'Meu salário vai melhorar quando eu voltar a estudar': como retrocesso na educação ameaça a economia

Nesta série, o Diário do Nordeste mostra como a economia recebe a crise na educação e os caminhos para reduzir os danos da pandemia

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Jovem sentada na calçada
Legenda: Raquel teve de enfrentar as dificuldades financeiras, violência urbana e a depressão para tentar continuar os estudos
Foto: Fabiane de Paula / SVM

O Brasil vivencia retrocessos de, pelo menos, uma década em diversas áreas. No âmbito socioeconômico, vê-se a volta da fome e da pobreza extrema, crianças sem vagas em algumas escolas públicas brasileiras e a evasão escolar ainda na educação básica.

Atrasos de significação econômica para o futuro do mercado de trabalho e para o aprofundamento da desigualdade de renda. 

Nesta série de duas reportagens que inicia hoje (23), o Diário do Nordeste ouve economistas que esquadrinham a relação entre o mercado e a educação para analisar o cenário e projetar as consequências da falta de investimentos nesta área para a economia moderna.

Também há histórias que permitem pintar além dos números os retratos daqueles que precisam desafiar, diariamente, desigualdades sociais, violência urbana e a herança do analfabetismo para avistar no aprendizado a fresta para "mudar de vida".

Relatos de quem teima estudar, e dos que sucumbiram à realidade, apesar de ainda haver esperança. 

O cansaço da travessia de diversas fronteiras em busca de formação 

Personagem sentada
Legenda: Raquel sonha em concluir os estudos para ter sucesso na carreira
Foto: Fabiane de Paula / SVM

A trajetória da fotógrafa Raquel Vieira, de 21 anos, traz a lição de como a educação pode implicar na redução da renda. Ela estudou até o 1º ano do Ensino Médio. Parou em 2019. Fora do mercado de trabalho formal, a jovem tem rendimento inferior a um salário mínimo. 

Mas chegar neste nível de escolaridade foi extenuante. Foram várias as reprovações por faltas para trabalhar. Em alguns dias, também teve a impossibilidade de sair de casa em razão da disputa pelo território do tráfico de drogas onde mora, no Bairro Bom Jardim, em Fortaleza. 

“Eu sempre fui boa em todas as matérias, mas faltava mesmo era presença”, lembra. “Além do trabalho, tinha a violência. A galera que mora na periferia passa uma realidade tiroteio, medo de morrer porque está passando de um território para o outro”, explica. 

Legenda: Se nada for feito, no curto prazo, os jovens estarão menos qualificados para o mercado, sobretudo, os mais pobres
Foto: Fabiane de Paula / SVM

Pouco antes da pandemia, em 2020, ela tentou voltar para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Mas o que já era difícil, ficou ainda pior com as aulas online: o cansaço e a falta de recursos. Foram percursos, cada vez mais, longos.  

Somado a isso, ela também enfrentou a depressão no início do isolamento social. “Mexe muito com a cabeça. O estresse foi causando ansiedade, depressão e parou tudo”, narra. Mesmo diante das dificuldades, Raquel sonha com o retorno.

“Eu tenho certeza de que meu salário vai melhorar quando eu voltar a estudar. Quando eu tiver o Ensino Médio completo, empresas já vão querer me contratar. E eu também quero fazer faculdade de audiovisual porque o estudo valoriza a carreira”, reflete.

“Mas essa parte está muito difícil para mim. Se eu não estudo, perco vários empregos, como já perdi”, relata. 

"Nós, jovens, estamos vivendo um momento em que precisamos abandonar a escola para trabalhar e conseguir sobreviver, se criar na vida adulta. Mas eu vou, sim, terminar meus estudos para o poder trabalhar de carteira assinada, se Deus quiser, e com a renda maior, seja de um salário mínimo, dois ou mais”, planeja. 

São estudantes como a Raquel que precisam de políticas educacionais contra a evasão para se tornarem profissionais aptas para uma disputa igualitária no mercado de trabalho. 

Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, o Bom Jardim está entre os 10 bairros de Fortaleza com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com 0,19. O indicador vai de 0 a 1, quanto menor, pior o cenário. 

Veja os 10 menores IDHs de Fortaleza:

  1. Aeroporto (Base Aérea): 0,176845246
  2. Dendê: 0,181127137
  3. Autran Nunes: 0,182120826
  4. Barroso: 0,186868904
  5. Curió: 0,188162399
  6. Granja Portugal: 0,190184768
  7. Bom Jardim: 0,19488696
  8. São Bento: 0,198287378
  9. Ancuri: 0,204302295
  10. Barra do Ceará: 0,21570787

Prejuízos na aprendizagem podem gerar perda de US$ 1,7 trilhão

Um estudo do Banco Mundial aponta que o fechamento das escolas, ainda no início da pandemia, pode fazer com que cerca de dois em cada três alunos não consigam ler ou entender textos adequados para a sua idade, na América Latina e no Caribe. 

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Essa pobreza de aprendizagem é medida pela quantidade de crianças com 10 anos com dificuldades para leitura. Na economia, esses números serão traduzidos em um declínio no potencial de ganhos agregados para a região de US$1,7 trilhão, cerca de 10% das receitas totais da linha de base.

A estimativa consta no relatório “Agir agora para proteger o capital humano de nossas crianças: os custos e a Resposta ao Impacto da pandemia da Covid no Setor de Educação na América Latina e no Caribe”.

O economista sênior do Banco Mundial, Leandro Costa, analisa que o fechamento das escolas e a exclusão digital ocasionaram o aumento da evasão escolar e a perda de aprendizagem. Com isso, tanto a produtividade brasileira quanto os custos em outras áreas são impactados.

“Sem educação, normalmente, mulheres podem engravidar mais cedo, atrasando a entrada no mercado de trabalho. Sem educação, as pessoas se cuidam menos em relação à saúde e geram maior custo para sociedade”, lista, acrescentando que uma série de fatores melhoram a situação econômica. 

“Um país com nível educacional mais elevado, tem custos mais baixos e, também, uma população mais produtiva, pensando no longo prazo. Já no curto prazo, o abandono desses jovens também pode deixar a Educação mais cara, exigindo depois a criação de uma sala de aula específica para a recuperar as perdas desses alunos”, observa.

Dentre outros fatores, investir em Educação ocasiona a redução do índice de criminalidade (menos gasto com segurança pública) e a dependência de programas de assistência social.

Como o retrocesso na educação pode impactar o crescimento da economia 

Sala de aula vazia
Foto: Marília Camelo / SVM

A evasão escolar entre crianças de 5 a 9 anos subiu de 1,41% para 5,51% na comparação dos últimos trimestres de 2019 e 2020. Segundo o estudo “Retorno para escola, jornada e pandemia”, divulgado pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social), a taxa reproduz níveis de 14 anos atrás. 

Ou seja, há mais de uma década não se contabilizava significativo índice para essa faixa etária, sendo mais recorrente para estudantes do Ensino Médio. Essa etapa da alfabetização é crucial para formação e aprendizado dos alunos.

Já no terceiro trimestre de 2021, a taxa de evasão volta a 4,25%, cerca de 128% mais alta que o observado em igual período de 2019. No Ceará, estado com o sexto menor índice, o percentual ainda foi de 3,06%. 

Além dos efeitos microeconômicos, como isso afeta toda a sociedade? Em curto prazo, os jovens estarão menos qualificados, sobretudo, os mais pobres, como a Raquel, citada no início desta reportagem. 

Assim, meninas e meninos que hoje estão mais distante dos portões da escola e não conseguirem retornar, no futuro, poderão encontrar as portas do mercado de trabalho fechadas ou enfrentar dificuldades para uma inserção mais produtiva.

Isso significa que o desemprego e a desigualdade de renda podem subir. Fatores que deverão espelhar no Produto Interno Bruto (PIB) das próximas décadas — se nada for feito para reverter esse cenário. 

Criança vendendo balas
Legenda: Os números reafirmam o que se percebe, cada vez mais, nas ruas: longe da escola, crianças pobres pedem esmolas ou vendem balas em sinais
Foto: Fabiane de Paula / SVM

O analista de Política Pública do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), Alexsandre Lira Cavalcante, explica que, quanto maior o nível de escolaridade de um profissional, mais ele produz e gera eficiência econômica. 

“Na função de produção, há o capital físico (máquinas e equipamento) e o humano. A qualificação afeta de forma positiva quanto a economia irá produzir. Ou seja, melhorando aspectos educacionais de um estado e de um País, você consegue incrementar o PIB”, diz. 

 

Desigualdade de renda pode ser ainda maior 

A doutora em Economia, pesquisadora e co-fundadora do Laboratório de Análise de Dados e Economia da Educação (EducLab) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Alessandra de Araújo Benevides, reitera que uma formação deficitária reflete na renda per capita. 

 

“Cada ciclo de estudo que se conclui, pode ser calculado sobre o salário do trabalhador. A tendência é que a pessoa mais escolarizada seja mais produtiva. Isso quer dizer que a sua hora trabalhada produz mais do que uma de quem tenha nível de escolaridade menor e, por isso, ganha-se mais”, explica.

Portanto, acrescenta, fornecer uma educação com qualidade equaliza a questão da desigualdade em longo prazo. Complexa e estrutural, as assimetrias socioeconômicas do Brasil são herança do período colonial, escravista e de uma cultura patriarcal.

Nesse contexto, a Educação é uma das saídas para enfrentar as desigualdades econômica, racial, regional e de gênero.

Em resumo, viabilizar educação de boa qualidade gera condições para uma competição mais justa no mercado de trabalho, salários melhores a pessoas sem privilégios e aumenta a produtividade que puxa o crescimento do PIB. 

 

O que pode ser feito para evitar a evasão escolar, segundo o Banco Mundial:

  • Bolsas para aluno: incentivos econômicos para alunos retornarem e permanecerem na escola
  • Cestas básicas condicionadas ao retorno: fazer com que as famílias vejam no retorno dos filhos às atividades como fonte de alívio
  • Sistemas de alerta preventivo: tais sistemas de alertam diretores sobre alunos com alto risco de evasão (abandono ou de repetência) antes que ocorra de fato. Pode-se implementar modelos usando papel ou até inteligência artificial 
  • Fortalecimento ou criação de Busca Ativa: quando a evasão/abandono acontece, uma equipe de busca é acionada.

Qual a fisionomia do mercado de trabalho no Ceará

Em 2020, primeiro ano de pandemia, o mercado de trabalho cearense era composto por 3,1 milhões de pessoas de 14 anos ou mais de idade residentes ocupadas.

Deste total, a maioria ocupada era do gênero masculino, sendo 59,4% homens e 40,6% de mulheres. Os autodeclarados pardos representavam 66,6% desta população, enquanto brancos correspondiam a 26,6%.

Já os negros eram minoria do mercado com aproximadamente 6% da população analisada.

Quanto à idade, a população da faixa etária entre 18 e 39 anos compunha fatia de 54,8%, enquanto 44,6% representavam aqueles que possuíam 40 anos ou mais de idade. 

Os dados constam no estudo "Análise da desigualdade dos rendimentos no estado do Ceará entre 2012 e 2020", realizado pelo Ipece, com as estatísticas da PNADContínua. 

Série 

Amanhã (24), você vai conhecer a história de uma mãe que estudou até a 5ª série, sonha em voltar para a escola, mas, por enquanto, comemora o ingresso do filho em uma universidade. Também vai entender como funcionam as verbas para a Educação e o que tem sido feito para reverter a crise no Brasil e no Ceará.

 

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.
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