Educação de Jovens e Adultos enfraquece e pelo menos 19 turmas são encerradas em Fortaleza
Censo escolar mostra queda de matrículas na EJA e professores apontam ausência de políticas públicas para os jovens e adultos como principal fator para a derrocada da modalidade
Continuar frequentando salas de aula na “vida adulta” é desafio para estudantes de Fortaleza que, em algum momento da formação escolar, tiveram que parar os estudos e retornar anos depois. Isso tem refletido na redução de matrículas e de turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Diante deste cenário, pelo menos 19 turmas de EJA deixaram de ser ofertadas em Fortaleza entre 2021 e 2022.
As informações sobre redução de turmas foram apuradas pelo Diário do Nordeste junto a professores da rede municipal, com o apoio do Fórum de EJA no Ceará. Conforme os dados, 12 escolas municipais de Fortaleza tiveram turmas que deixaram de ser ofertadas, as quais os professores chamam de "turmas fechadas". São elas:
- Escola Municipal José Ramos Torres de Melo (2 turmas fechadas, de EJA III e IV);
- Escola Municipal Professora Belarmina Campos (2 turmas fechadas, de EJA II e III);
- Escola Municipal Paulo Sergio de Sousa Lira (1 turma fechada, sem detalhamento de nível);
- Escola Municipal Maria Bezerra Quevedo (1 turma de EJA II fechada);
- Escola Municipal Nelson Mandela (3 turmas fechadas, de EJA II, III e IV);
- Escola Municipal Irmã Simas (1 turma fechada);
- Escola Municipal Frei Tito de Alencar Lima (2 turmas fechadas, de EJA II e III);
- Escola Municipal Professor José Rebouças Macambira (2 turmas fechadas, de EJA II e III);
- Escola Municipal Hilberto Silva (1 turma fechada, sem detalhamento de nível);
- Escola Municipal Monteiro de Morais (2 turmas fechadas, de EJA II e III);
- Escola Municipal Godofredo de Castro Filho (1 turma fechada, de EJA II);
- Escola Municipal Dom Aloisio Lorscheider (1 turma fechada, de EJA III).
Em algumas delas, os docentes garantem que há fila de estudantes à espera de novas turmas.
Além disso, o número de matrículas na EJA de ensino fundamental em Fortaleza está em queda pelo menos desde 2018, como apontam dados do Censo Escolar, do Ministério da Educação. Naquele ano, foram cerca de 12 mil registros, ante 9 mil em 2021.
A reportagem solicitou à Secretaria Municipal de Educação (SME) dados sobre quantas turmas foram fechadas, mas não houve resposta.
Integrante da coordenação do Fórum de EJA no Ceará, a professora Cláudia Assis confirma que a entidade recebeu denúncias sobre o "fechamento" de polos na rede municipal, que na capital é responsável pela oferta da EJA de ensino fundamental.
“O fato é que foram fechados, sim, e nós do Fórum EJA fizemos um ofício e protocolamos junto à SME para ter uma audiência e entender os motivos, mas ainda não tivemos devolutiva”, pontua.
Em paralelo, Dalila Saldanha, titular da SME, disse que “nenhuma turma de EJA foi fechada em Fortaleza”. A gestora explica que o que tem ocorrido é a queda na procura: as turmas não atingem o número mínimo de alunos e, portanto, não se formam.
Temos as etapas obrigatórias de ensino, e a EJA é o reflexo de quando uma delas não foi cumprida com êxito. Em Fortaleza, a redução das matrículas de EJA é natural, já que temos reduzido o número de alunos em distorção idade-série.
A secretária acrescenta ainda que a frequência dos alunos matriculados na EJA tem sido muito baixa, o que levou a SME a estudar a possibilidade de implementar o ensino semipresencial na EJA em 2023.
Além disso, em nota, a SME afirmou que “em virtude da redução de matrículas, os polos que ofertam a modalidade de ensino foram reorganizados, no entanto, nenhuma turma foi fechada”. A secretaria adiciona, ainda, que “a oferta de turmas e polos tem como base a demanda, assim como todos os estudantes têm sua vaga garantida”.
Políticas de apoio
Ainda em 2019, a turma de EJA na qual o professor João Gadelha ensinava deixou de ser formada. Ele atua na rede municipal há 12 anos, e avalia que a ausência de políticas públicas para os jovens e adultos é o principal fator para a derrocada da modalidade.
“Eles passam o dia trabalhando, desgastados, e quando chegam à escola veem um espaço não adequado ao perfil deles, se sentem desmotivados, não percebem o valor que a educação tem pra vida pessoal e profissional. Falta um projeto de educação pra EJA”, diz.
Falta um material mais adequado a esse público, uma alimentação mais apropriada, que seja balanceada e atrativa. Outro fator é a violência dos entornos. Então, são necessários caminhos simples: alimentação, garantia de acesso e transporte, material e segurança.
O professor acrescenta que “se as pessoas não têm condições de se matricular com facilidade, isso dificulta a vida delas. Se tiverem que se deslocar, certamente não farão. A escola deve ser acessível e possibilitar a permanência”.
Dalila Saldanha garante que o acompanhamento pedagógico, o material, o suporte aos alunos foram reforçados, mas aponta que "o grande desafio é tornar a EJA atrativa, pra que o aluno esteja na aula todos os dias. Porque se não estiver lá, ele não vai se motivar pra concluir os estudos com sucesso".
A gestora reafirma que “não há problema de atendimento de demanda” na EJA, e que estudantes que procuram a modalidade pela primeira vez precisam, naturalmente, aguardar a abertura de uma nova turma.
“Em torno de 10 professores estão, hoje, sem lotação. O número de matrículas veio decrescendo, principalmente de 15 a 24 anos, porque corrigimos o problema da distorção idade-série. Só restam os adultos, então a tendência natural é zerar”, finaliza.
alunos estudavam em séries atrasadas, na rede municipal de ensino de Fortaleza, em 2020, de acordo com o Censo Escolar.
Redução nas matrículas
Joab Fonseca, professor de EJA e coordenador de turmas estaduais, acrescenta que “hoje, na rede municipal, há uma redução grande na oferta porque não há procura”, gerando um efeito dominó.
“Se reduz matrícula, acabam aglutinando os alunos em alguns polos e fechando outros. Mas quanto menos escolas com EJA, menos alunos procuram, porque se não tem um polo perto de casa, o estudante tem de se deslocar de 2 a 3 km. Isso o desmotiva”, avalia.
Cláudia Assis observa que “os recursos têm sido cada vez menores, gerando uma dificuldade de manter viva e efetivar a EJA”. “É negação de direito, porque a EJA tem como pressuposto garantir educação a quem não concluiu na idade apropriada”, complementa.
O fechamento de turmas que está ocorrendo é no ensino fundamental, que é ofertado pelos municípios. As crises já existiam, mas nesse período pandêmico elas se aprofundaram – e na EJA isso foi muito potente.
Em nota, a SME destacou que "mesmo celebrando os resultados positivos dos alunos alfabetizados na idade certa, a prefeitura continua trabalhando na identificação dos estudantes que ainda estão fora da escola, por meio do fortalecimento das ações de Busca Ativa".
A SME informou que “as matrículas continuam abertas durante todo o ano”, e que possui, hoje, 77 polos de EJA. Em 2017, porém, um documento oficial da Pasta mostrava que a cidade possuía 89 polos de EJA. Um fechamento de 12 polos em 5 anos.
O que falta para a EJA
Políticas de retaguarda, de apoio à permanência do aluno em sala de aula. Essa é a resposta mais frequente entre os professores e diretores ouvidos pela reportagem.
A integrante do Fórum EJA, Cláudia Assis, aponta que essa modalidade é preterida em relação ao ensino básico em tempo regular. “É preciso financiamento, política séria e contínua. Que esses sujeitos sejam vistos nas suas diferenças e nas suas potencialidades.”
Os professores precisam ter uma capacitação que os qualifique para trabalhar com esse público. Em maioria, nossos alunos são trabalhadores, é preciso garantir acesso e permanência, com horário e metodologia compatíveis com a vida deles.
O professor Yuri Harlen adiciona que a implementação de “bolsas de incentivo aos estudos e oferta de estágios” seria uma estratégia importante para tornar a EJA mais atrativa e possível no Ceará.
“É um público que além de estudar tem de botar o pão na mesa de casa. Oferecer cursos profissionalizantes na própria escola, ampliar o acesso a creches, para que as alunas mães tenham onde deixar os filhos, são exemplos de políticas que contribuiriam pra essa permanência.”
O modelo proposto para o Novo Ensino Médio, em vigor no Ceará desde o início de 2022, seria uma alternativa para repaginar a EJA – mas diante das especificidades de educar jovens e adultos, sequer há previsão de inclusão dessas turmas no formato.
Esse modelo precisa ser mais discutido, adaptado à realidade dos estudantes de EJA. Tem pontos positivos, mas quando a base comum é reduzida, fragiliza componentes importantes a quem não conseguiu concluir os estudos na idade ideal.
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Por que a EJA é tão importante?
Oxítonas, paroxítonas e contas simples de matemática são, em geral, rotinas infantis, mas entraram na vida de Maria Luciene Lima aos 50 anos de idade, quando ela decidiu retomar os estudos que tinha parado na 4ª série, quando pequena.
Mesmo cansada de ouvir que “velho não aprende mais nada”, persistiu. Afinal, “a escola era o canto onde esquecia dos problemas, o lugar que, quando achava que não conseguia, as professoras diziam que sim”. Além de saberes, então, Luciene apreendeu autoestima.
Mudou muito na minha vida, aprendi muito. Eu era muito isolada, muito na minha, só fazia ouvir, não era de falar. Hoje, já me comunico mais, sou mais aberta.
Hoje com 61 anos, “há um bocado de tempo” frequentando o CEJA do bairro Cristo Redentor, a cearense está a duas matérias de obter o diploma – e se diz prova viva da importância da EJA. “Porque quando você tem interesse, dá certo.”
Já a dona de casa Vânia Carnaúba, 47, quis voltar às salas de aula com um objetivo: conseguir um emprego. Iniciou o ensino médio pela EJA em 2020, e logo veio a pandemia, migrando os estudos para o ambiente virtual.
Apesar das dificuldades, continuou e concluiu. “Foi como uma mágica, voltar ao tempo. Eu amei voltar a estudar, mesmo que a gente não tava presencial. Eu era a mais velha da classe, consegui fazer amizade, todos me trataram com respeito”, orgulha-se.
Eu queria terminar os estudos pra ter uma possibilidade de arrumar um trabalho, infelizmente ainda não consegui. E queria estudar também porque gosto muito de matemática, queria ver tudo aquilo de novo. Gostaria de ser professora, um dia.
A professora Cláudia Assis alerta que negar acesso à educação a jovens e adultos gera um problema intergeracional. “Crianças que não têm sucesso escolar são, em maioria, filhas de pais analfabetos ou não escolarizados, não veem na família o estímulo pra estudar.”
Fortalecer a educação, sobretudo a EJA, então, é questão social. “Um jovem sem escolarização não consegue boa posição no trabalho, remuneração justa. Isso gera violência, marginalidade, miséria. A escolarização é a grande aliada do desenvolvimento de um país, da igualdade social”, finaliza.
Nesta semana, inclusive, ocorre a Mobilização Nacional pelo direito à EJA. A ideia é que essa ação ganhe visibilidade para "reivindicar o direito à educação de 69,5 milhões pessoas, acima de 25 anos, que não concluíram a Educação Básica (PNAD, 2019)", conforme o documento do evento.
O que diz a secretaria
A reportagem solicitou à SME de Fortaleza uma confirmação e justificativa sobre o fechamento de turmas e polos de EJA no Estado, bem como dados de repasses financeiros à modalidade nos últimos anos.
A SME, como já mencionado, negou ter havido fechamento de turmas. A Pasta não detalhou valores de repasses federais à modalidade, mas a secretária Dalila Saldanha mencionou, em entrevista ao Diário, que "o recurso anda longe de completar o que é preciso" para manter as turmas, de modo que o Município precisa arcar.