Chuvas fortes causam estragos históricos em moradias precárias de Fortaleza: ‘perdi até o carro’
Eventos extremos ameaçam segurança de famílias devido ao risco de alagamentos, inundações e desabamentos
“Se dá uma chuva, penso logo: ‘vou pegar uns tijolos e subir os móveis, senão a gente vai perder’”, conta Valdecio, morador da Comunidade do Riacho Doce, em Fortaleza. Desde que nasceu, há 32 anos, vive no lugar onde vizinhos e familiares se reúnem para limpar o canal improvisado e criar barreiras na frente de casa. Mas o problema não tem vazão.
A realidade de tirar a água de casa com rodo, perder móveis e eletrodomésticos – que muitas vezes nem cabem no orçamento – e conviver com o risco de doenças é compartilhada por moradores, há décadas, na capital cearense.
No último ano, para se ter uma dimensão, os agentes da Defesa Civil saíram por Fortaleza para atender, principalmente, ocorrências de risco de desabamento com 1.248 casos. A concentração, inclusive, foi nos meses de chuvas fortes: março e abril.
Isso acontece num contexto em que há maior recorrência de grandes acumulados de chuvas em pouco tempo – efeito das mudanças climáticas – e o aumento da população em áreas de risco devido à pobreza.
Foram 142 famílias que acompanharam a moradia vir abaixo em desabamentos, de fato, em 2022. Naquele ano, 97 viram a água entrar sem controle dentro de casa em inundações, além de 84 casos de alagamento.
Entre janeiro e fevereiro deste ano, as ocorrências por risco de desabamento foram 161, além de 10 alagamentos e 6 inundações.
Valdecio vive com a esposa e 3 filhos na comunidade próxima ao bairro Passaré onde a falta de controle com a água também o prejudicou pela contaminação com a chikungunya. Em momentos de precipitações intensas, os vizinhos se ajudam.
Uma criança caminhando na rua onde mora, durante a entrevista para esta reportagem, lhe desperta uma memória do período de chuvas: “ela estava chorando dentro de casa, o pai dela não tem uma das pernas, e a gente foi lá”.
“Nesse período de chuva, a água traz o lixo e a gente sofre com enchentes, entra água e perdemos móveis, não tem como a gente comprar. É correr atrás para poder sobreviver. A gente não passa um ano de ‘inverno’ sossegado”, finaliza.
O morador mostra os pontos onde há acúmulo de lixo, como sofás e materiais plásticos, além da vegetação que sobe no entorno do curso d’água. A comunidade é cortada por uma corrente vinda do Rio Cocó. Antes havia uma lagoa “enorme de água cristalina”.
Esse espaço foi aterrado num movimento em que pessoas em situação de vulnerabilidade social buscam alternativas de abrigo. E assim famílias vivem por gerações nesses espaços de Fortaleza, como analisa Valéria Pinheiro, membro da Frente de Luta por Moradia Digna.
"Essas pessoas não conseguem mudar de vida, sair desse ciclo da pobreza a ponto de morar numa área segura. A cada processo desse de enchente, empobrecem mais, perdem coisas, conseguem recuperar parte delas, mas depois vem de novo um processo deles".
Evamberto Gomes, de 56 anos, conhece essa realidade de perto. Foram roupas, cama, geladeira e fogão na lista dos itens perdidos pela família do garçom durante precipitações.
“Quando chove muito, alaga tudo, entra água nas casas da gente e é cruel. Alguém tem que tomar alguma atitude em relação a isso, porque tem muitos anos que estamos esperando”, frisa.
O autônomo Raimundo Barbosa, de 68 anos, completa que além dos transtornos na quadra chuvosa, o acúmulo de lixo e os insetos prejudicam a população o ano inteiro.
“Eu moro aqui há 30 anos e de lá pra cá foi chegando saneamento e calçamento, mas em termos desse canal não melhorou nada. A população foi crescendo e jogando coisas dentro, o que causa esse efeito”, aponta para o trecho do canal que corta o quintal de casa.
Isso atinge a população que já não tem condições de sobreviver num ambiente melhor, o que sobrou para a gente foi isso aqui, e é o que você está vendo
São cerca de 2.800 famílias afetadas pelo problema na Comunidade do Riacho Doce, na ocupação José Lourenço e no Marrocos, como estima Cícera Silva, presidente da Associação de Mulheres Empreendedoras do Ceará (AME).
A organização articula com os moradores e órgãos públicos a limpeza do espaço para evitar alagamentos.
“Começamos a fazer a limpeza porque estava demais, acionamos à Ouvidoria e a Prefeitura veio e fez, mas não condiz com o que é necessário, porque o lixo pode fechar a boca de lobo”, pondera.
‘Perdi até um carro’
As chuvas de Fortaleza aproximaram a família de Gleison Ribeiro, de 42 anos, do teto da casa. Isso porque, depois de tanto aterramento devido às inundações, a distância entre o piso e a coberta da residência diminuiu.
“Eu tô aqui há 9 anos e a água invade todas as casas da Portelinha, quem não teve condições de altear, isso ainda continua. Na minha, eu já coloquei 17 caçambas de aterro”, comenta o vendedor que vive na comunidade do bairro Planalto Ayrton Senna.
Além de eletrodomésticos e móveis, “eu perdi até um carro, entrou água até a altura da porta e danificou o motor”, lembra.
Dá umas coceiras no corpo das pessoas que fere, são besouros nessa água correndo. Esse ano não tivemos problemas porque a chuva não começou de verdade, mas em março e abril é que começa
Na esquina da rua de Gleison está uma placa que indica obras de urbanização e infraestrutura viária em 17 ruas da comunidade Portelinha.
Devem ser feitos serviços de drenagem, novas calçadas e pavimentação com piso intertravado e asfalto. As obras estão previstas para conclusão no segundo semestre e têm investimento de R$ 6,9 milhões.
Problema histórico
“As chuvas, enchentes, fazem parte do calendário de Fortaleza. Há décadas, é um problema histórico”, resume Valéria Pinheiro, que também é pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A especialista acrescenta que a força com que esses eventos acontecem, no entanto, assustam mais do que o normal. “A intensidade da crise climática também bate em Fortaleza, como uma tragédia que atinge parcelas da população de forma diferenciada”.
Valéria analisa uma inoperância em relação às ações de longo prazo para evitar inundações e ausência de obras de infraestrutura suficientes para resolver o cenário na capital cearense.
Não falta conhecimento técnico ou recurso. Uma cidade que acabou de fazer mais uma reforma na Beira Mar, que anunciou mais um grande projeto para a orla, não falta dinheiro
Num momento em que há a revisão do Plano Diretor – um documento que guia as modificações da cidade e do planejamento para os próximos anos –, o problema pode ganhar estratégias. Por isso, Valéria lança um questionamento à Prefeitura:
“O que a revisão do Plano Diretor pode contribuir para a diminuição do risco de enchentes e o problema da vida dessas pessoas?”
O Diário do Nordeste conversou com Manuela Nogueira, titular da Coordenadoria Especial de Programas Integrados (COPIFor), órgão à frente do processo, sobre o assunto. "A revisão do plano diretor, por ser algo participativo, pode ajudar a evitar esse efeito colateral da urbanização desordenada de alguamas áreas da cidade", responde.
Manuela explica que o documento pode trazer diretrizes e instrumentos de políticas para mitigiar o problema, como a taxa de permeabilidade. Nesse exemplo, é estabelecido o quanto do solo pode ser imperbealizado, além de elencar estruturas de drenagem da água.
Temas relacionados, como regularização fundiária e saneamento, também devem ser tratados nesse processo. "Em Fortaleza existe uma política, ligada ao Plano Diretor, que é o projeto Proinfra. Mais de 150 ruas foram pavimentadas, onde antes tinha alagamento, hoje não tem mais", cita.
Assistência às famílias
Foram feitas 57 intervenções em recursos hídricos, sendo 32 canais e 25 lagoas, pela Célula de Monitoramento (Cemon) da Defesa Civil em 2022. Além disso, 2.092 famílias receberam aluguel social no ano.
As ações também levaram material assistencial básico para 176 famílias e abrigo solidário para outros 83 núcleos familiares.
O coronel Heraldo Pacheco, coordenador da Defesa Civil da Capital, explica que o trabalho preventivo acontece com base no mapeamento das áreas onde há maior recorrência de inundações e desabamentos. São 89 áreas identificadas.
“A gente monitora esses locais com possíveis inundações e temos uma comunicação para a limpeza dos riachos e canais o ano todo”, completa. O descarte irregular de lixo permanece como um dos principais desafios, mas o problema vai além.
“As pessoas acabam invadindo a área e constroem na estiagem, mas quando o riacho sobe não tem mais aquela zona de expansão e a água vai cobrar em outro local”, destaca. No último ano, o coordenador lembra de uma chuva de 130mm que atingiu o Riacho Maceió.
“A natureza em Fortaleza, comparada com São Paulo, nos ajuda, porque a cidade é mais plana. Temos câmeras nos pontos críticos e vemos que o nível sobe, mas desce rápido”, diferencia.
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Os principais recursos hídricos monitorados são o Rio Maranguapinho e o Rio Cocó, que receberam contenções para controlar as enchentes. Essa prevenção, no entanto, pode não ser suficiente caso ocorram chuvas intensas como, numa outra escala, que atinge São Paulo.
- Alagamento: acúmulo de água em ruas, por exemplo, devido à falta de drenagem
- Enchente: aumento temporário do nível da água sem transbordamento;
- Inundação: quando o nível da água sobe, transborda e pode atingir residências.
Os problemas estruturais também podem estar interligados entre si, como pondera Pacheco.
“Quando tem inundação, a água pode ser inimiga e pode ser um problema de desabamento. As nossas ocorrências aumentam porque, quando não dão manutenção no telhado e chove, acelera essa possibilidade”, conclui.