no PIB, que vinha crescendo muito puxada pela política do salário mínimo, começa a cair”, destaca Reginaldo Aguiar.
Ceará e Nordeste mais penalizados
Os economistas também reforçam que a mudança na política penaliza ainda mais as regiões mais pobres. “Em Fortaleza, considerando uma série de cinco a dez anos, em muitos deles figura entre as maiores inflações do Brasil. Como a renda per capita do cearense não é elevada, a inflação maltrata mais”, lamenta Eleutério.
Aguiar lembra que, com a política, o salário mínimo não repõe a inflação em alguns anos. O piso de 2022, por exemplo, foi reajustado em 10,02%, enquanto o INPC registrou alta de 10,16%. Em 2021, o cenário foi semelhante.
“Tem momentos que o piso de referência do País não consegue sequer repor a inflação... isso penaliza principalmente uma região pobre como o Nordeste e o Ceará, que tem um dos piores rendimentos do Brasil”, ressalta Reginaldo Aguiar.
Supermercados e atacarejos
Um dos itens com importante contribuição para a disparada dos índices de inflação em 2022, o leite integral ronda os R$ 7 nos supermercados de Fortaleza. Há oito anos, porém, o produto podia ser encontrado a R$ 1,99, como mostra um dos encartes promocionais de um estabelecimento de Fortaleza analisados pela reportagem.
Reginaldo lembra que, em 2019, outros fatores prejudicam ainda mais o poder de compra. "No fim de 2019, o preço da carne já disparou e na sequência foi o arroz, item que não tinha um preço tão elevado". Ele avalia que isso "alarmou porque a carne é o item que mais pesa na cesta de alimentos".
Com isso, Reginaldo lembra que a população foi começando a optar por outras proteínas. Posteriormente, veio a pandemia. "Aí veio o caos total. Alimentos disparam e a carne dispara mais que os outros. Óleo de soja, arroz também foram para patamares extremamente altos".
"No conjunto da obra, a inflação desses alimentos ficou o dobro da inflação dos alimentos em geral. Isso subiu um alerta maior ainda em relação ao impacto para quem ganha menos", explica Aguiar.
Com isso, ele avalia que a população teve que fazer novas escolhas de proteínas. "As pessoas foram saindo da carne de primeira para a carne de segunda qualidade. Depois foram para a carne de porco, frango, ovo".
"E depois vimos um outro movimento mais perverso: as pessoas passaram a consumir partes que antes não eram consumidas, como a pele, os ossos, carnes de terceira. O osso, que era jogado fora, passou a ser vendido", lamenta o economista.
O supervisor técnico do Dieese frisa que, além do consumo de ossos e peles, as pessoas começaram a pular refeições. "Mais recentemente as pessoas começaram a pular refeições. Começam a chegar notícias do que chamamos de face oculta da fome. As pessoas na condição de pedinte contam com a solidariedade dos outros, mas tem aquela pessoa que está passando fome em casa, que você não vê o que está acontecendo", diz.
Política interna poderia ter ajudado a segurar preços
Um olhar mais assertivo do Governo Federal em relação aos estoques públicos de alimentos poderia ter ajudado a segurar os preços dos alimentos, na avaliação de Reginaldo Aguiar.
"O Conselho de Segurança Alimentar foi desfeito. Estoques reguladores do Conab (Conselho Nacional de Abastecimento) foram a zero com a interrupção da política de compra", reforça o economista. "Com a demanda internacional em alta e a desvalorização cambial, o exportador prefere vender para fora".