Parteiras tradicionais e sistema de saúde: desafios e diferenças entre elas e outros profissionais

Novo patrimônio imaterial do País, o “Ofício, Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil” será inscrito no Livro de Registro dos Saberes do Iphan

Escrito por Gabriela Custódio , gabriela.custodio@svm.com.br
Parto domiciliar assistido por parteira tradicional
Legenda: Mais do que prestar assistência a partos domiciliares, o ofício das parteiras tradicionais inclui “noções especiais de cuidado e de saúde”
Foto: Gabriela da Terra/Divulgação

Mais de 4 mil crianças nasceram pelas mãos de parteiras no Ceará entre 2013 e 2023, com média de 367 a cada ano. Tanto no Interior quanto na Capital, esses nascimentos ocorreram em todas as regiões do Estado, com destaque para o Cariri — responsável por aproximadamente 1 em cada 3 partos assistidos por essas mulheres.

A atuação delas, porém, tem reduzido ano após ano na última década. Em 2014 elas apararam 668 bebês, representando 0,52% de todos os partos realizados no Ceará. Esse número chegou a 136 em 2022 — ano mais recente com dados consolidados — e passou a representar 0,12% do total.

Em 2023, dados preliminares apontam 95 nascimentos acompanhados por parteiras em meio a mais de 111 mil partos (menos de 0,1%). As informações são do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), do Ministério da Saúde, mas esses números podem estar subnotificados.

No dia 9 de maio, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu o ofício, os saberes e as práticas das parteiras tradicionais do Brasil como Patrimônio Cultural do País. Com a aprovação unânime na 104ª Reunião do Conselho Consultivo, o novo patrimônio será inscrito no Livro de Registro dos Saberes, que reúne bens culturais imateriais.

IMPACTOS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO

Essa redução mostrada pelos registros oficiais reflete o distanciamento que ocorreu entre as parteiras e as comunidades com a medicalização do parto. Segundo Thatiane Terra, parteira tradicional do Ceará, os efeitos foram diversos. Há locais em que essas mulheres deixaram o ofício. Em outros, elas foram incorporadas ao sistema de saúde.  

Antes, a assistência de saúde da mulher nas comunidades era [feita por] mulheres mais velhas, que já conheciam o parto pela própria experiência, estavam a serviço da comunidade e de alguma forma tinham saberes da medicina natural a seu dispor, que já recebiam de herança de suas avós. Com o tempo, com o hospital chegando nas comunidades, essas parteiras em alguns lugares foram se distanciando desse serviço.
Thatiane Terra
Parteira tradicional

Mais do que prestar assistência a partos domiciliares, o ofício das parteiras tradicionais inclui “noções especiais de cuidado e de saúde”, aponta o Iphan em dossiê referente à pesquisa dos saberes e práticas dessas mulheres.

“O atendimento integral, ofertado a gestantes e à comunidade, cobre quatro importantes dimensões: processos terapêuticos fitoterápicos, prescrições alimentares preventivas e curativas, mediação religiosas e regimes de conduta social”, explica o documento.

Muitas das mulheres mais experientes, porém, já não atuam mais — seja porque estão impossibilidades devido à idade ou a questões de saúde, seja porque não são mais chamadas para acompanhar trabalhos de parto. Mas elas ainda existem e são diversas, defende Samara Simões, parteira tradicional que atua no Cariri.

Nós, parteiras, seguimos resistindo e mostrando para o mundo que o parto é um evento da saúde, mas também é cultural, familiar, que demonstra como uma sociedade chega a esse planeta, como a gente recebe as pessoas que estão chegando.
Samara Simões
Parteira tradicional e gestora e criadora do Roda Semear e do coletivo Luz de Candeia

A psicóloga e doula aprendiz Rebecca Pinheiro Sedrim, dedica-se, no mestrado, a estudar o trabalho dessas mulheres no Cariri. Com base na obra da filósofa Silvia Federici e em afirmação do Iphan de que parteiras são “agentes da decolonialidade ocupando um lugar contra-hegemônico na assistência ao parto”, ela relaciona a resistência dessas mestras às atualizações da “caça às bruxas”.

Ela destaca o comadrio como “reconhecimento intrínseco” na comunidade, desde o início da relação entre a parteira e a família. “Não necessariamente o bebê precisa nascer em casa, pode precisar de um desfecho hospitalar, mas é estabelecido ali que essa parteira ela se torna comadre. Isso demarca um laço, uma conexão”, afirma.

Mas Thatiane aponta a necessidade de esse trabalho também ser valorizado em outras esferas, como por meio de salários e aposentadoria. "Conheço parteiras do Interior que não têm dinheiro para comprar o gás do mês. Elas são as mulheres que serviram toda uma comunidades, quase todas as pessoas nasceram daquela comunidade pelas mãos dela", relata.

Roda de gestantes
Legenda: Roda de Gestantes, evento gratuito realizado mensalmente no Roda Semear, em Juazeiro do Norte. O encontro é guiado pela Luz de Candeia, coletivo de parto em que a parteira tradicional Samara Simões trabalho
Foto: Malu Barleta/Divulgação

DIFERENTES ASSISTÊNCIAS AO PARTO

Durante a primeira gestação, Thatiane buscou inicialmente uma doula e outros profissionais ligados à humanização do parto antes de procurar uma parteira, mas não se identificou. Da mesma forma, outras mulheres podem não se conectar com a parteria tradicional.

“Muitas vezes, elas podem sentir que não se comunicam muito, porque não é esse tipo de assistência que elas queriam, era outro tipo, uma assistência mais medicalizada, dentro de uma linha mais médico-hospitalar”, diz.

Tanto para a mulher buscar o profissional adequado às próprias necessidades quanto para reconhecer a atuação de cada um deles, é importante demarcar as diferentes funções na assistência ao parto.

“O intuito de quem trabalha pesquisando a parteria tradicional e das parteiras é horizontalizar essas profissões, ter espaço para todo mundo. As parteiras não têm o intuito de trabalhar contra [outraos profissionais], elas só não querem que trabalhem contra elas também”, defende Rebecca, destacando que o objetivo não é forçar um parto domiciliar, mas que esse seja um momento para a família.

A cartilha “As doulas e o cenário obstétrico no Brasil” traz as seguintes definições:

  • Doula: Dá apoio físico e emocional para a parturiente, sem fazer procedimentos técnicos, como exame de toque, ausculta do bebê ou prescrição de medicamentos. Estão presentes exclusivamente para cuidar do bem-estar da mulher que está parindo;
  • Parteira tradicional: São mulheres que aprenderam a acompanhar partos na prática cotidiana, auxiliando, por exemplo, parteiras mais experientes. Samara Simões ainda acrescenta a utilização de "ferramentas" naturais e de conhecimentos transmitidos por meio da oralidade entre gerações, além da influência da fé — independentemente da religião;
  • Enfermeira/o obstetra: Profissional da enfermagem com especialização em atender gestantes durante o pré-natal e parto. Podem atender partos normais de baixo risco, atuando em partos domiciliares e hospitalares, mas não podem realizar cesáreas;
  • Obstetriz: Responsável pelos partos de baixo risco, tanto domiciliares quanto em hospitais ou casas de parto. A Universidade de São Paulo (USP) é a única faculdade do Brasil que oferece essa formação;
  • Médica/o neonatologista: Pediatras que se especializam em Neonatologia atendem os bebês assim que eles nascem. São responsáveis por avaliar o recém-nascido, fazer os primeiros exames, medir, pesar e, quando necessário, aspirar o bebê;
  • Médica/o obstetra: Médico com especialização em Ginecologia e Obstetrícia. Atuam tanto em partos normais como em cesáreas e cuidam da gestante durante todo o pré-natal.

DESAFIOS E PROTOCOLOS

As mulheres ouvidas pelo Diário do Nordeste relataram a dificuldade para acesso à Declaração de Nascido Vivo (DNV) como um desafio à prática do ofício. Esse documento, necessário para o registro dos recém-nascidos, deve ser preenchido por profissionais de saúde ou parteiras tradicionais e recolhido regularmente pelas Secretarias Municipais de Saúde.

Esse empecilho também é citado no dossiê do Iphan. “[Com] o fato de não serem elas na grande maioria das vezes a preencherem o documento, o nascimento é registrado como ocorrido em outro local que não o domicílio, muitas vezes como se tivesse ocorrido em estabelecimento de saúde e realizado por outro profissional”, elenca o documento.

Com isso, pode haver uma distância entre os dados disponíveis no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos e a realidade.

A Portaria nº 116/2009 regulamenta a coleta de dados, fluxo e periodicidade de envio das informações sobre óbitos e nascidos vivos. Ela prevê o acesso de parteiras tradicionais reconhecidas e vinculadas a unidades de saúde ao formulário da declaração.

Parto com parteira tradicional
Legenda: Segundo documento o Iphan, o atendimento integral da parteira tradicional cobre quatro importantes dimensões: processos terapêuticos fitoterápicos, prescrições alimentares preventivas e curativas, mediação religiosas e regimes de conduta social
Foto: Hadna Alcântara/Divulgação

Lea Dias, assessora técnica da saúde da mulher da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS), explica que para receberem o documento, as parteiras tradicionais devem ser registradas no Conselho Regional de Enfermagem ou na unidade de saúde da cidade onde atuam, por meio do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).

“A partir do momento que eu dou acesso a essa declaração fora da maternidade, tenho que ter minimamente um controle e uma referência desse profissional”, afirma Lea Dias, destacando a importância dessa “formalidade”.

Thatiane pondera que muitas dessas mulheres, em todo o Brasil, atuam de forma itinerante para acompanhar as gestantes. "Em cada cidade [o acesso ao documento] funciona de um jeito diferente. [...] Ainda é muito bagunçado, nesse sentido. As parteiras ainda não têm um reconhecimento direto", argumenta.

Porém, ela reconhece que deve haver um cuidado por parte do sistema de saúde devido à responsabilidade demandada pelo ofício. "Não podemos ter pessoas sem prática verdadeira. Precisa mesmo de um certo cuidado para saber quem são essas parteiras que estão atuando. Nas comunidades menores ou nas aldeias é mais fácil identificar, porque são essas mulheres que já são conhecidas e reconhecidas."

Procurado pelo Diário do Nordeste, o Ministério da Saúde informou, por meio de assessoria de imprensa, que está em constante contato com os gestores estaduais e municípios para orientar sobre o correto preenchimento da declaração e diminuir as subnotificações.

A Pasta reforçou o compromisso em fortalecer, por meio de políticas e estratégias, o cuidado prestado por parteiras tradicionais no Brasil, “buscando a qualificação e integração das profissionais a todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

Entre programas e diretrizes voltados a essas mulheres, o Ministério elenca o Programa Nacional de Parteiras Tradicionais (PNPT), as Diretrizes Básicas de Assistência ao Parto Domiciliar, a Rede Cegonha, o Livro da Parteira e a Portaria nº 116/2009.

Além disso, considera o reconhecimento do Iphan “um marco fundamental” para o conjunto de ações que devem culminar na reparação histórica, valorização e promoção da atividade.

“Por fim, vale ressaltar que entre as ações em desenvolvimento para apoiar as parteiras tradicionais no SUS estão a qualificação adequada, integração ao Sistema e campanhas educativas para aumentar a conscientização da população sobre o serviço”, complementa.

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