Na pandemia, manter alunos na escola é desafio maior para a EJA

A Educação de Jovens e Adultos está autorizada a retomar as aulas presenciais, com 35% dos estudantes, essa semana. Garantir a permanência de quem já abandonou a escola em outro momento é uma das dificuldades específicas

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
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Legenda: O retorno à sala de aula com o novo coronavírus ainda em circulação é um desafio a mais para os estudantes
Foto: Thiago Gadelha

Para aqueles que, em algum momento da formação escolar, tiveram que parar os estudos, retornar anos depois à escola nem sempre é possível. Quando ocorre, é preciso garantir condições adequadas para manter esse estudante e assegurar a ele o direito de aprender independentemente da idade. Mas, se no cotidiano anterior à pandemia, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) já tinha seus desafios específicos, a crise sanitária aumentou os dilemas.

No Ceará, a rede estadual, esse ano, tem 75.708 alunos matriculados na EJA. Nesta modalidade, diante das inúmeras limitações com as aulas remotas, o momento demanda intensificação das formas de garantir a permanência desses estudantes. A partir do dia 1º, as escolas da macrorregião de Fortaleza que têm essa modalidade, conforme autorizado pelo Governo do Estado, podem voltar a receber até 35% desses estudantes em aulas presenciais.

A notícia sobre o possível retorno anima a estudante Katiucia Nunes, de 46 anos. Moradora do Parque II Irmãos, em Fortaleza, ela é aluna de um dos 33 Centros de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) - EJA semipresencial no Ceará. Katiucia é vendedora e conta que na adolescência cursou até o Ensino Fundamental, quando devido à necessidade de trabalhar, interrompeu a formação convencional. Em 2019, Katiucia buscou o CEJA José Neudson Bandeira Braga, no Benfica, para cursar o Ensino Médio. Mas, em 2020, a pandemia afetou completamente o planejamento.

"Eu voltei a estudar porque eu quero fazer faculdade. Quero me formar em gastronomia", relata. Antes da pandemia, em três dias da semana, ela saía do trabalho direto para as aulas. "Agora a gente tá esperando voltar. A aula presencial é bem melhor do que essa online. A gente entende mais, o professor explica", reforça. Desde março, Katiucia readequou o uso de aplicativos de conversas. Antes restrito a contatos pessoais, agora é ferramenta no processo de aprendizado. As lições chegam pelo celular.

Impacto

A rotina tem sido semelhante para inúmeros outros jovens e adultos no Ceará, estudantes em processo de adaptação no Estado, onde, em 2019, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) Educação, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade era 13,6%. Em números absolutos, são 978.000 pessoas acima de 15 anos analfabetas no Estado.

No CEJA Monsenhor Hélio Campos, no bairro Cristo Redentor, relata o diretor Yuri Harlen Vasconcelos, hoje são 1.700 alunos de "perfis bem diversos". Adolescentes que deixaram a escola, adultos trabalhadores e idosos que buscam dar continuidade aos estudos. Pensar estratégias de ensino, nesse momento diferenciado, requer, portanto, considerar essa diversidade, pondera ele.

Antes da pandemia, os CEJAs no formato semipresencial ofertavam aulas ininterruptas entre as 7h às 21h30. Em cada unidade, havia professores plantonistas de manhã, tarde e noite para atender alunos que têm os próprios cronogramas. Com a pandemia foi preciso operacionalizar metodologias diversificadas para alcançar a realidade dos estudantes. Entre os jovens, relata Yuri, o uso de WhatsApp, por exemplo, tem sido mais fácil. Já entre os idosos, há barreiras tecnológicas. Na unidade, estima ele, do total de alunos ativos, 60% continuaram no ensino remoto. Outros 40% não têm conseguido prosseguir nesse formato.

"Os alunos já têm um certo desestímulo, por, em algum momento, terem se afastado da escola regular. Esse retorno já é difícil presencialmente. A distância causa uma certa acomodação. Nossa dificuldade é fazer com que eles continuem e permaneçam até a conclusão", ressalta. Na EJA para concluir o ensino fundamental, o aluno deve acompanhar o processo de aprendizagem por 2 anos. Já o ensino médio é cursado em 1 ano e 6 meses.

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Estratégia

A realidade narrada em Fortaleza se replica em outros CEJAs no Estado. Em Baturité, no CEJA Donaninha Arruda, que atende a alunos de 13 municípios do maciço, o professor de artes, Paulo George Barros Silva, ressalta: "tínhamos aulas semipresencial. O aluno tinha liberdade de ir o dia que quisesse. Mas com a pandemia, tudo mudou. Muitos deles nem celular tinham. Os que tinham tivemos que fazer a busca ativa. A preocupação maior era saber como estavam. Muitos adultos e idosos foram infectados. Muitos ficaram sem trabalho, sem alimentos. Tivemos que garantir a distribuição de cesta básica, compra de remédio", conta.

Na cidade, uma das estratégias foi usar a rádio para garantir a participação dos estudantes nas aulas. "Fizemos um projeto, o CEJA nas ondas do rádio. No mês de agosto foi bem legal. Teve aluno que fez rap. Fomos organizando e cada sábado levamos os alunos", descreve. Mas, acrescenta que "infelizmente nós perdemos muitos alunos da zona rural que não têm como acompanhar. Muitas vezes, têm só um celular em casa".

A integrante da coordenação colegiada do Fórum EJA Ceará, Cláudia Assis, alerta sobre a necessidade de um olhar diferenciado para a EJA. "Enquanto na escola da educação básica tem um aluno na idade tida como correta e esse aluno fazia parte de uma escola que tinha um professor diretor de turma, que tinha o celular dos alunos, esses alunos eram acompanhados e monitorados pelos pais, na educação de jovens e adultos nós não temos esse cenário. Temos uma classe eminentemente trabalhadora, quando não trabalha formal, está no trabalho informal, sustenta a família. Acima de tudo é um trabalhador e nesse momento de pandemia a luta por sobrevivência só aumentou", reforça.

De acordo com Cláudia, o aluno da EJA "se sente muito mais desafiado a permanecer o vínculo com o processo educativo. E além da situação particular dele, o vínculo do professor com o aluno jovem e adulto não é o mesmo vínculo do professor com o adolescente", acrescenta. Dentre as limitações para o ensino remoto, explica ela, estão: alunos com rotatividade do número de celular, adultos e idosos não familiarizados com as tecnologias e o baixo acesso aos recursos tecnológicos.

Esse contexto, argumenta ela, precariza a EJA porque a mesma "já não era prioridade e agora é menos ainda". Cláudia reforça que as redes precisam gerar condições para que os alunos dessa modalidade permanecem nos processos de aprendizagem. De acordo com ela, atualmente há um grupo de trabalho que vem se reunindo com a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) para discutir como será esse retorno da aulas. "Quando a gente tem jovens e adultos que se afastam da educação, eles estão se afastando do conhecimento, do progresso, da cidadania. Estão deixando de ser cidadãos críticos reflexivos e estão se tornando pessoas sofridas que repetem a situação de miséria", reforça.

Questionada sobre o impacto da pandemia especialmente para essa modalidade, a Seduc, respondeu, em nota, que "ainda não é possível dimensionar esses impactos, por se tratar de uma situação nunca enfrentada antes. É uma dinâmica que se coloca e que exige cuidado por parte da gestão da educação pública de forma geral". A Pasta garante que, dentre outras ações, tem feito um acompanhamento das atividades através de metodologias e ferramentas remotas. Em outro ponto, "a Secretaria tem procurado a readequação do currículo e das avaliações durante esse período", informa.

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