'A logística é a grande questão': como o CE está se preparando para o transporte de hidrogênio verde

A logística de hidrogênio verde envolve questões ecológicas, econômicas, ambientais e retorno de investimentos

Escrito por Samuel Quintela , samuel.quintela@svm.com.br
Legenda: Empresas já demonstraram interesse de se instalarem no Complexo Industrial e Portuário do Pecém
Foto: Fabiane de Paula

Sendo um dos pontos mais importantes para o desenvolvimento de setor ainda insurgente, a logística, responsável também pela administração do processo de escalonamento, deverá ser fundamental para a consolidação do novo hub de hidrogênio verde no Ceará.

Nesta reportagem, especialistas discutem a relevância desses arranjos entre iniciativa privada, academia e Poder Público para gerar soluções viáveis a um novo segmento econômico, que precisará de acertos constantes e precisos para garantir uma evolução sustentável.  

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O primeiro ponto relevante para entender o processo de crescimento potencial do setor de hidrogêncio verde é que boa parte das 19 empresas já acordadas com o Governo do Estado para se instalar no Ceará, deverão focar na produção para exportação.

Essa disposição no modelo de negócios já cria a necessidade de se pensar soluções rentáveis para escoar e transportar o gás gerado pelas novas usinas, segundo Jurandir Picanço, consultor em energia da Federação das Indústrias do Ceará (Fiec) e presidente da Câmara Setorial das Energias Renováveis.

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Inicialmente, a primeira opção buscada transformar o hidrogênio em moléculas de amônia, facilitando o transporte do material, mas gerando uma grande perda energética nos processos de transformação e retorno à condição original.

O modelo foi escolhido a partir das demandas de um dos primeiros interessados no mercado, que é o governo da Alemanha. O país europeu já está preparando uma concorrência para compra de hidrogênio verde com foco no abastecimento próprio e apontou três substâncias como base: amônia, querosene e metanol.

"A produção de hidrogênio verde no Ceará está sendo direcionada para exportação, mas no futuro devemos ter vários usos, na indústria, por exemplo, e esse hidrogênio vai ser descentralizado, mas, hoje, o foco é exportação. E o que está se programando, é fazer o transporte por meio de amônia, até porque ao comprimir você transporta muito pouco, e ele liquefeito é uma tecnologia muito cara ainda", explicou Picanço.

Além da definição da primeira forma de exportação, as empresas já definiram como escoar esse novo combustível, utilizando o modal marítimo. Pensando nisso, todas as empresas já indicaram interesse de se instalar no Complexo do Pecém, onde fica o Porto do Pecém e a Zona de Processamento de Exportação (ZPE) do Ceará.

Apesar da estruturação inicial, alguns investimentos, focados no nível da demanda, ainda deverão ser feitos em estruturas portuárias e nos navios para que haja uma adaptação ao transporte do hidrogênio, independente da forma que estiver armazenado.

Legenda: Além da instalação de plantas de hidrogênio verde no Ceará, Estado já pensa no transporte do produto
Foto: ShutterStock

Logística e escalonamento

A principal questão para a evolução do hidrogênio verde, segundo Mônica Saraiva Panik, será a adaptação das questões logísticas para dar escala às tecnologias e processos que já existem atualmente, como a eletrólise (usada na geração do gás) e o armazenamento em forma a partir da compressão.

A diretora de relações institucionais da Brazilian Hydrogen Association, explicou que quase todos os conceitos usados na produção de hidrogênio verde já existe, sendo bastante conhecidos.

Contudo, a iniciativa empresarial precisa encontrar, ainda, as formas mais viáveis para crescer gradativamente aliada à demanda. Mônica afirmou que não há formas sustentáveis de produzir e transportar hidrogênio em larga escala, considerando as expectativas para o mercado global.

Navios já conseguem transportar hidrogênio comprimido, mas não em abundância, assim como a tecnologia de liquefação de gases já é uma realidade, ainda que seja muito cara para o hidrogênio.

A própria eletrólise, usada para produzir o combustível verde, é discutida e usada em universidades pelo mundo, além de algumas empresas.

"A logística de transporte é a parte mais fácil que temos hoje. Isso é 7% do custo do hidrogênio verde, então ela será resolvida de uma forma ou de outra. Discutiram tanto como vão transportar no leilão da Alemanha, que já definiram como vão transportar. Eles já resolveram o problema da logística, até porque amônia já é transportada em navios. Metanol e querosene idem, e já há um regulatório, então não precisamos inventar a roda", explicou Mônica.

"O grande desafio é a escala. Hoje, a demanda por hidrogênio é 80 milhões de toneladas ao ano, mas vai passar a 800 milhões de toneladas por ano. Temos de escalonar todas as plantas, os eletrolisadores, e tudo isso de forma economicamente viável porque o mundo inteiro vai entrar nesse mercado. E os compradores vão buscar o hidrogênio mais barato, sendo qualquer errinho de cálculo em grande escala, é um aumento de custo muito alto", completou.

Fornecimento de energia

Outro ponto ainda precisando de resolução, não necessariamente pela iniciativa privada, é a demanda energética para as usinas de hidrogênio verde que ainda serão instaladas.

Mônica Saraiva explicou que, como os investimentos deverão começar em pequenas escalas e evoluir a partir da demanda, há tempo para que as empresas de geração de energia renováveis (solar e eólica, principalmente) se consolidem ao longo dos anos.

Para se ter uma ideia, uma das plantas de hidrogênio prevê uma potência, no momento de pico, de 6 gigawatts (GW), valor mais de 2 vezes superior ao total pelo produzido em todo o Ceará (cerca de 2,5 GW de energias limpas).

Essa nova demanda pode ser responsável por criar um enorme potencial de incentivo ao empreendedorismo no setor, com empresas sendo criadas apenas para abastecer a demanda das produtoras de hidrogênio verde, segundo a diretora Brazilian Hydrogen Association.

A demanda gera tudo. A necessidade de produzir hidrogênio pode solucionar a questão da água e de fornecimento de energia renovável em algumas regiões. Então, tudo que se refere a esses pontos, vai ter investimentos. Não é só a fábrica, é também a infraestrutura, nos insumos e isso tudo é positivo para o Estado".
Mônica Saraiva
Diretora de relações institucionais da Brazilian Hydrogen Association

"Algumas regiões poderão ter acesso à água e energia independente dos governos. O hidrogênio poderá ajudar a promover o desenvolvimento social e econômico de regiões e de algumas empresas", completou.

Falta de linhas de transmissão

Apesar da perspectiva positiva para impulsão do mercado de energias renováveis, o Ceará ainda precisa resolver um problema antigo no setor, para suporte à produção de hidrogênio verde: o baixo número de linhas de transmissão.

Jurandir Picanço destacou que há muitas regiões no Estado com alto potencial de produção de energia solar, por exemplo, mas sem infraestrutura elétrica suficiente para escoar a potência gerada, o que pode ser um problema para o atendimento da demanda das usinas de hidrogênio.

Além disso, com um aumento tão grande da demanda por energia, o sistema atual de transmissão de energia também precisaria ser melhorado, para garantir a logística de produção do hidrogênio. Para tentar solucionar essas questões, membros do comitê de energia da Fiec e do Governo do Estado têm negociado diretamente com o Ministério de Minas e Energia alguns investimentos futuros.

"Quando esses leilões de energia são feitos, as ofertas de projetos são muito maiores que a demanda, então na produção de energia temos uma rotina que não preocupa, mas a transmissão é um problema, que é trazer linhas de transmissão para atender essa demanda elevada que está sendo criada. Mas como esses investimentos estão sendo anunciados de forma gradativa, isso pode acabar sendo mais tranquilo se os investimentos acontecerem", comentou Picanço.

Logística da água e impactos ambientais

Como se os desafios não fossem pequenos até aqui, o novo hub de hidrogênio ainda precisa resolver, de maneira sustentável, como atender a alta demanda por água inerente ao processo da eletrólise e todos os impactos ambientais que poderão ser causados pelo despejo sem planejamento.

Os alertas foram feitos pelo professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e coordenador do Laboratório de Energias Renováveis (LER), Lutero Carmo de Lima, considerado o "pai do hidrogênio verde no Ceará".

Para produzir hidrogênio tem que usar muita água do mar, mas tem de dessalinizar, e vamos jogar muito sal nas águas cearense, só que isso vai mudar muito a vida animal e pode mudar muitos padrões marinhos, matando várias espécies e atraindo alguns tipos de predadores, e isso precisa ser pensado por todo mundo que estiver envolvido nesse novo setor de hidrogênio, desde empresários a Poder Público".
Lutero Carmo de Lima
Professor da Uece e coordenador do Laboratório de Energias Renováveis (LER

"Outro ponto é que vamos produzir muito hidrogênio para o mundo, mas o eletrolisador vai gerar muitos resíduos de metal pesado, que são um risco grande se despejados de forma errada, então temos de criar um modelo em que as empresas também pensem nisso tudo, só que a gente sabe que isso gera custos. E qual o empresário que vai por em risco a operação por conta de custos logísticos com impactos ambientais, sendo que a maioria das empresas é de fora do país?", completou o professor.

Solucionando todas essas complexas variáveis, Lutero Carmo destacou que o Ceará pode atingir um patamar único na economia global dentro do setor de hidrogênio verde. Contudo, a cada ponto de inflexão pode gerar problemas para o desenvolvimento do hidrogênio verde no Estado.

"O problema maior é a escala, só que temos um jogo de xadrez pela frente. Temos várias empresas trabalhando com eletrolisadores, e tive contato com uma empresa no Canadá que produz desde 1916, mas temos de ver a eficiência, tempo de vida, e o problema é selecionar o melhor produto para funcionar aqui, e aí que entra a Universidade", disse.

Temos de atingir o melhor cenário ecológico, econômico, ambiental, retorno de investimento. Fazer eletrólise numa sala de aula é uma coisa, mas fazer isso com 1 milhão de metros cúbicos de água, é outra, até para não perder nenhum recurso. A logística é a grande questão, pois envolve tudo isso".
Lutero Carmo de Lima
Professor da Uece e coordenador do Laboratório de Energias Renováveis (LER)

Investimentos no Porto do Pecém

Para tentar se adiantar às mudanças que poderão ser geradas por esse mercado, o Porto do Pecém já começou a montar um plano de investimentos, negociados juntamente com as empresas do setor, para facilitar as operações nos próximos anos. Os procedimentos estão sendo estudados em conjunto, também, com a administração do Porto de Roterdã.

Segundo Mônica Saraiva Panik, o complexo portuário em São Gonçalo já sinalizou para a construção de um terminal de amônia para armazenar os primeiros insumos para exportação à Europa, focando nos primeiros leilões de compra pelo governo da Alemanha.

A perspectiva de construção de um tanque de armazenamento de hidrogênio verde e amônia foi confirmado pelo presidente do Complexo do Pecém, Danilo Serpa, destacando um acordo de entendimento com uma empresa privada para instalação do equipamento, que deverá ser compartilhado pelas produtoras do novo combustível. 

“Em local intermediário teremos a instalação de um terminal de tancagem para hidrogênio verde e amônia verde, o qual poderá ser compartilhado entre as empresas produtoras. Em relação a operação portuária, temos um Memorando de Entendimento com uma empresa multinacional que é uma das maiores empresas do mundo em operação e transporte de combustíveis e gases”, disse Danilo. 

Além disso, Serpa comentou sobre as mudanças que foram planejadas na infraestrutura portuária para dar mais eficiência para o escoamento e transporte da produção de hidrogênio no Ceará.

Após estudos de viabilidade pensados para os novos negócios, focando na evolução do mercado nos próximos anos, a administração do Porto também reestruturou partes do plano diretor para estabelecer corredores de transporte e formas de garantir o fornecimento de água e energia paras as plantas de hidrogênio verde. 

“O Plano Diretor da Companhia foi revisado recentemente, após a concepção do Hub do Hidrogênio Verde, para conciliar todos os interesses e necessidades, considerando o cenário atual e perspectivas de expansões dos empreendimentos produtores. O desenho dos corredores de transporte, os serviços de utilidade planejados e a capacidade de armazenamento de tanques portuários consideram o crescimento de volume de longo prazo de nossos clientes”, explicou.

Conexões com a Europa 

Outro ponto de suporte para o desenvolvimento do hub de hidrogênio verde, de acordo com Danilo Serpa, é a parceria com o Porto de Roterdã, que já definiu a meta de se transformar no principal fornecedor de combustível para a Europa. Esse cenário poderá impulsionar os investimentos no Estado a partir do fortalecimento da cadeia de exportação. 

“Diferentes empresas internacionais estão atualmente desenvolvendo tecnologias e métodos para transporte eficiente e manuseio de hidrogênio verde. A tecnologia utilizada e os tamanhos dos navios se tornarão importantes e tanto os portos de exportação quanto os de recebimento precisam considerar esses fatores”, disse Serpa.

“Não podemos esquecer que o Porto de Roterdã pretende se tornar o principal importador do hidrogênio e amônia verde produzida em todo o mundo para distribuição na Europa e claro, a parceria societária com Pecém, acelera a conexão desses dois polos: exportação e importação”, completou.

 

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