Como investigações do SVO sobre mortes podem ajudar a resolver problemas de saúde no CE ?
Há 20 anos, o Serviço de Verificação de Óbito atua no esclarecimento das causas dos óbitos de morte natural.
Para a família enlutada, a morte de um parente representa o fim de um ciclo de vida, amores, memórias. Mas, para dezenas de profissionais, é apenas o início de um importante trabalho para esclarecer o motivo desse fim e encaminhar uma despedida digna.
Há 20 anos, o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), vinculado à Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), atua no esclarecimento das causas dos óbitos de morte natural, em situações sem assistência médica ou sem o devido diagnóstico.
Na prática, o trabalho do SVO serve para nortear a elaboração de políticas de saúde e contribui para combater e controlar doenças que podem ameaçar a população. Ele é diferente da Perícia Forense do Ceará (Pefoce), que investiga causas de mortes violentas ou externas.
“É aquele velho ditado: investigamos a morte morrida. Nosso papel é dizer qual é o perfil epidemiológico da população cearense na questão do óbito”, simplifica a diretora-geral do SVO, Anacélia Gomes de Matos, em seu gabinete. O Diário do Nordeste acompanhou uma manhã do trabalho dos diversos setores da instituição, inaugurada em maio de 2005.
necrópsias foram realizadas no SVO, em 2024. O Serviço funciona 24 horas por dia.
Entre os perfis atendidos, estão casos de mal súbito, como os noticiados recentemente em academias de Fortaleza, ou de condições não diagnosticadas. A necrópsia clínica de tecidos e órgãos e uma bateria de exames laboratoriais (como análises de células, bactérias e vírus) dão suporte a essa investigação.
Com a conclusão em mãos, é possível detectar condições hereditárias que merecem investigação familiar, como distúrbios sanguíneos, para prevenir outras mortes. Já em outros casos, pode favorecer novas vidas: uma gestante que tem sucessivos abortos pode receber um diagnóstico sobre o feto, levar a um ginecologista e ter uma gravidez planejada.
Em todos os casos, reforça Anacélia, a necrópsia é facultativa, ou seja, a família precisa autorizar o procedimento. A equipe já é treinada para o convencimento. “É muito ruim perder uma pessoa querida, mas pior do que perder é não saber porque ela se foi”, ressalta.
Não é o ciclo do cidadão que encerrou. Ali, podem começar outras ações de promoção da saúde. Tem algumas situações que a gente pode trabalhar com a saúde do Estado e dos municípios para tentar fazer barreiras, contenções, para aquela doença não se espalhar mais.
Um corpo conta histórias
Uma expressão popularizada pelo patologista austríaco Karl von Rokitansky diz “Mortui vivos docent”, ou seja, “os mortos ensinam os vivos”. A frase está tatuada no braço de Sami Gadelha, diretor técnico do SVO, para lembrá-lo de que o estudo do óbito é uma oportunidade de transformar a vida de pessoas que poderiam ser vitimadas pelo mesmo mal.
Desde as aulas na faculdade, o médico gostava de acompanhar necrópsias porque, onde outras pessoas poderiam enxergar morbidez, ele enxergava fascínio. De detalhe em detalhe, entendeu que “a causa da morte nos conta a vida da pessoa”.
É assim até hoje. Segundo seu olhar atento, diversos sinais externos revelam informações importantes. Um idoso muito desnutrido, por exemplo, “provavelmente passou por maus bocados, talvez até com implicação de maus tratos”. Os órgãos também falam: é possível ver no rim que “a pessoa tinha pressão alta há muito tempo e nunca descobriu” ou se consumia muita bebida alcoólica.
“A gente descobre tudo na hora da autópsia, por conta desses sinais. Realmente, são pequenos detalhes. Você vai juntando essas evidências e construindo a história de vida e de saúde da pessoa”, explica.
Falhas cardíacas
Em outra sala do SVO, a patologista Gabrielle Maia se debruça sobre o microscópio para estudar pequenas lâminas de vidro com amostras biológicas. São esses materiais que ajudam a traçar o perfil epidemiológico das mortes no Estado. Mas quais as principais causas?
“Em disparada, os eventos cardiovasculares: infarto está em primeiro lugar”, afirma a médica. “Depois, as descompensações de doenças cardíacas, as cardiopatias, que geralmente os pacientes têm em decorrência de hipertensão arterial”.
das 184 cidades do Ceará são atendidas pelo SVO-Fortaleza. As demais ficam a cargo do SVO de Barbalha, que recebe casos de municípios vizinhos.
Até a especialista se assusta com um perfil que não é tão comum, mas tem aparecido com frequência: pacientes cardiopatas com menos de 60 anos. “Isso sinaliza pra gente que eles são hipertensos de longa data. Alguns têm diagnóstico; outros eram para ter, mas não são flagrados”, percebe.
Depois, vêm as causas infecciosas. Gabrielle lembra que fechar um porquê, além de encerrar o ciclo do falecido, pode servir de alerta para os familiares – principalmente os parentes de primeiro grau, que podem herdar condições genéticas.
“A partir dos 35 anos, é importante fazer exames de sangue regularmente e medir a pressão assim que tiver oportunidade, porque às vezes é num episódio de aferição que a gente flagra um pico hipertensivo e tem a oportunidade de iniciar o tratamento”, recomenda.
Atendimento humanizado
O trabalho do SVO não se limita à necrópsia em si. O Serviço também desempenha um papel social ao prestar suporte humanizado às famílias e apoio na superação do luto.
Em 2024, a entidade implantou o serviço de remoção. Quatro carros com câmaras frias são enviados para buscar o corpo no domicílio ou na unidade de saúde/acolhimento onde houve a morte. Neste ano, a atuação foi ampliada para o período noturno.
“A gente ampliou justamente para aquelas famílias mais vulneráveis, que não têm muitas condições nem muito acesso à assistência”, conta Anacélia. “Então, a gente atua nessa questão social, para minimizar a dor da família”.
remoções de corpos foram realizados pelo SVO no primeiro ano de operação.
Quando as famílias comparecem ao Serviço para resolverem documentações, entra outra frente de assistência com médicos e assistentes sociais. “Uma das coisas que a gente sempre busca é fazer com que o familiar não se sinta culpado pelas coisas de que ele não é culpado”, explica Sami Gadelha.
“É nessa hora que a gente fala pra família: ‘ele era adulto, dono de si, e essas decisões foram decisões dele. Você fez o possível para ajudar’. A gente tem que ter esse discurso para ajudar os familiares a superar porque, via de regra, vai vir a culpa em algum momento”, observa o diretor técnico.
Novas tecnologias
Ainda na sensibilização das famílias para aderir ao procedimento, o SVO vem crescendo o uso da técnica de autópsia minimamente invasiva (AMI). Através dela, não é preciso “abrir” o corpo. Em vez disso, amostras biológicas são retiradas com agulhas e submetidas a exames laboratoriais.
Segundo Anacélia Matos, ela é indicada para dois perfis:
- suspeita de doenças altamente infectocontagiosas, como meningite, Covid-19 ou doença de Creutzfeldt-Jakob (capaz de afetar o cérebro), que podem expor os profissionais a riscos desnecessários;
- resistência da família à necrópsia convencional.
“A gente oferece a AMI como uma alternativa para não deixar de coletar o dado, então acaba conseguindo esse aceite”, garante. A elucidação de uma morte fetal por febre do oropouche, arbovirose detectada na região do Maciço de Baturité e que ganhou relevância epidemiológica no Ceará em 2024, só foi possível graças a esse método.
Além disso, desde o ano passado, a unidade dispõe de novos equipamentos para análises laboratoriais e passou a contar com mais uma câmara fria. Diante da suspeita de doenças contagiosas, secreções também podem ser encaminhadas ao Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen-CE).
é o percentual de definição de causa de óbitos no SVO. Segundo o médico Sami Gadelha, é um dos maiores do país.
A morte é pedagógica
Em 2024, o Ceará registrou 63.084 óbitos gerais, segundo o Painel de Monitoramento da Mortalidade do Ministério da Saúde. Foram 5.257 por mês, 175 por dia, sete por hora. Praticamente um a cada 10 minutos, seja por doenças, por acidentes ou pela violência.
A morte está ao nosso redor, mas ainda é um tabu. “As pessoas têm aquela repulsa ao óbito pelo medo. Todo mundo tem medo de morrer. E, ao ver o cadáver, esse medo vem à tona porque você pensa logo: e se fosse eu?”, resume o patologista Sami Gadelha.
Para o profissional, quando se consegue explicar para a família do que o parente faleceu, aceitar o processo da perda é mais fácil.
Talvez, se essa ótica fosse mais incutida na nossa cultura, nós não tivéssemos tantas famílias com luto prolongado ou mesmo depressão por não terem tido a oportunidade de sequer saber por que perdeu aquele ente querido.
“O motivo ajuda você a superar principalmente porque, a partir do momento em que você diz para a família, também mostra que ela fez tudo o que podia fazer”.