Não bináries do CE recorrem à Justiça para retificar documento; ‘me definir consumiu minha sanidade’

Luta de cearenses na Justiça para alterar campo de gênero no registro civil já dura mais de 1 ano

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Pessoas não binárias convivem com preconceitos e constrangimentos por desrespeito à identidade
Foto: Shutterstock

Não se identificar única ou completamente como homem ou como mulher. Assim são descritas, em termos simples, as pessoas não binárias, que transcendem as definições de gênero. Os documentos, porém, não acompanham a identidade, gerando transtornos e constrangimentos.

No Ceará, pelo menos 4 não bináries recorreram à Justiça para retificar o registro civil, alterando o campo de gênero de “masculino” ou “feminino” para “não binárie”. Os processos, porém, estão parados, conforme a Defensoria Pública do Estado.

Pessoas não binárias se apresentam por meio da linguagem neutra, que deixa de atribuir gênero às palavras por meio da terminação "e". Nesta reportagem, desde o título, esta identificação será respeitada.

A defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas, observa que em estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia, a mudança do registro já pode ser feita diretamente nos cartórios, sem judicialização. 

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Já em outros locais, como São Paulo, Pernambuco e Ceará, é necessária uma ação judicial, “pra que um juiz decida sobre o direito de você ter refletida nos seus documentos de identificação a maneira como você se reconhece”, pontua Mariana.

Alguns estados já registram, inclusive, precedentes positivos: pessoas que conseguiram retificar o gênero no documento-base da cidadania, que é o registro civil.

Infelizmente, aqui no Ceará, estamos com as ações praticamente paradas. O juiz entendeu de oficiar o Tribunal de Justiça para que se manifeste, mas isso não é matéria administrativa. O juiz pode, claro, oficiar quem entender, mas não pode deixar de julgar se a pessoa tem ou não o direito. Não entendemos o porquê.
Mariana Lobo
Defensora pública

A defensora reforça que o acesso à retificação dos documentos é previsto nos princípios internacionais de direitos humanos. Apesar disso, a ausência de uma sentença judicial nos casos cearenses, seja positiva, seja negativa, impede a pauta de “andar”.

“É uma angústia muito grande você passar todos os dias por constrangimentos porque seus documentos não imprimem o que você é. Desde chegar a um equipamento de saúde, um hospital, até coisas mais simples, como uma agência bancária”, reflete Mariana sobre o que ouve das pessoas assistidas.

A reportagem contatou o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) para obter um posicionamento sobre os motivos da estagnação dos processos. O órgão pediu os nomes de registro dos solicitantes – mas, após isso, não enviou resposta.

‘Outro território’

Legenda: Brune Camillo aguarda processo judicial para alterar o campo de gênero no registro civil
Foto: Arquivo pessoal

Um dos processos parados é o de Brune Camillo, 30, psicanalista e doutorande em psicologia. Para Brune, a não binariedade não tem uma data de nascimento: compreendida ou não, ela é percebida desde a infância.

“Eu costumava me dar melhor com grupos de meninos, por exemplo. Mas isso fluía, às vezes me dava melhor com as meninas. Minha estética também circulava entre esses dois grupos”, relembra, frisando que a definição de ser uma pessoa não binária “é muito ampla”.

“As identificações do binarismo, tanto a posição da mulher quanto do homem, não condizem exatamente com a minha ética pessoal. Quando estou nelas, percebo uma expectativa que me desgasta, faz mal e não contribui pro meu caminho”, complementa.

Me reconheci como pessoa não binária quando descobri que uma pessoa poderia ser não binária. Estar na posição de mulher ou de homem é desgastante. Ao me nomear não binárie, surge outro território – que não é fácil, mas é um pouco mais tranquilo.
Brune Camillo
Psicanalista

Até essa autoafirmação, porém, o caminho foi pedregoso. “Nunca é fácil fazer transição de gênero. Passei por processo de hormonização no SUS. Definir minha identidade foi algo que consumiu bastante tempo da minha vida e da minha sanidade mental”, declara.

Em 2018, Brune retificou o prenome no registro civil. Agora, espera pelo trâmite judicial para alterar o gênero no documento. “A juíza pediu que fosse emitido um laudo psicológico, e pra mim que sou casade pediu anuência do cônjuge. São coisas que a lei brasileira já proíbe”, critica.

“É comum juízes serem transfóbicos e tornarem burocráticos e lentos demais processos que já têm padrões internacionais que dizem como devem funcionar”, lamenta Brune.

A falta de celeridade para ter documentos que sigam a própria identidade e o preconceito imensurável sobre a não binariedade causam problemas que penetram desde os serviços de educação aos de saúde.

“Quando entrei no doutorado, foi pedido um documento que comprovasse que meus certificados eram meus. Outro grande problema é o acesso à saúde: embora haja profissionais que trabalham com a hormonização de pessoas não binárias e se propõem a entender, é raro encontrar”, finaliza.

“Eu me afirmo pela negação”

A identidade não binária começa com um “não” – e para Indra Maia, 29, arquitete e urbanista, essa é uma forma de afirmação. “Eu me afirmo pela negação. Afirmamos o que somos pelo que não somos”, resume.

Indra, não binárie, se identifica com os pronomes neutro e feminino, “elu” e “ela” – um processo de autoconhecimento que “não foi do dia pra noite, mas um acúmulo de experiências de autodescoberta”, como ressalta.

Tentaram me socializar numa identidade de gênero com a qual eu não me identificava e que fazia cada vez menos sentido pra mim. Comecei a buscar outras possibilidades de existência fora dessa identidade binária. Esse estranhamento em relação às compulsoriedades de gênero eu sinto desde cedo.
Indra Maia
Arquitete e urbanista

Em 2018, Indra tentou retificar o nome no registro civil e mudar a menção de sexo de “masculino” para “feminino” – mas desistiu do processo. “Suspendi justamente por ter conhecido outras pessoas não binárias e termos cada vez mais frisada a importância da retificação fora da dicotomia masculino e feminino”, pondera.

Adequar o documento para que respeite quem ele representa atravessa também aspectos práticos da vida, como pontua Indra. “Tenho um diploma universitário com meu nome de nascimento. Isso faz com que eu não tenha feito meu registro profissional ainda, porque não tenho o diploma retificado. É uma reação em cadeia”, lamenta.

"Desde banheiros a hospedagens, experimentar roupas, acesso a serviços institucionais, preencher formulários, tudo isso está ‘binarizado’. Quando a gente foge dessa dicotomia, faz com que uma série de violações se imponham sobre nossos corpos", diz.

Indra destaca ainda que “uma pessoa pode ser múltipla, diversa, fluida. Não precisa ser ou parecer uma mesma coisa a todo momento pro resto da vida”, e que reconhecer e respeitar a não binariedade é “dizer que não cabemos numa visão reducionista do mundo”.

“O reconhecimento da não binariedade facilita o acesso a serviços, a renda, mercado de trabalho, porque faz com que se crie um debate, uma maturação sobre esse assunto”, finaliza.

O que é não binárie?

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) reforçou, em 2021, um alerta aos Estados do continente a fim de que garantam o direito à identidade e expressão de gênero das pessoas não-binárias.

A Articulação Brasileira Não-Binárie (Abranb) também destaca que a “imposição do masculino e do feminino”, principalmente no contexto de retificação de documentos, é uma “violência contra a diversidade de gênero existente”.

“Isso afeta negativamente pessoas não-binárias, não-conformes, intersexo ou que estão em questionamento de suas identidades e não desejam essa abordagem coercitiva do sistema de justiça, na medida em que tem violadas seu direito à autodeterminação de gênero”, destaca a Abranb.

Mutirão de retificação de registro

Pessoas trans e travestis que desejarem retificar nome e gênero no registro civil podem recorrer à Defensoria Pública do Ceará para iniciar o processo. O órgão está com inscrições abertas para o mutirão "Transforma" até 17h do dia 6 deste mês, e as novas certidões serão entregues ao fim de junho.

Podem participar pessoas transgêneras que são registradas e moram nas cidades de Fortaleza, Sobral, Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha. Para participar, basta acessar o site do Transforma, preencher o formulário e anexar a documentação, definida em conformidade com as determinações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Já pessoas não binárias, responsáveis por adolescentes e pessoas que não moram nas cinco cidades onde o mutirão vai acontecer devem comparecer presencialmente no dia 30 de junho com a documentação exigida, segundo orienta a DPCE.

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