MPF pede perícia sobre licenciamento de Data Center no CE
Objetivo de análise é verificar possíveis impactos sobre ambiente e população indígena.
O processo de licenciamento para a instalação do Data Center Pecém, negócio que deve ocupar uma área equivalente a 95 campos de futebol em Caucaia, deve passar por análise técnica a pedido do Ministério Público Federal no Ceará (MPF-CE). O órgão de fiscalização solicitou perícia após reunião com povos indígenas, comunidades tradicionais e entidades ligadas ao meio ambiente e aos direitos humanos.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, o procurador da República Alessander Sales explica que a perícia deve esclarecer os impactos ambientais do empreendimento, como o uso de água, energia elétrica e potencial desmatamento.
“Peço também que avaliem os impactos nas comunidades tradicionais do entorno e se é necessário fazer consulta prévia, livre e informada”, afirma.
Esse direito de povos indígenas e tribais é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e deve ocorrer antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos.
O objetivo da perícia é determinar se o licenciamento prévio já concedido pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) foi apropriado ou se deveria ter exigido um método mais rigoroso, incluindo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) – processos que exigem audiências públicas.
Segundo o procurador, a atuação do MPF se justifica pela necessidade de defender os interesses das comunidades tradicionais e indígenas na área de influência. Essa atribuição do órgão é assegurada pela Constituição Federal.
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Em nota enviada à reportagem, a Casa dos Ventos, empresa responsável pelo projeto, afirmou que o empreendimento é “fundamentado em sustentabilidade e inovação” e reforça o compromisso “com a transparência e o cumprimento rigoroso de todas as etapas de licenciamento ambiental”.
“Além de ter obtido as licenças ambientais necessárias do estado do Ceará com base em um estudo técnico rigoroso, a Casa dos Ventos mantém um diálogo contínuo com as comunidades e autoridades, garantindo uma implementação que respeite a legislação, as melhores práticas vigentes, as pessoas e o meio ambiente”, declarou.
Já a Semace informou que o processo em questão segue as diretrizes do licenciamento ambiental no Ceará. Por isso, solicitou ao empreendedor a elaboração de um Relatório Ambiental Simplificado (RAS) – documento exigido para avaliar projetos “de pequeno porte”, conforme o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
O RAS, diz a Semace, foi elaborado com base em Termo de Referência expedido pela própria Autarquia “para garantir uma análise técnica adequada dos possíveis impactos ambientais do empreendimento”.
A Superintendência destaca que o Data Center está dentro da área do Hub do Hidrogênio Verde do Pecém já licenciada, com base em Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório (EIA/Rima).
“Ressalta-se que o licenciamento está sendo conduzido pelo rito ordinário, e não de forma simplificada. O projeto deverá obter as licenças ambientais correspondentes: Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO)”, diz.
Sobre os possíveis impactos a povos indígenas e comunidades tradicionais, a Semace verificou que o empreendimento está a quase 9,5 km da Terra Indígena Taba dos Anacés, atendendo às diretrizes da Portaria Interministerial nº 60/2015, que estabelece uma distância mínima de 8 km de terras indígenas.
“Mesmo assim, considerando a importância da participação social, a Semace solicitou a realização de oitivas com as comunidades indígenas mais próximas, reforçando o compromisso da Autarquia com a transparência e o diálogo”, finaliza.
Como o Data Center vai funcionar
Data Center é uma grande infraestrutura física que abriga servidores utilizados para armazenar, processar e distribuir dados digitais. É nele, por exemplo, que circulam informações de redes sociais, plataformas de vídeo e streaming e sistemas em nuvem.
Segundo a Casa dos Ventos – que pretende investir cerca de R$150 bilhões no projeto –, o local será alimentado por energia 100% renovável, gerada por novas plantas da companhia que serão construídas e dedicadas a essa atividade.
Já um sistema de refrigeração em ciclo fechado deve minimizar perdas de água, “não concorrendo com o consumo de água da população do entorno”.
A projeção é que ele consuma menos de 30 m³ (30 mil litros) por dia, o equivalente ao consumo médio de 72 residências do município de Caucaia, onde deve ser instalado.
“Vale destacar que a água usada no sistema de resfriamento corresponde a apenas 10% do total, enquanto a maior parte (90%) será direcionada para consumo humano dos colaboradores do empreendimento”, disse a empresa.
Anteriormente, o projeto já havia recebido parecer favorável da Secretaria dos Recursos Hídricos do Ceará (SRH) para a construção de poços de abastecimento. A permissão tem validade de 10 anos.
Prazo para a perícia
O MPF aguardará o prazo de conclusão da perícia, sem data definida para ocorrer, para decidir se será necessário anular o licenciamento e iniciá-lo novamente de outra forma, incluindo EIA, Rima e audiências.
“Se for um tempo que eu julgue considerável, já podemos tomar algumas medidas para tentar evitar que o processo de licenciamento para a licença de instalação vá adiante, antes de a gente analisar tudo isso. Mas, se for rápido, a gente já pode fazer uma análise do que a Semace fez, se estava correta ou não”, detalha Alessander Sales.
Conforme a Semace, o licenciamento é dividido em três fases:
- Licença Prévia (LP): concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade, aprova sua localização e concepção e cria requisitos básicos e condicionantes. Ainda não é autorizado o início de obras;
- Licença de Instalação(LI): autoriza o início da instalação de acordo com as especificações aprovadas, incluindo medidas de controle ambiental e outros condicionantes;
- Licença de Operação (LO): autoriza a operação da atividade, obra ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento das exigências das licenças anteriores.
Luta de povos tradicionais
A área em xeque, entre Caucaia e São Gonçalo do Amarante, é território de comunidades nativas, pescadores, pequenos agricultores e indígenas.
Segundo informações do MPF, o Sistema de Cadastro de Aldeias (SisAldeia) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contabiliza mais de 20 aldeias Anacé no entorno e nas proximidades do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp).
Esses povos, em parceria com entidades como Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) e Instituto Terramar, questionam a viabilidade do Data Center e já protocolaram documentos junto ao MPF e ao Ministério Público do Ceará (MPCE).
Para essa frente, o empreendimento gera impactos socioambientais significativos, como o consumo massivo de energia elétrica e água de resfriamento para manter os servidores funcionando 24 horas, sete dias por semana. Isso pressionaria a oferta de energia e de recursos hídricos em escala local.
Assim, "diante dessa magnitude e dos riscos socioambientais e climáticos envolvidos", o grupo esperava um processo de licenciamento rigoroso, mas foi aplicado um Relatório Ambiental Simplificado (RAS).
Paulo Anacé, liderança indígena do povo Anacé da Grande Aldeia Cauípe, lembra que a etnia reivindica a área há mais de 20 anos. Em agosto deste ano, alguns membros chegaram a ocupar a sede da Semace, em protesto, denunciando a ausência de diálogo ou consulta de possíveis impactos.
Nós queremos que nosso território seja protegido, guardado, e que qualquer ação seja primeiro discutida com o povo. Acreditamos que, sem esse diálogo, nada pode caminhar. Queremos que haja estudos ambientais e proteções de diversas formas para fortalecer nossa mãe terra. Não é destruindo os recursos, que são escassos e finitos, que teremos um grande progresso para todos.
Diante da falta de informações detalhadas, as entidades cobram a apuração do que consideram "irregularidades", a suspensão do processo de licenciamento ambiental, a anulação da licença prévia já concedida e a realização de consulta livre, prévia e informada ao povo indígena Anacé.