Pacientes com doenças raras têm rotina de desafio e conquistas: 'realizei meu sonho de cadeira de rodas'
Dia Mundial das Doenças Raras é fixado em 29 de fevereiro para dar visibilidade e combater estigmas
Anderson, de 32 anos, soube-se “raro” aos 4. Myqueias, de 18, recebeu o diagnóstico aos 6. Helusa, hoje com 64, soube aos 60. Três gerações distintas de cearenses que fazem parte de estatísticas pouco habitadas: possuem doenças que afetam no máximo 65 a cada 100 mil pessoas.
Essa é a definição das chamadas doenças raras, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), patologias que pela ampla variedade de sintomas, sinais e manifestações, têm diagnósticos desafiadores – e são envoltas em diversos estigmas.
Neste 29 de fevereiro, Dia Mundial das Doenças Raras, o Diário do Nordeste conta as histórias de três cearenses raros que convivem não apenas com as próprias limitações físicas, mas com as dificuldades das redes de saúde e do próprio convívio social.
'Pensava que não conseguiria mais ser jogador de futebol'
Parte do destino de Myqueias Silva, 18, veio traçada no DNA: por uma alteração genética, o garoto se tornou o 6º da família a nascer com Distrofia Muscular de Duchenne (DMD), doença que causa um enfraquecimento muscular progressivo.
As pernas hipertrofiadas, as quedas frequentes e o histórico familiar facilitaram o diagnóstico, como relata a mãe, Luciana Silva, 38. “Meu irmão teve Duchenne e o médico disse que era ‘doença de criança’. Foi só com o meu filho que eu soube que era uma doença genética”, lembra.
Um dos maiores obstáculos para a família após o laudo veio quando Myqueias completou 11 anos e 6 meses de vida: as pernas não sustentavam mais o próprio corpo, e o garoto que sonhava em ser jogador de futebol parou de andar.
A situação impactou também a vida social, atravessada por preconceito e bullying pela condição de saúde. “Quando eu andava, o pessoal da escola botava o pé no meio pra eu cair, me empurrava, falava coisas. Com a cadeira de rodas, piorou.”
O esporte, então, foi divisor de águas. “Eu não sabia que tinha esporte pra mim. Pensava que não conseguiria mais ser jogador de futebol – mas na cadeira de rodas consegui realizar esse sonho”, orgulha-se o jovem.
Luciana relata que o primeiro esporte com que o filho teve contato foi a bocha adaptada, “mas não se identificou”. “A professora percebeu que ele não estava feliz e indicou um treinador de futebol em cadeira de rodas. Até aí, a gente nunca sabia na nossa vida que existia essa possibilidade”, comenta.
“Isso me incentivou a me dedicar ao esporte, ficar treinando, jogar. Fiquei muito alegre por ter surgido a oportunidade”, descreve Myqueias, que transformou o status de “retraído” em “comunicativo”.
Hoje, ele integra o elenco de Power Soccer (Futebol em Cadeira de Rodas) do Fortaleza, coleciona viagens para competições (inclusive internacionais) e se divide entre os treinos semanais, as sessões obrigatórias de fisioterapia e as aulas do 3º ano do ensino médio.
“Meu sonho é me formar na faculdade de Educação Física e ser treinador. Ou trabalhar no VAR (árbitro de vídeo).”
'Não vou parar, mas fazer como posso'
O esporte também foi mola propulsora para o cearense Anderson Silva, 32, conviver com uma doença hereditária cujo nome é extenso, mas a incidência é rara: o Raquitismo Hipofosfatêmico ligado ao Cromossomo X, diagnosticado quando ele tinha 4 anos de vida.
O distúrbio genético fragiliza os ossos dos braços, pernas e da coluna, “afetando corpo todo” e causando fortes dores – sensações que o levaram a deixar de lado a carreira de paratleta, iniciada aos 15 anos de idade.
“Fui campeão panamericano de halterofilismo (nos Jogos Parapan-Americanos de Jovens de Bogotá 2009), nacional também. Com o tempo, tive que deixar o esporte, em função da dor. Era atleta de alto rendimento, não tinha como”, relembra.
À época, o cearense morava em Uberlândia, em Minas Gerais (MG), e praticava ainda natação e basquete, além de “flertar com a música”. É nesta última, aliás, que ele concentra as energias e sonhos agora.
“Eu fico muito feliz por tudo o que já realizei e triste por não poder seguir. Mas sempre que posso tento continuar. Agora, tenho o sonho da música, de crescer nisso. É difícil, por causa das dores. Não vou parar, mas fazer de acordo com o que eu posso”, frisa.
Além da fisioterapia e do acompanhamento médico, Anderson preenche a rotina com a prática de musculação e com os ensaios para apresentações musicais em restaurante, “quando aparecem”. Fora isso, a doença rara não o permite trabalhar.
“A rotina é que a gente não pode deixar, tenta fazer o máximo possível pra tentar viver a vida mesmo com isso, mesmo com as dores e dificuldades".
Em casa, onde vive com a esposa por quem saiu de MG e voltou a morar no Ceará, Anderson divide o dia a dia de cuidados com a filha, Anna Laura, de 9 anos – também diagnosticada com o raquitismo que afeta o pai.
“Ela também faz acompanhamento e tratamento, recebe medicamento de forma judicial, mais avançado do que o que eu tomei. Ela está bem melhor que eu.”
'Usando a medicação, você vive normal'
Se para grande parte dos “raros” o laudo vem logo na infância, para a aposentada Helusa Nunes, 64, foi repentino. Ela teve o cotidiano transformado há menos de 3 anos, quando uma miopatia metabólica lipídica foi desencadeada após a idosa contrair Covid-19, em 2021.
A doença é genética, como ela explica, mas teve o coronavírus como “estopim”. “Minha vida até aí não tinha problema. Às vezes, quando fazia esforço maior, na academia ou alguma atividade mais intensa, eu sentia dores musculares fortes no dia seguinte. Mas passava. Eu trabalhava três expedientes”, relembra a ex-servidora municipal da Educação.
Os primeiros testes genéticos que identificaram a condição foram feitos no início de 2022, e desde então Helusa é acompanhada por médicos e nutricionistas para manter uma vida saudável e funcional.
Ainda é uma coisa nova. Não foi fácil. Imagine você mudar seu ritmo de vida pra se adequar a uma nova situação? No começo, tudo o que eu ia fazer perguntava aos médicos.
As dores causadas pela miopatia são amenizadas por uma medicação de alto custo, à base de triheptanoína, recebida da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) por meio de decisão judicial. A última remessa, porém, foi entregue a Helusa em junho de 2023.
“Na Associação (Cearense dos Portadores de Doenças Raras – ACPDR) conseguiram uma doação, que está terminando. Estou muito preocupada, porque a medicação me faz muito bem, me permite ter uma vida normal. Se ficar sem ela, como vai ficar minha vida?”, questiona a aposentada.
O acesso garantido e facilitado a medicações de alto custo é uma das principais demandas de pacientes com doenças raras no Ceará, segundo a ACPDR.
O presidente da entidade, Emanoel Nasareno, destaca que “mesmo os pacientes que recebem de forma recorrente sofrem com o desabastecimento, e fazer a interrupção do tratamento é pior do que iniciar tardio”.
Além de assistência jurídica aos raros, a associação oferta acolhimento e acompanhamento psicológico e de assistência social aos cerca de 400 pacientes vinculados, hoje. “
“Este dia 29, Dia Mundial das Doenças Raras, é importante para dar visibilidade a essas pessoas, que muitas vezes ficam excluídas à margem da sociedade – que precisa saber que elas existem. Que com a difusão da informação e da educação possa se conseguir uma melhora de vida pra eles”, reforça Emanoel.
Falta de medicamentos
O advogado Alexandre Costa, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Doenças Raras (CDRaros) da OAB Ceará, reitera que “a principal dificuldade enfrentada pelas pessoas com doenças raras e seus familiares hoje no Ceará e no Brasil é o fornecimento de medicamentos”.
“Geralmente, são de alto ou altíssimo custo, o que dificulta bastante o acesso. Na maioria das vezes, têm que judicializar, e mesmo assim ocorre com frequência demora no início do cumprimento das decisões e vários atrasos”, destaca.
Ele reflete que os atrasos prejudicam o tratamento – “prejudicando a saúde e comprometendo a vida das pessoas”, uma vez que “as doenças, na maioria das vezes, são progressivas, degenerativas”.
O Diário do Nordeste questionou a Sesa sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.