Entenda os mitos sobre a Abolição no Ceará, que libertou escravizados 4 anos antes do Brasil

Historiador e pesquisador explica temas como presença negra no Estado, violência e o papel de Dragão do Mar em movimento libertador

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Dragão do Mar, em ilustração de 1884 da publicação carioca "Revista Ilustrada"
Foto: Biblioteca do Senado Federal

A escravidão ainda é uma ferida aberta na sociedade brasileira. Os 136 anos de Abolição do regime escravocrata, celebrados neste 13 de maio, ainda não foram capazes de suplantar os 388 em que indígenas, africanos e seus descendentes foram submetidos a situações desumanas para extração de ouro e pedras preciosas, criação de gado e cultivo de café e cana-de-açúcar, dentre outras atividades. Embora tenha abolido a escravidão quatro anos antes do resto do país, o Ceará não teve grandes diferenças em relação a outras províncias.

Aliás, ainda há diversos mitos sobre a Abolição cearense. Dois anos depois da oficialização, contagens oficiais ainda indicavam a presença de escravizados no território. Escravizados de outras províncias, crendo na “Terra da Luz”, fugiram para cá buscando liberdade, mas foram caçados e devolvidos a seus senhores. Até mesmo o Dragão do Mar, hoje símbolo estadual, não foi o único responsável pelo movimento libertário.

Para rememorar o período, o Diário do Nordeste parte de documentos históricos disponibilizados pelo Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico). No entanto, também traz novas interpretações sobre a historiografia oficial a partir da análise do mestre em História Social e pesquisador da Cultura e História do Negro no Ceará, Hilário Ferreira.

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Um dos principais escritos do Instituto é o artigo assinado pelo professor Pedro Alberto de Oliveira Silva, sócio efetivo da entidade. Classificado como "execrável" pelo autor, o trabalho escravo foi estimulado pela necessidade de força de trabalho nas províncias brasileiras, "principalmente quando viveram sua fase histórica inicial".

Contudo, no Ceará, essa necessidade teria sido limitada. As características geográficas da capitania atrasaram sua ocupação e sua integração ao sistema agroaçucareiro que já era proeminente em outros locais do Nordeste. Ainda assim, no século 17, a população indígena começou a ser escravizada - não sem resistência - e aldeada perante o poder dos invasores, que também se aproveitaram de conflitos entre diferentes etnias.

O maior emprego da força indígena se deu porque o período coincidiu com a intensificação do ciclo do ouro em Minas Gerais, dificultando a compra de escravizados africanos pelos colonizadores do Ceará - supostamente não tão ricos porque a criação de animais era sua principal atividade econômica, mas não tão rentável.

Já os escravizados negros teriam sido menos numerosos. Os primeiros chegaram à capitania em 1756, para trabalharem em uma mina na zona sul, mas tinham presença restrita a grandes centros comerciais porque representavam "mais bens econômicos do que força produtora".

Segundo Oliveira Silva, a seca não permitia maior desenvolvimento produtivo, limitado a lavouras de subsistência e pequena pecuária, atividades que não demandavam muita mão de obra. Em um levantamento realizado em Sobral, em 1788, havia uma média de apenas 3 escravizados por fazenda. Nem mesmo a ascensão do cultivo de algodão teria exigido maior compra de escravizados.

Essas alegações são criticadas pelo pesquisador Hilário Ferreira, que defende a presença de negros no Ceará antes mesmo da chegada dos brancos. Segundo ele, eles teriam vindo fugidos de áreas vizinhas, como Pernambuco e Bahia. A intensa miscigenação no século 17, inclusive, levou à constatação do Censo de 1813: os negros (pretos e pardos) eram maioria e somavam  65,8% da população cearense. Destes, 17% - cerca de 17 mil - eram escravizados.

Açoites, vendas e traumas

Com a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, foi decretada a abolição do tráfico negreiro no Brasil. No entanto, a medida estimulou o chamado “tráfico interno”: a venda de escravizados para outras regiões do país, sobretudo do Sul, se tornou uma importante fonte de receita para a província do Ceará. Essa movimentação cresceu especialmente com a grande seca de 1877, e um grande volume de cativos deixou o território.

Para Hilário, a “exportação” não extinguiu o problema. Aliás, fazendeiros como Joaquim da Cunha Freire, conhecido como “Barão de Mauá do Nordeste”, tinham propriedades com até 200 escravizados. Em Lavras da Mangabeira, uma proprietária chegava a incentivar a reprodução de cativos. 

“Ela tinha um ou dois ‘garanhões’, negros fortes, que eram forçados a engravidar as mulheres das senzalas, cujos filhos serviriam como repositório de cativos. O Ceará, no Nordeste, foi um dos grandes exportadores de seres humanos para o Rio de Janeiro.”, detalha.

Legenda: Escravizados tinham condição de vida precárias e eram submetidos a diversas formas de violência
Foto: Tiago Stille/Governo do Ceará

Mais um mito desfeito pelo doutorando é que no Ceará não havia agressões contra os negros, defendida por alguns autores pela maior “proximidade” entre eles e seus senhores. Relatos de fugas em jornais descreviam características físicas como marcas de relhos (açoites) na pele e tendões cortados.

Outra forma de violência, narra, era o duplo trauma da separação. “O primeiro na África, quando ele é sequestrado e tirado da família; depois, da família que formou no Brasil, mesmo nas piores condições. De repente, ele é vendido, assim como seus filhos, para diferentes locais”, explica.

Condições para o abolicionismo no Ceará

O escravismo sustentava parte da economia cearense, mas a urbanização e a modernização do Estado, especialmente de Fortaleza, a partir da década de 1860, impulsionaram a circulação de ideologias abolicionistas vindas do exterior. Hilário lembra que a Inglaterra passava pela Revolução Industrial e tentava incentivar a formação de consumidores para suas mercadorias, inclusive no Brasil. O próprio reconhecimento da Independência estava atrelado ao fim da escravidão.

Em Fortaleza, também se formava uma classe média a partir do comércio, que ganhava tanto destaque quanto a agricultura. Ela passou a frequentar teatros, café e clubes, onde trocava diversas ideias e impressões. Além disso, teve contato com os migrantes da seca de 1877, quando muitos escravizados foram vendidos por senhores que perderam todas as posses. 

“Você via os negros passando a pé de galpões na Jacarecanga, vindos do interior, até a Praia do Peixe (hoje Praia de Iracema). Era uma procissão acorrentada de pessoas para serem vendidas. Isso podia mexer com o lado humano de alguns, embora isso não significasse que não houvesse racismo”, pensa Ferreira.

Dragão do Mar ou José Napoleão?

Apesar da fundação da Sociedade Cearense Libertadora, em 1880, a Abolição “antecipada” pelo Ceará só foi impulsionada no ano seguinte, através do movimento de jangadeiros de Francisco José do Nascimento, então conhecido como Chico Matilde e mais tarde, como Dragão do Mar. Nos dias 27, 30 e 31 de janeiro de 1881, e depois em 30 de agosto, eles se recusaram a transportar escravos cearenses para navios negreiros que os levariam a outras províncias.

Hilário Ferreira explica, porém, que Chico não foi a principal figura do momento - e, muito menos, jangadeiro. Ele era, na verdade, um prático, profissional responsável por indicar aos navios onde atracar e não ficar presos aos numerosos bancos de areia do litoral da Capital. O transporte da terra aos navios era realizado por jangadeiros pagos pelos compradores.

Legenda: Pintura "Jangada rolando para o mar"
Foto: Raimundo Cela

O líder dos jangadeiros era José Luiz Napoleão, um ex-cativo urbano que fez um acordo com seu senhor para comprar a alforria. Em seguida, acumulou dinheiro para libertar também esposa, os filhos e os amigos. Para evitarem ser reescravizados, eles passaram a viver juntos numa vila, na praia. Com o tempo, ganharam força suficiente para negar o transporte de mais pessoas aos navios.

“O Dragão do Mar é colocado na história porque, logo após o movimento conseguir vencer, os abolicionistas procuram José Napoleão para criar uma célula abolicionista na praia. Ele, desconfiado, disse não, mas indicou o Chico da Matilde”, elucida o historiador. “Quando ele faz isso, a historiografia oficial coloca o protagonismo da Abolição para os brancos e apenas um negro, e a condição profissional do Napoleão é transferida para o Dragão do Mar”.

Abolição assinada com pena de ouro

A iniciativa dos jangadeiros deu estímulo a outras alforrias. Em 1º de janeiro de 1883, a Vila de Acarape entrou para a história nacional após libertar os últimos escravizados e se tornar o primeiro local a abolir a escravidão no país. Em 1889, ela foi renomeada como Redenção, hoje município e sede da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), inaugurada em 2011.

A “Redenção” também é questionada por Hilário Ferreira, visto que os donos de escravizados na cidade foram indenizados pelos alforriados. Além disso, uma lei local estipulava o pagamento de multa caso a escravidão fosse mantida. “Tem um documento no Arquivo Público mostrando que, depois, um senhor rico levou seus escravos para viver lá. Ou seja, se você fosse rico, continuava com seus escravos e pagava a multa. Ninguém ia lá libertá-los”, alerta. 

Como reação em cadeia, o exemplo de Acarape foi seguido por Pacatuba, São Francisco (hoje Itapajé), Aracoiaba, Baturité, Aquiraz, Icó e Maranguape. A capital Fortaleza declarou a abolição em 24 de maio de 1883.

Menos de um ano depois, a província do Ceará aboliu oficialmente a escravidão em todo o seu território, a 25 de março de 1884, por decisão do então presidente da província, o médico baiano Sátiro de Oliveira Dias.

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Conforme relato do jornal "O Cearense", a sessão magna de declaração da Abolição ocorreu a céu aberto, na praça do Senador Castro Carreira - hoje Praça da Estação, no Centro de Fortaleza -, com a presença de autoridades e de três a quatro mil pessoas "de todas as classes sociais".

O discurso de Sátiro provocou "verdadeiro frenesi" popular. "Aos aplausos do povo, uniram-se ao mesmo tempo as salvas da artilharia, as descargas da guarda do batalhão 11º de infantaria e numerosas girândolas de foguetes de todos os pontos da cidade", descreve a publicação.

A ata da sessão foi assinada com duas penas de ouro, tanto pelo presidente da província quanto pelo bispo diocesano, Dom Joaquim José Vieira. A pena de Sátiro foi doada ao Instituto Histórico e Geográfico da Bahia.

A decisão, porém, não passou ilesa. Por pressão de fazendeiros, Sátiro foi deposto do cargo em maio do mesmo ano. Além disso, a escravidão não foi realmente extinta: em 1886, uma contagem solicitada por um deputado ainda encontrou 500 cativos na vila de Milagres, no Cariri.

Quem sancionou a Lei Áurea?

De acordo com o Senado Federal, o trâmite da Lei Áurea durou apenas cinco dias. No dia 3 de maio de 1888, a princesa Isabel de Orleans e Bragança, que exercia a regência devido a uma viagem do pai, o imperador dom Pedro II, abriu o ano parlamentar com um discurso que pedia o fim da escravatura. 

No dia 8 de maio, o ministro da Agricultura, Rodrigo Augusto da Silva, enviou o projeto de abolição ao Parlamento. Dois dias depois, o texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, e, em 13 de maio, pelo Senado. No mesmo dia, a lei foi sancionada pela princesa.

Legenda: Princesa Isabel surge num dos balcões do Paço do Rio de Janeiro e é aplaudida por multidão após sancionar a Lei Áurea
Foto: Agência Senado

Como resultado, fazendeiros escravistas revoltados com a abolição se tornaram inimigos do Império e passaram a defender a República - que seria proclamada pouco mais de um ano depois, em 15 novembro de 1889. Naquele contexto, os escravocratas eram a principal base da economia da Coroa.

Após a instauração da República, o recém-nomeado ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, pressionado pelos ex-donos de escravos que queriam indenizações pelas “perdas”, mandou queimar todos os registros contábeis de compra e venda de escravos no país. Desta forma, o pagamento aos fazendeiros foi inviabilizado.

Repensar a Abolição

A Abolição no Ceará e no Brasil continua sendo celebrada com o protagonismo das pessoas erradas, na leitura de Hilário Ferreira. A nível nacional, apenas a princesa Isabel é citada. A nível estadual, segue creditada a um grupo de jovens brancos da classe média defensores de uma linha liberal. “A mensagem implícita é que a Abolição é uma dádiva dos brancos. É um projeto político-racial que até hoje se procura impor no Brasil”, acredita.

Para ele, é preciso repensar o processo a partir de uma nova perspectiva de abordagem que se aprofunde na história da escravidão e busque analisar as documentações, não as interpretações já realizadas.

“O projeto de nação desenvolvido no Brasil procura impor uma ideologia europeia e branca. O indígena é visto como selvagem, o negro como marginal, e o branco como civilizador. Nós temos um conflito sobre a identidade nacional, mas quem são seus produtores e o que pensavam? Quais eram as ideias hegemônicas? Que História é essa?”, questiona.

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