Pessoas com algum tipo de limitação de fala, ainda que temporária, enfrentam diversas barreiras para se comunicar. Foi pensando nesse público que uma pesquisa desenvolvida no Ceará criou um sistema inovador: elas conseguem, a partir das ondas cerebrais, “escrever com o piscar dos olhos”. A iniciativa venceu uma premiação internacional e tem a possibilidade de ser integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS).
O projeto “Blinktalk” (pisque e fale, em tradução livre) recebeu o Prêmio de Inovação em Engenharia Biomédica para o SUS e América Latina 2024, organizado pela Sociedade Brasileira de Engenharia Biomédica (SBEB) com a empresa Boston Scientific, na categoria Startups. O anúncio ocorreu na última semana, e a cerimônia de entrega será em dezembro, em São Paulo.
O sistema utiliza conhecimentos e tecnologias da área da Neurotecnologia de forma não-invasiva, por meio de uma interface cérebro-computador. Ela permite que pessoas com paralisia cerebral, autistas ou pacientes com casos graves da Covid-19, por exemplo, possam se comunicar por meio de ondas cerebrais.
Com a ajuda de um eletroencefalograma portátil acoplado externamente à cabeça, a interface cérebro-computador faz com que a mente do indivíduo guie cursores de teclados virtuais por meio do piscar de olhos, permitindo aos usuários escrever num computador.
“O principal resultado é a possibilidade de exprimir o que se sente ou necessita. Você dá autonomia para a pessoa se comunicar no dia a dia, para que tenha acesso a informações e serviços de forma mais digna, sem uma necessidade maior de suporte”, descreve o físico Paulo Victor Loureiro, doutorando em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e idealizador do Blinktalk.
O cientista também é fundador da startup BiotechTEA, que desenvolve soluções em tecnologias assistivas (dirigidas a pessoas com deficiência) para a neurorreabilitação e comunicação alternativa com a interface.
Como funciona o projeto?
A ideia surgiu dentro de uma sala de atendimento educacional especializado (AEE), em 2018, quando Paulo dava suporte a um estudante com paralisia cerebral não-verbal - ou seja, que não possuía a capacidade de falar.
Por ter formação em Física, o professor entendia que a robótica poderia ser “uma ferramenta pedagógica eficiente” e se perguntou: “como fazer ele se comunicar e participar do processo de ensino-aprendizagem?”. À época, o rapaz tinha destaque até em Olimpíadas de Matemática porque conseguia fazer cálculos de cabeça, mas tinha dificuldade em resolver questões dissertativas.
No leque de possibilidades, Paulo se viu incapaz de usar tecnologias como captura de movimentos ou sensores de toque porque o aluno não tinha amplitude de movimento. “A única forma que vi seria com o movimento dos olhos, mas até isso era limitado. Ele conseguia piscar. Tive que achar essa tecnologia para que, ao piscar, ele escolhesse letra, palavra ou símbolo gráfico”, descreve.
“É como se você controlasse o computador com a mente”, resume o pesquisador.
Com o sucesso da interação, vieram os testes práticos. Primeiro, foi utilizado o sistema de código morse, fazendo uma lâmpada acender e apagar para formar as letras. Contudo, o método era demorado e cansava o usuário porque demandava várias combinações sucessivas.
Depois, o sistema foi evoluindo: com apenas um comando, já se escolhia a letra; depois, foi instalado um algoritmo de previsão de palavras, como já utilizado em celulares; por último, foram implantados emojis (carinhas) para facilitar a expressão de sentimentos ou necessidades, como dor ou fome.
Sistema mais barato
Após a criação, o projeto foi implementado em algumas escolas e ambientes de trabalho, pela necessidade de uso de alunos ou funcionários com restrição de movimentos. Durante a pandemia, Paulo também venceu um edital da Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza (Citinova) para implementar o método em hospitais públicos municipais.
O objetivo era auxiliar pacientes internados com Covid-19 a responderem sobre os tratamentos aplicados. Porém, devido às restrições sanitárias do período, o pesquisador não pode verificar in loco o uso dos equipamentos.
Nas contas de Loureiro, quase 100 pessoas já utilizaram o Blinktalk somente na área da educação. Ainda segundo ele, alguns desses usuários conseguiram entrar na universidade - um deles, em Engenharia da Computação.
Os benefícios da tecnologia, acredita, são ainda mais eficientes diante dos custos. “Só pra se ter uma ideia, na época em que comecei a pesquisar, o aparelho mais moderno custava R$6 mil. O intermediário, R$2 mil”, conta Paulo. “O meu foi feito com R$200. Já o software é só fazer o código”.
Diante da facilidade de replicação e do prêmio recebido, o físico espera que o método seja ampliado para todo o SUS. Na fase de entrega da condecoração, estão previstas interlocuções com membros do Ministério da Saúde e outros investidores da área.
“A disponibilidade dessas tecnologias ainda não foi possível pela falta de recursos. Eu só tinha os protótipos que desenvolvi, e esse é um dos nossos obstáculos: o aparelho precisa estar com a pessoa para ela usar em todas as situações”, projeta ele.
Impactos positivos
Entre as vantagens práticas do Blinktalk, Paulo Victor Loureiro elenca que os alunos monitorados por ele conseguiram realizar atividades escolares com maior eficiência e criar textos mais rapidamente.
No contexto laboral, os colegas de trabalho conseguiam compreender com maior rapidez o que os funcionários estavam comunicando, já que não precisavam mais esperar a digitação letra a letra.
Por fim, ele acredita que a área da saúde pode ser uma das mais beneficiadas. “O paciente tem que indicar aos profissionais se está com fome, o que está sentindo, do que precisa. Isso na área da saúde é uma questão de urgência”, reforça.